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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 31/07/2024

Venham daí outras tantas.

Uma vanguarda chamada Jazz em Agosto: 40 edições a correr riscos

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 31/07/2024

O Verão seria um tempo com menos interesse sem o Jazz em Agosto. O ano seria mais monótono sem os primeiros dias de Agosto com esse estimulante jazz. O estio em Lisboa seria mais sufocante sem as noites no Anfiteatro ao Ar Livre — também a ouvir os aviões a passar — do Jardim da Gulbenkian nos primeiros dias de Agosto. Há muito que se tornou fundamental viver a música contando com o que se vai ver e ouvir a cada edição do festival — este ano atinge as 40 edições e recusa fazer disso uma celebração, escolhendo antes seguir em frente, sem cedências, no rumo da vanguarda e diversidade na música jazz.

Corria o ano de 1984 e o Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte — ACARTE — da Fundação Calouste Gulbenkian lançava a pedra de toque. As quartas-feiras do mês de Agosto eram programadas com concertos ao fim da tarde no Anfiteatro ao Ar Livre com um propósito. Nas palavras da sua criadora, Madalena Azeredo Perdigão: “Numa época caracterizada pela assimilação passiva de palavras, de imagens e de sons, em que os estímulos à criatividade são tão raros e tão fracos, bom é que se propiciem oportunidades do tipo deste ciclo de concertos de jazz”. A centelha havia surgido antes, pelas primeiras passagens de jazz na programação anual, na década de setenta, com o Modern Jazz Quartet de Milt Jackson, John Lewis e companhia, e com a assembleia libertária de jazz que foi a Globe Unity Orchestra, partindo da ideia de Alexander von Schlippenbach, ao juntar o trio de Peter Brötzmann ao quarteto de Gunter Hampel e ao quinteto de Manfred Schoof, uma verdadeira tour de force em grande escala. Anos depois, no Verão de 1984, abria-se uma porta que fez uma corrente de ar que perdura. Nesse ano, e com direcção artística de Rui Martins (como director do Hot Club), foram os concertos do Quinteto de Maria João, o Quinteto Xis, o Sexteto de Jazz de Lisboa e o Quarteto de António Pinho Vargas que fizeram o programa das festas. Logo depois, no ano seguinte, a programação abria-se irremediavelmente além fronteiras, físicas e da estéticas do jazz, com a entrada de Rui Neves como consultor da programação e mais tarde como director artístico do Jazz em Agosto.   

Na mudança de milénio, escreveu António Curvelo no Público intitulando o evento como “O processo revolucionário em curso“, colando assim a sigla PREC ao jazz programado pelo ACARTE da Gulbenkian para a 17ª edição (ano 2000) do Jazz em Agosto. No mesmo artigo, descreve-se a iniciativa como sendo “o maior e mais ambicioso festival de jazz feito em Portugal”, isto depois da “nuvem de apreensões” em 1999 sobre a continuidade do certame. Em 2024, 40 anos depois do propósito seminal do ciclo de jazz, a razão mantêm-se válida no que toca ao estímulo imprescindível na educação pela arte dos sons e das ideias. “Somos o que vemos, o que pensamos, o que lemos e o que ouvimos”, assim despontam nas palavras da apresentação da programação da presente edição por parte de José Pinto e Rui Neves — directores executivos e artísticos, respectivamente —  que assumem que interessa, na vez de comemorar, continuar a dar atenção “ao jazz e à música criativa menos acomodada do tempo presente”. 

