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Fotografia: Ênio Cesar
Publicado a: 06/06/2024

O artista brasileiro regressa a Portugal no final deste ano para apresentar o seu novo trabalho.

Yago Oproprio: “Eu faço rap, mas não quero me rotular como nada. Não é certo falar que eu sou MC”

Fotografia: Ênio Cesar
Publicado a: 06/06/2024

Pela sua forma única de rimar, fugindo do óbvio, Yago Oproprio tem ganhado protagonismo no rap brasileiro. Antes mesmo de fazer suas primeiras gravações em 2017, ele já estava envolvido nas batalhas de rima. Com o single “Imprevisto”, de 2022, ganhou reconhecimento e conquistou seu público. Por essa e outras, tornou-se uma aposta da Som Livre, um dos grandes selos do Brasil, agora comandado pela Sony Music, a qual assinou contrato em abril de 2024.

Praticamente um mês depois, 28 de maio, Yago fez sua estreia oficial com o álbum OPROPRIOvai apresentá-lo ao vivo em Portugal em Outubro. Nele, o artista compartilha experiências pessoais em forma de crônicas, que são guiadas por influências do boom bap, MPB e a musicalidade latina. Uma semana depois do álbum ser lançado, conversei com Oproprio via Zoom sobre o processo criativo do seu primeiro “filho” musical. “São experiências que eu vivi, que eu vivo, dentro da minha ótica, de uma poesia que eu carrego comigo”, revela.



É impossível ouvir o seu álbum apenas uma vez. Tem que colocar para tocar em looping

Vai digerindo, né!?

Sim, pegando várias ideias… E sendo o seu primeiro disco, fala-me sobre a construção dele com o Patricio Sid.

Foi um trabalho que durou entre 7 e 8 meses de concepção, e enquanto eu fui fazendo também fui entendendo do que se tratava. Nunca soube qual seria a próxima faixa nem a ordem das músicas, só fui fazendo com o Patricio. Assim que a gente terminou a oitava, que até então era para o disco ter oito faixas, decidimos a ordem. Mas foi um passo a passo até desesperador, porque eu não sabia o que ia vir na sequência, não sabia o que eu iria falar no meu álbum. Aí, quando terminei e ouvi, falei: “Caraio, tô falando de mim, são experiências minhas que estou retratando.”

Interessante você dizer isso, porque de certa forma uma faixa parece complementar outra, vão contando uma história que no final é amarrada com as duas músicas de protesto.

É, então… A gente foi terminando várias vezes assim. Quando terminei a oitava, que é “Jejum”, me deu um alívio porque até então eu só estava falando de amor e de mim. Mas eu precisava falar de algo que representasse meu trampo, o que meu público queria ouvir, que é essa parada de fazer um manifesto. E esse álbum foi algo que foi se construindo nesse lugar, mas num lugar sempre de incógnita pra mim. Olhando pra trás, às vezes, eu entendo um pouco de como foi o processo, mas foi um bagulho muito passo a passo… As 3 primeiras que eu fiz foram “Catedrais”, “Inofensiva” e “Melhor que Ontem”. Aí, eu viajei, fui pra Tailândia tirar umas vivências lá, voltei em janeiro com todas as coisas arquitetadas com a Som Livre, 20 pessoas trabalhando no projeto e eu não tinha o álbum pronto. Foi aí que me internei no estúdio. Dormi, acordei, dormi, acordei, e ele foi nascendo. Na hora de montar a ordem das faixas parecia que tinha sido algo feito minuciosamente, tecnicamente falando, mas foi eu sentindo o bagulho, fazendo a parada sem saber qual seria o próximo passo.

Aquela introdução de “La Noche” ficou sensacional…

Tá bem épico, né!?

E ela já adianta o que os ouvintes podem esperar na sequência. De que forma você e o Patricio fizeram a produção, inclusive na curadoria desse sample especificamente… Se não quiser revelar, seguindo as leis dos beatmakers, tá tranquilo.

É dos Los Zafiros…

É uma banda cubana, né!? Vi algumas pessoas chutando que era Nat King Cole cantando em espanhol…

