*Este artigo foi publicado originalmente em inglês no Bandcamp Daily
Rafael Toral é um mestre na arte da redução. O renomado compositor português trata o som como material escultórico, esculpindo com habilidade camadas de guitarras processadas para desenterrar formas tridimensionais que desafiam convenções. Esse processo meticuloso definiu álbuns cruciais como Sound Mind Sound Body (1994), Wave Field (1995) e Violence of Discovery and Calm of Acceptance (2001), fase imperial em que lançou as bases do expansivo Space Program, composto por várias partes.
Ao longo de um ambicioso projeto de 13 anos, que decorreu entre 2004 a 2017, o Space Program deu origem a seis álbuns, complementados por vários workshops, gravações e actuações ao vivo. Durante este período, Toral introduziu um vasto arsenal de instrumentos e dispositivos construídos pelo próprio, incluindo um conjunto de ondas sinusoidais controladas por luvas, um amplificador modificado de bolso e um gerador de ruído branco controlado por um theremin. Além disso, o músico colaborou com um conjunto rotativo de músicos de renome, como Sei Miguel, João Paulo Feliciano, Fala Mariam e David Toop. “Aquilo que estou a fazer, que eu saiba, nunca foi feito antes”, confessava, há uns anos, numa entrevista ao Público. O desafio, explica, consiste em abordar a música eletrónica com a mentalidade de um músico de jazz, realçando a fisicalidade da performance ao vivo ao mesmo tempo que se prioriza a simplicidade do gesto: mente, corpo e som em harmoniosa simbiose.
O mais recente álbum de Toral, Spectral Evolution, é o culminar de 30 anos de destemida reinvenção, unindo as pontes entre as origens ambientais dos primórdios e o longo fascínio do músico pelas progressões dos standards de jazz. Além disso, representa um marco significativo na história da editora Moikai, do polímata Jim O’Rourke, que selou este lançamento depois de um silêncio discográfico com mais de 20 anos.
A lista que se segue em baixo serve como guia pela discografia a solo de Rafael Toral, juntamente com uma seleção das principais colaborações do artista disponíveis no Bandcamp.
[Rafael Toral] Sound Mind Sound Body (1994)
Após uma breve experiência pela vibrante cena musical portuguesa, onde se destaca a passagem pela formação de vanguardistas da pop de 80 como Mler If Dada e Pop Dell’Arte, Rafael Toral procurou explorar paisagens mais dissonantes. Apontando para territórios mais desalinhados, Toral, juntamente com o cúmplice João Paulo Feliciano, mergulhou no oblíquo através de projetos como No Noise Reduction e SPQR. O seu primeiro álbum a solo, Sound Mind Sound Body, é uma extensão fluida desses esforços. Inspirado pela música expansiva de John Cage, Alvin Lucier e Brian Eno, Toral explora o potencial da guitarra dentro de uma estrutura ambiental, transformando o som em novas e hipnotizantes formas. Das valsas longas e pacientes de “AER 4” aos acordes dissonantes de “AER 7 E”, herdeiros do idioma radical do guitarrista Derek Bailey, Sound Mind Sound Body representa a porta de entrada perfeita para o ambicioso corpo de trabalho que se seguiu.
[Rafael Toral] Wave Field (1995)
Foi durante o concerto de abertura dos Buzzcocks, que antecedeu a única passagem dos Nirvana por Portugal em 1994, que Toral tropeçou, por acaso, na “essência flutuante” de Wave Field, o segundo capítulo de uma fase ambiental que inclui alguns dos seus maiores marcos discográficos. Gravado ao longo de uma única tarde, Wave Field compreende dois drones extensos e sinuosos, feitos de feedback e ruídos brancos meticulosamente moldados ao longo de meses de trabalho passados em estúdio, evocando as texturas concretas do músico Markus Popp (aka Oval). A capa é uma homenagem direta ao seminal álbum Loveless, dos irlandeses My Bloody Valentine, nome maior do movimento shoegaze, com a Fender Jaguar de Toral diante de um rodopiante cenário de cores e nebulosa. Tal como acontece em Sound Mind Sound Body, o disco apresenta uma ruidosa parede de som errante, incorporando habilmente fuzz e feedback para conjurar a “deficiência acústica da sala” onde encontrou o “som eléctrico-flutuante” que despertou a sua inspiração em primeiro lugar.
[Rafael Toral] Violence of Discovery and Calm of Acceptance (2001)
O compromisso de Toral para com a disciplina levou-o a criar Violence of Discovery e Calm of Acceptance. Gravado ao longo de sete anos (a peça mais antiga remonta ao ano de 1993), o disco é considerado pelo seu criador como o auge da sua fase ambiental, que continuou até ao início do Space Program em 2004. O disco, que assinala a estreia de Toral pela Touch, é mais um alicerce num catálogo recheado de drones gerados por guitarras em constante mutação, exaltando o som dos “milhares de concertos rock a reverberar numa sala distante” que o músico aspirava alcançar no anterior Wave Field, como contou, em tempos, ao New York Press. Aqui, a sua proeza enquanto avançado escultor sonoro é inigualável, esculpindo intrincadas camadas de fragmentos sonoros até que a sua forma final seja revelada na sua totalidade.
