A Zona Franca aqui é um novo ciclo interdisciplinar que traz coreógrafas e músicas a palco com propostas no campo das artes performativas. Um espaço de apresentações a ter lugar entre Guimarães e Braga, numa parceria entre o Centro Cultural Vila Flor, gnration e Theatro Circo. Em tempos de tumultos, agora feitos de hiper-taxas como franquias bélicas, a existência de zonas francas revestem-se ainda de maior pertinência, de contra-ponto. Além do mais, da palavra franca haveremos de aproveitar o sentido pleno da sinceridade e honestidade, nada a esconder. A estreia desta Zona Franca contou com a primeiríssima criação entre a coreógrafa e bailarina Vera Mantero e a compositora e trompetista Susana Santos Silva. E é caso para perguntar como ninguém se lembrou disto antes. Vera e Susana trazem “Cloud Nine (Nuvem Nove)”, que foi desenvolvida numa residência de criação na Bélgica, no BUDA Arts Centre em Kortrijk, em Dezembro último. Espaço, aliás, a que deverão regressar, num dar de volta, a 15 de Março com esta criação no contexto do Night Air Festival. Mas a estreia deu-se no fim-de-semana passado, dia 7 inserido no festival GUIDance na blackbox do CIAJG em Guimarães, e no dia 8 na blackbox do gnration onde marcámos presença.
Devemos a Luke Howard com On Modifications of Clouds, de 1802, as primeiras sistematizações das formas das nuvens. Dai vieram os nomes dos “seres” que vemos povoarem os céus nos dias em que dá para ficarmos de papo para o ar a ver a real-imaginada coreografia das nuvens, como no livrinho-diário de Goethe, em que se descrevem ciclos de formas em metamorfoses condensadas. É nesse seu O Jogo das Nuvens que se assume “a observar e registar de forma mais sistemática os fenómenos atmosféricos, para verificar e representar o modo como se desenrolam os conflitos entre as regiões superiores e inferiores, as mais secas e as mais húmidas”.
Vera e Susana assumem em pontos de partida textuais, criações literárias descritivas da vontade: “two bodies. moving. suspended in time. flowing in space. breathing. bewildered. feet rooted on invisible soil. groundless. hands fabricating the light that gives birth to hidden worlds. does life happen when we breathe? or does it happen only when suspension happens?”. Também para ambas as criadoras o jogo da descrição se liga com questões da existência, análogo aos descrito planos de sentido metafórico de Goethe com as nuvens. Para Vera Mantero e Susana Santos Silva, quando apontam para as nuvens, designam a nona com a boa, a que parece mais interessar. Trazem-na até mais perto, até dela fazer chão, onde assenta o seu plano discursivo, dos corpos, da música e da dança entre elas.
Como estender uma criação sobre o linóleo, apontam os primeiros tempos. Num exercício físico que contempla uma impressão de frente e verso, nuvens e corpo de texto, matéria condensada para o que seguirá. É assim que acontece também na transformação das nuvens. O jogo de simetrias cruzadas dos figurinos aponta para o que virá depois. A cintura como plano espelho, padrão da região inferior de um quase padrão da região superior da outra, esperam-se cruzamentos. E quando os corpos não dançam, recitam para que se imaginem os jogos de dança. E voltamos a pensar no sentido goetheano das nuvens — descrever para relacionar com os planos da existência. A projecção video de uma luz que atrai os seres nocturnos efémeros, também eles corpos trazidos da metamorfose, intensifica essa visão ainda que nocturna, onde as nuvens se intuem.
Santos Silva tem feito das suas apresentações a solo — e estivemos maravilhados nesse final de tarde no Jazz em Agosto de 2023 — exercícios transdiciplinares, entre música e imagens em movimento, recolhas de campo e outras instrumentações para além da trompete e surdina. É assim também a música contida no estimulante All the Birds and a Telephone Ringing, registo a solo de 2022, onde encontramos o tema chave “For reasons a human cannot divine”. A escuta deste trabalho discográfico, impulsiona a compositora nos domínios da coreografia dos sons, e fá-la imaginar — estamos nessa ideia — um linóleo como chão em desejo. Na outra parte do duo está Mantero, que tem apontado mais recentemente, dentro suas inúmeras coreografias, para uma noção de criação em tempo real. Foi e é assim com “Aqui, agora, neste momento”, aliada na iniciativa a Elizabete Francisca e Mariana Tengner. Uma coreografia desenrolada na vertigem da improvisação como ferramenta de criação, alicerçada também na música improvisada em palco. E nisto estendem-se ponte óbvias que ligam ambas as criadoras que vemos em diante em “Cloud Nine”.
Adiante, claro que há lugar para o mais esperado à partida, e vemos Mantero em dança sobre a trompete de Santos Silva, mais que fácil de prever, tão fácil de gostar. Duo que poderia perdurar tempo infindo, afinal estávamos nas nuvens, e não se vislumbrava uma daquelas que trazem a tormenta, antes em curso imaginámos aquelas que chamamos carneirinhos. Há ecos do fraseado na trompete, manipulações que permitem a vinda de cintilantes timbres, a estender a luz rasante sobre o linóleo, afinal na tal nuvem. Haveria contudo um sentido transdiciplinar e voltavam as imagens em movimento a trazer um dos melhores momentos da criação. Bandos de gralhas sob o céu nublado, desafiam o plano da estabilidade, juntando a dança da bailarina com pés bem assentes, onde tronco e membros fazem asas, que dão para voar. Há uma esclarecedora projeção na parede da silhueta da bailarina, um magnético jogo de sombras, sob uma extensa textura trazida da trompete. Estivéssemos em pé, e não sentados, e o efeito de uma mareagem seria certo e sabido. Refletem sobre um chão que pisamos e que bem pode ser das nuvens, espaço de criação quase por definição — quando se está com a cabeça num desses melhores lugares, em evasão. Esta mesma nuvem nove suporta as criadoras num jogo de dança dos elementos, que transmuta os seres, a bailarina que suspende a trompetista que dança com a trompete desafiada pela surdina a percorrer chão afora, a caminhar na nuvem.
E como sair das nuvens? Goethe escrevia “A nuvem sobe, adensa, esgarça, desce”, o mais que óbvio, não antes descrito. Deveríamos ter sabido esperar a chegada de um nevoeiro, em que as nuvens põem os pés no chão, para dela — da nona — sairmos sem perder o encanto do vivido.