[Risadas] Tem gente que fala que é da Kali Uchis, porque ela lançou também recentemente uma versão de “La Luna en Tu Mirada”… Mas os Los Zafiros tem músicas maravilhosas. Tem uma que chama “He Venido”, que também é linda. Mas falando do processo criativo… Ele permeou em dois lugares. Às vezes, na Internet eu encontrava algumas motivações, pesquisando uns beats que me motivam, uns bagulhos que me fazem ter ideias, e aí eu trazia para que o Patrício olhasse aquilo e reconfigurasse. Outro exemplo muito interessante que eu gosto muito de falar: tem um funk do Gaab MC, junto com o MC Paiva, que chama “Nóis É os Cara”… Mano, eu estava numa adega e esse som tava tocando. Dei um Shazam e na semana seguinte mandei para o Patricio, e dessa inspiração nasceu “Melhor Que Ontem”. Tipo, foi uma música que não tinha nada a ver com as ideias que eu queria, mas estava no mesmo campo harmônico e me deu aquele estalo: “Caraio, esse beat é foda de rimar, vamos reconfigurar ele?” E sempre é assim, às vezes tem um som que me pega, uma linha de baixo que eu falo: “Olha essa linha de baixo aqui, vamos trabalhar em cima dela?” Aí, a gente desmembra aquilo, reconfigura, descaracteriza, para depois criar algo novo. É mais sobre sentir aquilo que você ouve.

A sua forma de rimar é diferente, traz essa essência do rap, mas não se limita a ele. Você se considera um MC que é cantor, ou um cantor que faz rimas?

Eu gosto de trazer a essência do rap dentro do meu trampo porque é a minha base. Os primeiros CDs que eu decorei na minha vida foram de rap. Ele esteve muito presente na minha construção, mas ao mesmo tempo eu ouvi muita música brasileira, como samba e MPB. Acho que esse cantar mora aí… Eu faço rap, mas não quero me rotular como nada. Não é certo falar que eu sou MC, mas eu também gosto desse lugar. Muitas vezes, eu vejo uns bagulhos e até me ofendo quando falam: “O que esse cara faz não é rap.” Isso me pega às vezes, mas a vida vem e… Essa semana mesmo, faz uns quatro dias, recebi uma mensagem da família do Sabotage, falando: “Ontem na reunião da Família Canão, Brooklyn Sul, sua rima foi citada várias vezes, obrigado pelos seus versos… Os amigos das antigas, os filhos gostam muito, foram um dos versos mais sabáticos que poderia ter”. Eu falei: “Caralho, é isso, não preciso falar mais nada, o que eu estou fazendo já diz por mim.” Já passou da época de eu ficar me afirmando. Isso é muito louco, porque na década de 1990 era quase proibido cantar no rap, você não podia soltar uma melodia… Mas no meu trampo eu busco trazer essa leveza. Para você passar um assunto que é mais indigesto, cantar deixa mais leve, é mais fácil quem pensa diferente te escutar. O maior poder de transformação da música tá na melodia. Tipo, em “Linha Azul” estou falando de algo subversivo que é pular catraca. Mas estou cantando com uma leveza que permite que as pessoas pensem: “Pode crê, ele pulou catraca, mas ele tá certo porque estava com fome.”

Faz essa crítica de uma forma leve, até engraçada em algum momento… Saí de manhã sem tomar café, não almocei, vou pagar passagem? Não, vou comprar uma coisa para comer.

Um salgadinho [risadas].

É um ato subversivo que conversa com a realidade da maioria da população.

O álbum em si é uma visão do cotidiano. Por isso que as pessoas falam: “Caraio, você está escrevendo sobre a minha vida?” Não, mano. Estou falando sobre a minha vida, só que as experiência são similares. A dor que eu sinto, você sente. Se você já acordou cedo pra ir trampar, você sabe o valor que é pagar uma passagem, são dores comuns. Apesar de hoje em dia não fazer mais parte da minha realidade, já peguei muito metrô lotado pra atravessar a cidade e ir para o centro de São Paulo. Eu sei o que significa também ir para o centro se não for para trabalhar. Quem nasce e mora na periferia, o centro é um lugar distante. Para você ir e voltar, na minha época a passagem era R$ 2,80 — então R$ 5,60 para ir e voltar… E com R$ 5 reais na quebrada, naquela época dava pra fazer um monte de coisa. São experiências que eu vivi, que eu vivo, dentro da minha ótica, de uma poesia que eu carrego comigo.

Você citou a sua participação no álbum que comemora os 50 anos do Sabotage, e também concordo que as suas rimas são uma das que eu mais gostei, não querendo fazer comparações porque cada artista tem sua forma de interpretar. Novamente, você chega com leveza. Como aconteceu essa conexão pra você fazer esses versos?