[Rafael Toral] Space (2006)
O primeiro volume do Space Program é uma magistral lição de improvisação electroacústica imersiva. Justamente intitulada de Space, esta trifecta de composições serviu como ponto de partida para um longo e rigoroso projeto que englobou tanto trabalhos a solo como em colaboração, cruzando com mestria o jazz e eletrónica a partir de uma série de instrumentos construídos pelo próprio. O objetivo, diz Toral, passa por criar algo a partir do zero, desafiando a própria essência da composição ocidental. Fruto de uma recolha e seleção de actuações ao vivo, gravadas entre 2004 e 2005, Space corporiza o ideal impetuoso de Toral para mergulhar nas nuances da investigação espacial auditiva. Um dos registos mais arrojados do músico lisboeta, Space combina o som evocativo dos pássaros a chilrear com murmúrios de trompete processado e ondas sinusoidais que desaguam numa tempestade de ruídos sinistros mas cativantes, num jogo ardiloso onde som e silêncio possuem tanto significado como as próprias melodias.
[Rafael Toral & Jim O’Rourke] Electronic Music (2010)
Uma parte substancial da discografia recente de Toral é dedicada à edição de cassetes de arquivo e colaborações ao vivo. Salvo algumas exceções, como é o caso de Under the Sun e Harmonic Series 3, a maioria dos lançamentos é publicada em formato digital, destacando a particular relação corporal do músico com a música eletrónica. Entre os lançamentos desta série, que apelidou de Noise Precision Library, destaca-se a colaboração com Jim O’Rourke, intitulada Electronic Music. Esta proveitosa relação de cumplicidade, marcada por uma imensa camaradagem (o papel de O’Rourke na ligação de Toral à Drag City sublinha a profundidade desta ligação), é palpável no único álbum que lançaram juntos. Gravado por volta de 1997, o álbum mistura as meticulosas manipulações analógicas de O’Rourke com os circuitos de feedback eletrónicos feitos à medida por Toral, cruzando sem esforço ruído e melodia num único tecido sónico. O resultado é uma tapeçaria perfeitamente coesa que mais parece ter sido untada por um único par de mãos.
[Rafael Toral & João Pais Filipe] Jupiter and Beyond (2018)
A música de Toral sempre possuiu a estranha capacidade de nos transportar para os confins do mundo, explorando os recantos da nossa psique através da sua música envolvente. Mas em Jupiter and Beyond, criado em colaboração com o percussionista e escultor sonoro João Pais Filipe, Toral eleva a exploração cósmica a novos patamares. Guiado pelo submundo percussivo de Pais Filipe, criados a partir dos seus próprios gongos, pratos e sinos, juntamente com o uso inventivo de feedback por Toral, este álbum flutua como uma nave espacial em direção ao desconhecido. Ao longo de dois monolíticos movimentos — justamente intitulados de “Jupiter” e “Beyond” —, o duo conduz-nos pelas profundezas do espaço, criando algo sombrio e sedutor pelo caminho. À semelhança do que acontece na trilogia de lançamentos da série Space Elements, esta imersiva odisseia esbate as linhas que separam o devaneio introspectivo da aventura interplanetária, hipnotizando-nos com as infinitas possibilidades que vai revelando.
[MIMEO/John Tilbury] The Hands of Caravaggio (2002)
Gravado durante uma atuação na edição de 2000 do festival AngelicA, em Bolonha, The Hands of Caravaggio reúne 13 reputados compositores da vanguarda, incluindo Toral, Keith Rowe, Kevin Drumm (no lugar de Christian Fennesz) e o pianista e polímata John Tilbury. Juntos, procuraram explorar as rápidas evoluções tecnológicas e o impacto tangível destas na vida quotidiana, entrelaçando um intrincado mosaico de experimentação microtonal com a grandeza do concerto clássico. Inspirando no drama pungente da então recém-descoberta obra-prima de Caravaggio, “A Tomada de Cristo”, este registo funde com brilhantismo a improvisação electroacústica disruptiva dos seus intervenientes mais desalinhados com os implacáveis mas pacientes “golpes” de piano de Tilbury. A contribuição de Toral aqui não é meramente a de acrescentar textura, mas sim ampliá-la meticulosamente, algo que consegue ao incorporar a sua Fender Jaguar num sofisticado sistema modular analógico, navegando-o com uma identidade inconfundível no meio de um conjunto diversificado de improvisadores de primeira linha.
[Rafael Toral] Spectral Evolution (2024)
Spectral Evolution representa “o mais difícil e ambicioso disco” na discografia de Toral. É também, nas palavras do autor, o maior feito da sua carreira. Apesar de tais afirmações serem comuns entre artistas que se encontram a promover os seus últimos lançamentos, Spectral Evolution tem sido apontado em diversos quadrantes como um dos melhores álbuns de 2024. O álbum, que sugere um desvio inesperado em direção às progressões dos standards de jazz, marca o regresso de Toral à guitarra através dos espíritos de “Rhythm Changes”, de George Gershwin, e “Take the ‘A’ Train”, de Duke Ellington, torcendo estas canções de dentro para fora e transformando-as em algo inteiramente novo e irreconhecível. O resultado é um laboratório de hipóteses onde som, textura e tom colidem numa tempestade incessante de ambientes microtonais, prestando homenagem às suas influências ao mesmo tempo que constrói corajosamente a sua própria identidade. Livre e destemidamente experimental, Spectral Evolution é mais uma obra-prima no imersivo repertório que Toral foi desenhando ao longo dos últimos 30 anos. Música inspirada e inspiradora que transforma filosofia e matemática em redentora poesia sonora, estabelecendo novos paradigmas para a música baseada em guitarra que o futuro reserva.