Destes perto de 400 concertos que tiveram lugar no Jazz em Agosto, há os que podem ser revividos. Há o registo do concerto de 1985 do Terje Rypdal Trio & The Chasers em filme de Oliveira Costa disponível nos arquivos RTP. Ainda nesse ano, a mítica dupla actuação da Sun Ra Arkestra ficou parcialmente gravada em dois segmentos de 50 minutos pela RDP Comercial, assim como o concerto de Dave Holland pela RTP. O World Saxophone Quartet de Julius Hemphill, Oliver Lake e companhia tocou na 4ª edição (1987) e consta-se haver um registo disso. Em 2008 surge a Jazz Em Agosto Series como uma colecção de gravações ao vivo promovida pelo festival em associação com a Clean Feed. Essa série fica inaugurada nesse ano com The Hard Blues: Live In Lisbon de Julius Hemphill Sextet gravado na 20ª edição em 2003, e com o registo de Otomo Yoshihide’s – New Jazz Quintet de 2004 com ONJQ – Live In Lisbon. Em 2010 a Clean Feed prossegue na série com Live In Lisbon do Peter Evans Quartet. O concerto de 2011 de Hairybones (Paal Nilssen-Love, Massimo Pupillo, Peter Brötzmann e Toshinori Kondo) fica editado como Snakelust (To Kenji Nakagami) em 2012. Em 2015 tocava o Red Trio de Gabriel Ferrandini (bateria e percussão), Hernani Faustino (contrabaixo) e Rodrigo Pinheiro (piano) com John Butcher (saxofones tenor e alto) gravando Summer Skyshift para a Clean Feed e inscrevendo uma formação de músicos portugueses na mesma série dos concertos do Jazz em Agosto. A série que tem os últimos títulos — a pedir um retomar — com o concerto de Pharoah & The Underground, que juntou o colectivo São Paulo Underground, de Chicago, formado por Guilherme Granado, Matthew Lux, Mauricio Takara e Rob Mazurek, ao eterno soprador de palhetas Pharoah Sanders. Este concerto foi então replicado em duas edições complementares, Primative Jupiter numa versão em vinil mais reduzida e outra como Spiral Mercury em CD. 

A discografia do Jazz em Agosto completa-se com a edição The Paul Cram Orchestra: Live in Lisbon pela canadiana Ombú em 2004, retirada do concerto no Anfiteatro ao Ar Livre nesse mesmo ano. A passagem do duo de piano e violino com Jorge Lima Barreto e Carlos Zíngaro ficou registada em Kits 2, editado pela Numérica em 2008. No ano de 2014, o festival recebia o “European Jazz Network Award for Adventurous Programming”, evocando o júri a distinção porque: “O festival tem uma forte identidade, desenvolvida ao longo de três décadas. Apresenta sempre grandes artistas e é actualmente um festival importante na história do jazz europeu. […] Que sítio encantador para apreciar boa música!”. Desse ano foi editado Oakland/Lisboa pela RougeArt em 2015, o registo do concerto do MMM Quartet composto por Alvin Curran (piano, sintetizador, samples), Fred Frith (guitarra eléctrica), Joëlle Léandre (contrabaixo) e Urs Leimgruber (saxofone tenor e alto). O mais recente registo apresentado como discografia oficial do Jazz em Agosto é o do concerto em 2016 do quinteto electrizante e post-punk de Frank Gratkowski — Z-Country Paradise – Live In Lisbon saiu pela Leo Records em 2018. Todo o mais estará gravado nas memórias emocionais de cada uma das pessoas que nestas edições assistiram e correram os riscos musicais das propostas apresentadas.



De 1 a 11 de Agosto vão ter lugar 17 concertos que não saberemos destacar à partida, cabendo a justa relevância vir da experiênia do vivido. Sabemos sim que destas 40 edições muitos ajudaram a marcar o rumo da história da música, de Agosto e do Jazz.

O concerto de abertura, dia 1 (quinta-feira) às 21h30 — já esgotado — tem o saxofonista tenor James Brandon Lewis com Red Lily Quintet, composto por Kirk Knuffke em corneta, Silvia Bolognesi no contrabaixo, Tomeka Reid no violoncelo e Chad Taylor na bateria. Também com lotação esgotada está a apresentação de Helena Espvall (violoncelo e electrónica), Maria da Rocha (violino e electrónica) e Norberto Lobo (guitarra elétrica, electrónica) às 18h30 de dia 2 (sexta-feira), quando às 21h30 terá palco Mendoza Hoff Revels para Echolocation, com James Brandon Lewis e Chad Taylor a voltarem ao mesmo palco da noite anterior juntando-se agora a Ava Mendoza (guitarra eléctrica e composição) e a Devin Hoff (baixo eléctrico e composição). Dia 3 (sábado) às 18h30 haverá “The Rite of Spring – Spectre d’un Songe”, para revesitar a obra Stravinsky A Sagração da Primavera, em dois pianos, com Sylvie Courvoisier e Cory Smythe. Depois, às 21h30, serão as guitarras de Bill Orcutt Guitar Quartet com, para além do próprio Orcutt, as participações de Ava Mendoza, Shane Parish e Wendy Eisenberg — todos com guitarras eléctricas. Dia 4 (domingo), a fechar o primeiro conjunto de dias de concertos duplos, volta Ava Mendoza às guitarras, desta feita juntando-se ao violino de Gabby Fluke-Mogul para apresentarem “AM/FM”. 

