pub

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 07/10/2024

De Amaro Freitas a Yamandu Costa.

Um dia no São Paulo Jazz Weekend, onde o jazz brasileiro vive

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 07/10/2024

A previsão para o sábado, 28 de setembro, era de nuvens com a aparição do sol em alguns momentos. O receio estava na possível mudança repentina do tempo que poderia trazer uma chuva. Felizmente, o clima se manteve ameno, variando entre o vento frio e o sol quente. Assim, criou-se um ambiente agradável para que os amantes do jazz apreciassem a vanguarda brasileira e os medalhões da arte mais mutável entre todas as artes.

Na sua primeira edição, o São Paulo Jazz Weekend, realizado em dois dias no Memorial da América Latina, em São Paulo, prestou homenagem ao maestro e pianista Laércio de Freitas, falecido em 5 de julho de 2024, que foi Foi integrante da Orquestra Tabajara, de Severino Araújo, e do Sexteto de Radamés Gnatalli, tendo trabalhado com Elza Soares, Marcos Valle, Maria Bethânia, João Donato ou Erasmo Carlos. O gigantesco palco fez jus à importância e ao brilhantismo do maestro (o Tio), tanto na estrutura quanto na curadoria dos músicos que subiram ali para compartilhar suas expressões artísticas. Sem ativações de marcas e distrações do entretenimento, a música foi a protagonista, mantendo os presentes atentos ao que ecoava.

Às 11h15 da manhã, ainda com um público pequeno, mas com uma enorme disposição, a Escola do Choro de São Paulo abriu os trabalhos com a Roda de Choro, um gênero instrumental brasileiro criado no século XIX. Geralmente cadenciado pela flauta, bandolim, violão, pandeiro, cavaquinho e clarinete, o estilo teve como seus maiores expoentes Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha, João Pernambuco, Villa-Lobos, Radamés Gnattali, Waldir Azevedo, Jacob do Bandolim. A leveza do choro (ou chorinho) trouxe suavidade para o calor de aproximadamente 30 graus (para mais) no meio do dia. O andamento “triste” e dançante era feito por uma roda formada por 7 músicos que reafirmaram a vivacidade dessa importante manifestação cultural do Brasil.

Essa “brasilidade” continuou em evidência com os Irmãos & Brothers cozinhando um samba com jazz. O quarteto é formado pelas duplas de irmãos Vitor Cabral (bateria) e Leandro Cabral (piano), e Sidmar Vieira (trompete) e Sidiel Vieira (baixo acústico) — esses dois também formam o duo Os Vieira. Com um concerto totalmente autoral, eles iniciaram a tarde cativando os que se achegaram.

Quem quis, dançou ao som do samba-jazz com referências ao Vassi, um dos toques do candomblé. Vitor disse que a criatividade deles está na forma de compor e tocar, mas não para intitular seus temas. Por isso, os títulos fazem referência a cada um dos estilos abordados, tendo uma numeração para diferenciá-los. Mas entre as coisas mais importantes, essa é a menos importante, tendo em vista a sincronia que os quatro têm em cada uma das execuções. Um complementa o outro, inclusive nos momentos individuais. O respeito e a admiração que possuem por seus pares faz com que a energia desenvolvida entre eles contagie quem está na plateia.

Ao ReB, horas depois da apresentação, Sidiel disse que antes de formarem o grupo já tocavam na noite e também gostavam do que faziam. “Só foi uma continuação daquilo que a gente estava fazendo”, observa. “Isso aconteceu quando a gente se viu na necessidade de fazer uma música que a gente acredita. Que sai do coração e se expande quando você se encontra com outras pessoas que pensam da mesma forma que você”.

A escolha do samba-jazz como guia surgiu a partir de uma pesquisa que fizeram (fazem) de um período em que o gênero teve força no Brasil, entre os anos 1950-60. “A sonoridade e tudo que essa música tem foi um chamariz para a gente querer tocar e compor. Tem também a identidade cultural do músico brasileiro, tendo referência da nossa terra, de onde a gente está situado e, ao mesmo tempo, tendo referência da música, que de uma certa forma esses músicos ouviam nas rádios e nos discos… Tanto é que as formações desses grupos é muito parecida com a dos grupos de jazz”.

Mais intimista, a multi-instrumentista do Rio de Janeiro Carol Panesi celebrou a natureza e o feminino, fazendo diferentes variações rítmicas, indo do baião ao ska, para evocar os sons da floresta. Ela tem domínio sob o violino, mas também comanda o piano, o pífano e o microfone, cantando canções do álbum Natureza é Casa (2023). Ao lado de Ajurinã Zwarg (percussionista) e Fábio Leal (guitarrista), ela mantém o nível lá em cima com músicas aspiracionais que evocam a regionalidade do país. Para quem não a conhecia, essa foi uma ótima oportunidade de expandir os horizontes para além dos algoritmos. E exatamente por fugir das instruções deste ditador de tendência e não considerar números, o SP Jazz Weekend pode ensinar sobre curadoria — assinada pelo baixista Thiago Espírito Santo — para as dezenas de festivais brasileiros.



A junção de músicos consagrados com aqueles que estão ganhando destaque, principalmente os que não estão nos grandes circuitos nem fazem parte das playlists de jazz BR, se provou assertivo. Mais um destes é Henrique Mota. Acompanhado do baterista Cuca Teixeira e de Iury Batista (baixo acústico), o pianista — graduado em música erudita — encantou a todos com sua habilidade e virtuosismo. Usando sua técnica apurada, ele conduziu as músicas que compõem o disco É Pra Jazz (2024). O bebop deixou a audiência atônita, aguardando a próxima nota, observando as mãos dele deslizar pelas teclas, em alguns momentos com uma certa velocidade, e o que viria quando cada um tomasse a frente. Querendo ou não, a expectativa sempre era superada.

