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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/03/2025

Delas para a eternidade.

Zarya e Calcutá na Sala LISA: entre arcadas e melodias ressoantes, desdobram-se mantras

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/03/2025

LISA fez-se zona abrigo, um dos espaços para concertos mais acolhedores de Lisboa. Emoldurou-se de ouvintes de olhos bem abertos para o palco aveludado, numa atmosfera de incenso. Chove com intensidade por estes dias e ainda faz frio, os ressaltos dos regatos fazem efervescências e soa a água a correr. Há motivos vários para ali se estar em modo protegido, ao início da noite de 21 de Março, dia pós-equinocial, numa vontade de celebrar, ou o lugar do novo. Programa feito de duas propostas que se alinham na sedutora prática emanada dos instrumentos, e (quase) todos estão em palco ao mesmo tempo. Uns para quem começa e outros para quem se seguirá no lugar. Há uma guitarra deitada no chão, outra guitarra é suportada ao alto, há teclados modernos e teclados ancestrais, e pedais e pedais, e ainda um instrumento mais — aguardemos, também aqui, um pouco mais para dele saber. Só de ver este chão já soa tão bem, estamos em crer, e muito mais ainda em querer, que isto de receber arte dos sons femininos traz o efeito da volúpia em mão dada.

Zarya Austin-Fell é uma artista multidisciplinar, da pintura à música, actualmente radicada em Lisboa. No seu trabalho, em telas e acrílicos, é “considerada a relação entre a vida quotidiana e os objectos que a acompanham”. Aqui está devota à guitarra eléctrica, a tal que está deitada em palco. Razão para Zarya fazer a sua prestação rés ao chão — devota, nunca dedilhando as cordas. Numa acção sonora “explorando temas de rituais básicos e de rotina” como se alimentasse uma cria, cuidando melhor. Esses descritores que citamos vêm da sua prática como pintora, porém também servem a sua música, “o prazer encontrado em objectos e espaços comuns”. 

As cordas da guitarra vibram à passagem das cerdas do arco. Tão somente desde esse mecanismo faz a construção da sua suite performativa. Depois, tudo em diante são manipulações, partindo da fonte primordial. Sem arcordes nem cordas ponteadas. Vimos acontecer a espaços algo assim, na guitarra pendular de Lee Ranaldo em “Contre-Jour” sobre as imagens de Leah Singer, também através de arco de cerdas. Aqui, em Zarya, o processo é de maior densidade e perdurado. Como nos mantras, os ciclos são repetitivos, definem o andamento, sem que se queira ir a lado algum — estamos bem ali. A noção da imagem do som, essa sim faz-nos ver a percolação e a efervescência, que podem andar entre o espraiar das ondas da praia ou nos ressaltos contra as rochas costeiras. Há um modo textural em permanência, que faz desta música de Zarya um embalo de um cântico em que se detalham as asperezas, os fluxos e ressaltam os relevos. Uma música de maresia. 

Calcutá como o eu intangível de Teresa Castro: “Precisamente o veículo com que consigo trazer uma inefabilidade ao concreto — som”, surgido em explicação sincera da própria noutra conversa. Em tempos recentes, passou perto e deixou com toda a clareza que: “O som é de natureza sensual. O toque à distância!” Teresa Castro como figura que surge comprometida, desde meados da década passada, em colectivos de intervenção musical, e tem num dos mais recentes como Savage Ohms, uma açcão de percussão, junto às demais cúmplices. “Quatro ninfas, quatro ventos, improviso nos tempos” feito de Violeta Azevedo, Joana Figueiroa e Bia Diniz, além de Castro. Nesse quarteto experimental reside uma base de drone. Esse drone, tão em voga como anglicismo, enquadra o que na música se chama de nota pedal, ressonância de fundo. Talvez seja mesmo um dos rudimentos mais antigos da música. Razão evidente para Calcutá chamar para o seu último trabalho Catarina Marques com o tal instrumento que faltava revelar — a campânula, como um violoncelo tenor. Traz mistério no nome como no som, mas é um cordofone da família da viola d’amore e da viola da gamba, instrumentos precursores dos modernos violoncelos. Este cordofone de ancestrais feições, suportado entre joelho, opera-se com o uso de cordas simpatéticas — que vibram por simpatia ressoante. Esse efeito está presente desde a sanfona aos roncos (bordões) das gaitas de fole. Tudo para que haja uma potenciação do espectro, outras mais vozes acrescidas. 

Esta presença de Calcutá em duo, com Catarina Marques, serve para ir revelando os temas num além de “feux d’artifice”, que foi o primeiro avanço conhecido do que será o novo álbum. Um concerto cuidado no alinhamento, até na caligrafia da setlist — transportando o ancestral ao moderno. É talvez essa a magia desta música que se começa a ouvir num inebriante “fleeting grace”, interação simpátrica entre as cordas da campânula e as lamelas do harmónio de Calcutá. “Graça inefável, passageira. A sensação da beleza em si”, como descritor sabido das palavras da compositora numa revelação exclusiva. Tentaremos cuidar nós de estancar as demais vontades descritoras dos temas. Mas é muito tentador fazê-lo, é daqueles privilegiados momentos em que, na prática, acedemos ao novo, às músicas que mais ninguém conhece, só indo para ver. 

Calcutá traz uma mão cheia de novos temas em formato canção, onde a voz é, também ela, uma dessas cordas simpatéticas, algo que fica bem exemplificado entre a passagem dos temas dos vales, de “weep valley” a “mountain valley”, com um identitário “eterno retorno” pelo meio. Nisto já a música de Calcutá é feita da sua emblemática guitarra eléctrica, de que faz uso numa propulsora forma de dedilhar. Do seu polegar faz uso simultâneo de uma linha de baixo, interagem neste espaço dois emanares sonoros que distam no tempo o que só uma certa utopia criativa possibilita — ouvir a guitarra eléctrica em ressonâncias com a campânula. Quem diria? Calcutá, que assim no seu eu autoral (en)cantou e transportou em melodias de formato canção. Numa combinatória que raros duos ousam alcançar sentidos nos ambientes da dupla Jessika Kenney e Eyvind Kang em Azure, com shruti box e viola d’amore. Vem a comparação para dar um sentido palpável e concreto em disco do que podemos chamar de mantras em melodias ressoantes, propulsadas a fole de harmónio e arcadas de campânula.

Transpostas as propostas que nos trouxeram para as suas primeiras gravações com Over Night (2017) e Real Dog (2021), com o disco que aí virá — ainda em busca de um selo editorial, refira-se — este palco predestinado testemunhou Calcutá apontando a um campo de sonho tornado verdade. E caímos na tentação, cedemos ao testemunho da visão mais concreta, para o que serviu de epílogo do concerto. Com “run come ralley” cumpre esse eterno retorno aos campos onde um dia se fez música, em antemão ser rumo ao de musa. Tema pejado de um crescente embalo de circular dedilhar, feito melodia cantada, tema de Vivian Jackson (aka Yabby You) artista e produtor de Kingston, mas (n)este presente chega-nos de Calcutá. Trouxemos esse mantra para o caminho em ciclos de repetição: “Run away, come away / From the land of the sinking sand”.


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