Dia 5 (segunda-feira), volta-se ao ritmo de um concerto por dia às 21h30, com MOVE de Yedo Gibson (saxofone tenor), Felipe Zenícola (baixo eléctrico) e João Valinho (bateria). Dia 6 (terça-feira) é Ricardo Jacinto em violoncelo e electrónica, Gonçalo Almeida em contrabaixo e electrónica e com Nuno Morão na bateria e percussão, que juntos formam The Selva, focando-se no último trabalho do trio Camarão-Girafa. Dia 7 (quarta-feira) Brandon Seabrook cruzará a sua guitarra eléctrica e banjo com o contrabaixo de Pascal Niggenkemper e a bateria e elctrónica de Gerald Cleaver. Dia 8 (quinta-feira) Darius Jones em saxofone alto apresenta fLuxKit Vancouver, que trará a evocação do movimento Fluxus contando com as instrumentações de Gerald Cleaver em bateria, Jesse Zubot e Josh Zubot nos violinos, Peggy Lee em violoncelo e James Meger no contrabaixo.

Dia 9 (sexta-feira) volta-se ao regime duplo de concertos, primeiro com dieb13 (na composição, vídeo e gira-discos) para Beatnik Manifesto, e para tal conta com Camille Emaille (bateria e percussão), Erik Carlsson (bateria), eRikm (electrónica), Billy Roisz (electrónica), Sandy Ewen e Finn Loxbo (guitarras eléctricas), Susanna Gartmayer e Hans Koch (clarinetes baixo), Anna Högberg (saxofone alto), Guro Moe e Matija Schellander (contrabaixos), e Phil Minton e Karolina Preuschl (nas vozes). Ainda nesse dia (9), às 21h30, revisitar-se-á a música de Anthony Braxton com The Locals de Pat Thomas (piano, melódica), Alex Ward (clarinete), Evan Thomas (guitarra eléctrica), Dominic Lash (baixo eléctrico) e Darren Hasson-Davis (bateria). Dia 10 (sábado) às 18h30 há Made of Bones, a formação de músicos portugueses com Duarte Fonseca na bateria, João Clemente em guitarra eléctrica, Nuno Santos Dias no teclado Waldorf Zarenbourg e Ricardo Sousa em contrabaixo, para apresentarem Genera of Birds. Depois, às 21h30, o palco será de Peter Evans para Being & Becoming: Ars Memoria, com a melodia do trompetista Evans junto ao vibrafonista Joel Ross e aliada à linha de contrabaixo e bateria formada, respectivamente, por Nick Jozwiak e Michael Shekwoaga Ode.  

Dia 11 (domingo), dia de encerramento de Jazz em Agosto, ficará a cargo, às 18h30, dos Black Duck de Bill MacKay (guitarra eléctrica), Douglas McCombs (guitarra eléctrica e baixo eléctrico) e Charles Rumback (bateria). Depois, às 21h30, a plateia — já esgotada — do Anfiteatro ao Ar Livre poderá ver um palco repleto de uma formação alargada de 15 músicos com a Fire! Orchestra de Mats Gustafsson (saxofone barítono e flauta), com Delphine Joussein (flauta e electrónica), Susana Santos Silva e Goran Kajfes (trompetes), Mats Aleklint (trombone e sousafone), Heida Karine Johannesdottir (tuba), Fredrik Ljungkvist (clarinete e  saxofone tenor), Lars-Goran Ulander e Anna Högberg (saxofones alto), Josefin Runsteen (violino), Julien Desprez (guitarra eléctrica), Alexander Zethson (teclado), Johan Berthling (contrabaixo), David Sandström (voz e bateria) e Blanche Lafuente (bateria e electrónica). O fecho com um ensemble alargado em jeito de grande festa vai-se implatando como uma formulação identitária nesta celebração do risco que é o Jazz em Agosto. Que venha a música!


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