O bom filho regressa a casa. Esta adaptação do provérbio popular foi, provavelmente, a frase mais repetida ao longo da noite deste sábado, 24 de Maio, na primeira edição do festival Sotaques, no Parque Urbano da Quinta da Flamenga, em Vialonga. Foi Gson, ao comando dos seus Wet Bed Gang, quem, uma vez após a outra, foi deixando o repto perante uma imensa (e impressionante) multidão de muitos milhares de pessoas.
Esta é a primeira vez que um rapper ou um conjunto de rappers organiza um evento desta dimensão — um festival de três dias com dois palcos e um cartaz recheado de artistas, de Regula a Deejay Télio, de Mariza a Bonga, dos Força Suprema a Soraia Ramos, de Nenny a Phoenix RDC, de SleepyThePrince a Mizzy Miles e a Djodje, passando por vários músicos locais e mais pequenos, abraçando a comunidade — na sua zona, e logo numa periferia de Lisboa pouco habituada a receber eventos culturais e muitos visitantes de fora.
Daí que o Festival Sotaques, co-promovido com a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, tenha uma relevância acrescida, um simbolismo político e social incontornável que se materializou sobretudo no momento em que os anfitriões Wet Bed Gang subiram ao palco enquanto cabeças de cartaz. Eles são os “V-Block Winners”, os “pretos da V”, o “quarteto fantástico” que mostrou que era possível vingar na vida a partir de um bairro social e colocou Vialonga no mapa nacional.
Depois de percorrerem o país de lés-a-lés ao longo dos últimos anos, profissionalizando-se e amadurecendo (embora ainda reste muita jovialidade e espontaneidade), os Wet Bed Gang decidiram retribuir à sua comunidade, convocando-a para o centro do acontecimento, colocando-a debaixo dos holofotes, fazendo daquele lugar periférico (e tantas vezes estigmatizado) um espaço central.
A jogar em casa como nunca, os Wet Bed Gang fizeram certamente um dos melhores — e mais importantes — concertos da sua carreira. A experiência acumulada por esse país fora tornou-os em performers natos, com traquejo e à vontade, com uma banda competente a acompanhá-los na retaguarda e a dar corpo ao seu longo desfile de hits e bangers, de “Aleluia” a “Devia Ir”, de “Álcool & Prazer” a “Worldwide”. Mais uma vez, a ideia de retribuição: aprender e ganhar calos por esse Portugal fora para depois voltarem e se apresentarem como a prata da casa em Vialonga. Bom filho regressa a casa.
Em palco, Gson e Zizzy Jr. são os mais activos e explosivos do colectivo, interagindo frequentemente com o público, pedindo uma constelação de lanternas de telemóvel, que se hasteassem as bandeiras ou que se abrissem as rodas para o épico “MOXXXPIRII”. Introvertido mas carismático, Zara G é sempre um dos mais valiosos trunfos dos Wet Bed Gang, tendo como apogeu da sua performance a interpretação bem junto do público da já emblemática “Chaminé”, um banger trap que só envelheceu bem, sete anos volvidos. Kroa, o mais velho, sapiente e contido, é uma âncora segura e estava particularmente comovido, até porque celebrava ali o seu aniversário — momento assinalado em palco com o cantar dos parabéns e tudo, com a família reunida à sua volta.
O espectáculo foi, aliás, marcado por uma série de momentos especiais. Um dos principais foi a presença e discurso em palco da filha de Rossi, o malogrado mentor dos Wet Bed Gang que infelizmente não pôde assistir à trajectória de sucesso do grupo. Momento full-circle que levou muitos às lágrimas e que dava a noção do quão importante era aquela noite para a família WBG.
“Não quero saber se bebem água Luso ou de Monchique, a água da fonte não se paga. Fizemos este festival gratuito para vocês, de nós para vós, de nós para nós”, rematou Gson, num statement que resume na perfeição a filosofia em torno do Sotaques, um festival organizado para a comunidade, numa lógica de democratização e agradecimento, que teve uma adesão em massa por parte de muitas faixas etárias, dos adolescentes aos casais mais velhos, e de muitos nomes relevantes no meio musical que não quiseram perder a edição de estreia de uma iniciativa como esta. Os Wet Bed Gang já eram V-Block Winners mas, mais do que nunca, conseguiram materializar esse (verdadeiro) sucesso numa noite sem igual que fica para a história.