Dentro do que tinha, “Maloca É Maré”, busquei me apoiar em duas coisas. Porque assim, os versos eram muito abstratos. Mas vou falar só uma dessas coisas, porque a outra é muito delicada… Mas primeiro foi o respeito, o máximo possível, pela a obra dele, porque quando eu recebi para fazer me deixaram aberto pra fazer o que eu quisesse. Uma das premissas era encontrar maneiras de diálogos e falar da realidade periférica. Então fiz uma crônica. E o que falo ali é verdade. Eu conheci um menor quando ele tinha 9 anos que foi na pista de skate pra pedir um isqueiro… Esse foi um personagem que ficou habitando uns três anos na minha vida, e com 12 anos ele se envolveu com pedra de crack e depois sumiu. Trocando ideia, ele disse que o pai tinha morrido, alguém da família estava preso e o irmão era do corre [do crime]. O moleque não tinha onde se respaldar… Então, dessa vivência que tive lá na Cohab II, na Zona Leste de São Paulo, eu fiz essas rimas. Então, tudo que eu escrevo é baseado no que eu vejo. Às vezes é algo abstrato, tipo “Amor Incendiário”, que é um amor que acontece no meio de uma manifestação. Eu não me apaixonei no meio de uma manifestação, mas já fui em muitas manifestações. Assim, poetizei o ato de estar e como seria estar apaixonado numa manifestação. Muitas vezes faço crônicas com as coisas que eu vivo.

Você morou um tempo na Venezuela, e na sua música tem alguns elementos da música latina, e nós brasileiros na maioria das vezes não nos consideramos latinos. A musicalidade e a cena de rap venezuelana é muito diferente daqui do Brasil?

Tem uma cena de rap que eu não conheci quando morei lá. Eu consumi muito reggaeton, que é o funk deles, além de salsa, merengue, esses ritmos latinos. Mas é muito louco, porque tem um cara na Venezuela (quando morei lá acho que ele não fazia rap), que hoje é considerado um dos maiores artistas do país e pra mim um dos maiores letristas da história do rap. Ele tem uma música que vai vingar a morte do irmão, monta na garupa da moto, dá uns tiros, toma uns tiros, vai para o inferno, encontra o diabo lá e pede para o diabo devolver a vida dele. Aí, ele chama o diabo pra uma batalha de rima. Mas o diabo fala: “Se você perder o seu pai vai junto.” Ele batalha com o demônio, ganha e volta pra vida. Como que um cara consegue criar essa narrativa? O nome dele é Canserbero. Ele fez dois discos, um chama Muerte e o outro Vida. Três meses depois de lançar o segundo, ele morreu. Nessa vivência venezuelana, o que somou foi ouvir muita música. Eu sempre gostei de escutar música, sempre tive uma memória musical muito grande. Se eu ouvir uma música que não escuto há 15 anos, eu lembro a letra inteira dela, acesso a melodia. Acho que também essa facilidade na forma de se falar, pronunciar um idioma, acabou entrando no meu HD interno pra composição. A gente acessa coisas do nosso inconsciente e vai criando uma bagagem. Ter morado lá e ter contato com a língua espanhola por 2 anos me trouxe essa parada que virou uma característica até de flow. Tem uma coisa que eu faço muitas vezes que tem essa influência latina, que é de trocar o L pelo R. É tão sutil que muitas vezes não dá pra perceber, mas isso dá uma salsa, um tempero.

O disco possui uma diversidade artística que vai da arte da capa ao filme. Você que deu esse direcionamento ou teve o auxílio de outras cabeças pensantes?

Isso aí foi por causa das pessoas certas que chegaram na minha vida, na hora certa. Eu não tenho nenhuma noção visual e estética de nada. Roteiro eu até gosto de criar, já criei alguns de clipes meus, mas chegou uma galera muito foda para trabalhar comigo. Primeiro, eu conheci o Rapha [Raphael Damiatti], da EME Cultural, que virou um grande parceiro e juntos conseguimos dar os primeiros passos desse projeto. Chamámos o Fernando Marar pra ser diretor criativo do projeto, um cara que ama a arte. Eu fui contemplado por ele se identificar com o som. Quando começou, ele perguntou: “O que você vê de você nas suas músicas?” Eu respondi: “Vejo tudo preto.” Por isso, a primeira folha da capa do vinil, quando sair, vai ser preto, e você vai tirar e vai ficar colorido, porque ele falou que via cores em mim e começou a sintetizar isso no desenho. Aí, quando veio o filme, o Fernando foi para um rolê e começou a falar do projeto pra Larissa Zaidan e para o Ênio Cesar. E eles já queriam trabalhar comigo. Então, foi uma confluência de energia que aconteceu naturalmente num lugar de amor, de olhar um bagulho que nem existia. Imagina eu, voltando da Tailândia em janeiro, aí tem os caras mais zica do cinema, os caras mais zica do criativo, um projeto já programado e como ficou minha cabeça? Quase terminei de ficar careca. 

Às vezes aquilo que é planejado não sai conforme o planejado…

Não sai, a sincronização do universo é a mais genuína.


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