[TEXTO] Alexandre Ribeiro [FOTOS] José Caldeira
A viagem de cinco horas até Lamego foi um teste à resistência e paciência, mas nada que não se tenha ultrapassado com uma excelente recepção da equipa do ZigurFest, um festival feito pela família que se escolhe, ou seja, amigos que se uniram para apresentar uma alternativa mais que válida para a proposta cultural da cidade. Incluído nas Festas em Honra de Nossa Senhora dos Remédios, o evento não poderia estar mais afastado em termos estéticos do resto da programação (e por isso é que é tão importante).
As surpresas estão sempre ao virar de uma qualquer esquina. A abrir, os Ulnar, dupla oriunda da Madeira, e Sal Grosso, “um filho da terra”, uniram esforços no Núcleo Arqueológico da Porta dos Figos e, perante uma sala composta, desafiaram tudo e todos, utilizando maquinaria que modulou som e voz, criando uma experiência que deambulou entre a claridade (ambient) e a escuridão (noise). Os momentos de paz e contemplação foram, esporadicamente, substituídos por descidas repentinas ao inferno, um contraste que tornou a performance menos óbvia e mais cativante.
A actuação que abriu o festival também serviu de statement para o que iríamos encontrar daí para a frente, mostrando que não existe espaço para o “racismo musical” (olá, Fernando Ribeiro) neste evento.
Pouco tempo depois do final da primeira actuação, os Zarabatana aterraram no Largo da Cisterna e colocaram a plateia em transe com jazz (a piscar o olho a um som mais tribal) que resulta de uma conversa musical entre Yaw Tembe, Bernardo Álvares e Carlos Godinho. A estranheza e a dificuldade em catalogar a sonoridade pode ter afastado alguns, mas a verdade é que existiram muitos resistentes que se deixaram maravilhar pela experimentação. Também é interessante ver o envolvimentos dos locais, que tentam perceber aquilo que se passa nas suas ruas.
O trio, que tapou as suas caras com máscaras, utilizou as vozes mas também recorreu ao trompete, contrabaixo e percussão para “chocar” de frente com as estruturas convencionais. Depois de um “gostamos muito de Lamego”, o embasbacamento era tão grande que as palmas ficaram por bater.
A paragem para jantar fez-se com o jogo do PAOK contra o Benfica na Liga dos Campeões como pano de fundo, um regresso à “normalidade”, por assim dizer, que terminaria rapidamente com a entrada no Museu de Lamego. Dullmea sentou-se no chão da Sala de Grão Vasco, à frente das pinturas do retábulo da Catedral de Lamego, e assinou a actuação mais desconcertante do primeiro dia. Com recurso a loops de voz que foi criando e modificando in loco, a artista mostrou que vive num universo à parte dentro no panorama português.
Olhando para os painéis que se encontravam atrás de si e que evocavam uma espiritualidade religiosa, a sua música ganhou outras formas e significados naquele espaço. Sempre pronta para desafiar um público que, mais uma vez, resistiu o máximo que pôde, Dullmea deu a última estocada quando, a meio da actuação, decidiu auto-promover-se, aproveitando as palavras desse mesmo discurso para atirar-se a mais uma secção ancorada em camadas de voz que tiveram tanto de angelical como de demoníaco. Numa das partes mais memoráveis, a artista começou a alterar significativamente a sua voz enquanto falava uma língua estranha e de difícil compreensão (até pode ter sido inventada pela própria). Já vimos filmes de terror com bandas sonoras menos assustadoras…
Em suma, a descoberta e o desafio andam sempre de mãos dadas no ZigurFest. Entrada a pés juntos no primeiro dia da oitava edição do festival.