Assim que saiu do palco, Henrique Mota disse que o trio está junto há mais de dois anos, por isso a conexão deles fica tão visível. “Me sinto privilegiado pela oportunidade, que é um incentivo pra eu continuar fazendo música e a levar para lugares que a gente não sonha”. Ele também observa que o cenário do jazz, da música instrumental e improvisada no Brasil tem um nicho, que ainda não é tão grande. “Mas a gente está aqui para ser autêntico e pra fazer o que a gente acredita. E se você faz o que acredita, tem mercado. Acredito que ainda falta muito para desenvolver e evoluir, mas são oportunidades como esta que contribuem para que aconteça esse crescimento”.



A autenticidade citada por Mota citou fez com que Amaro Freitas conquistasse o mundo com sua forma ímpar de transmitir a mensagem que deseja usando o piano como voz. Às 16h10, ele começou o que seria um concerto apoteótico. Tudo se inicia de uma forma tranquila e logo vai ganhando corpo, ginga, suingue. Sidiel Vieira o acompanha no baixo acústico e Rodrigo “Digão” Braz é o responsável pela cozinha rítmica. A bateria fica de lado, virada na direção do piano do outro lado do tablado. Digão é canhoto, então a caixa e o chimbal são posicionados no lado direito do seu corpo.

No andamento, Amaro introduz temas de Sankofa, mas o seu foco mesmo é o recém-lançado Y’Y (Ye-Ye). Sempre sorridente, ele faz trocas, talvez disputas ou conversas com seu baterista, que retribui os sorrisos. Isso também acontece com Sidiel, porém, o lance está na ligação entre piano e bateria. Quando o primeiro instiga, o segundo responde de forma efusiva. Tem uma certa psicodelia, é rock n roll, jazz e tudo o que comportar. Por sair dos limites, o pianista pernambucano tem conquistado o mundo e diferentes gerações. Quando inicia técnicas do piano preparado, introduzidas por John Cage, a atenção é redobrada. Para fazer os sons da floresta amazônica, usa chocalhos, toca apitos e uma espécie de flauta indígena.

O ápice do ápice acontece quando Amaro toca “Gloriosa”, uma homenagem à sua mãe Rosilda. Para ajudá-lo, ele convida o público para reproduzir os acordes. Segundos depois, ele está regendo um coral improvisado, que solfejava balançando os braços e dançando. Ao final, tinha tempo para mais uma música, mas tudo que estava programado acabou. Então, seguiu a cartilha do jazz: improvisou. Quem estava sentado, se levantou diversas vezes para aplaudir. Um espetáculo que dificilmente será repetido. Como o próprio disse minutos antes do show: “O jazz te permite ter uma experiência única a cada concerto que você vai do mesmo artista”.



À medida que o sol ia se pondo, o vento gelado assumia a responsabilidade. Isso não quer dizer que o calor tenha ido embora. Com um fusion, e também jazz-funk, Scott Kinsey abriu a noite fria paulistana com o poder dos seus teclados e sintetizadores. Na companhia dele estavam Gary Novak (bateria), o uruguaio Francisco Fattoruso (contrabaixo) e o brasileiro Pedro Martins (guitarra). Como um bom bandleader, Kinsey deixou que seu guitarrista, que estava “jogando em casa”, fosse o protagonista desde os primeiros segundos. Pedro hipnotizou os ouvidos com solos magnéticos, fazendo qualquer um viajar somente com o efeito eletrizante do som.

Inicialmente, o mago Hermeto Pascoal viria depois de Kinsey para manter a onda psicodélica. Porém, semanas antes do SP Jazz, o show dele foi cancelado por causa de uma internação hospitalar para uma intervenção médica. Quem o substituiu foi outro gênio da música instrumental brasileira, Yamandu Costa, que aproveitou o momento para comemorar os 25 anos da icônica formação do Yamandu Trio com Edu Ribeiro (bateria) e Thiago Espírito Santo (contrabaixo). Juntos, mantiveram e ainda colocaram mais “alucinógenios sonoros” na atmosfera.

Em algum momento, no intervalo entre uma música e outra, alguém definiu Yamandu: bruxo. Isso pela forma que ele toca o violão. É frenético, endiabrado. No colo dele, o instrumento se transforma em mais um membro do corpo que responde aos comandos dos dedos, que correm pelas cordas com rapidez. Seguindo os mitos que permeiam os guitarristas de blues, ele é mais um que parece estar possuído quando assume o controle do instrumento.

Existe uma cumplicidade entre os três músicos. Não por acaso deu tão certo essa união. Porém, Yamandu se destaca. Tem um estilo cigano. Não parece ser humano. Tanto é que seu repertório é composto por obras autorais e de outros “monstros sagrados”: Baden Powell e Paulo César Pinheiro (“Vou Deitar e Rolar”), Tom Jobim (“Radamés y Pelé”), Mariano Mores (“Taquito Militar”), Geraldo Vandré e Théo de Barros (“Disparada”).

Antes de finalizar, Yamandu deixa seu violão ao lado do banco e vai tomar seu chimarrão sorrindo, enquanto Espírito Santo faz o solo. Na sequência, ele se une a Yamandu para colaborarem com Edu Ribeiro na bateria, cada um com uma baqueta batendo nos pratos e tambores. É surreal. Pela segunda vez, todos que estavam sentados se levantam para aclamar os três.

Antes das 23 horas, a noite foi encerrada com a divindade Dianne Reeves. Com muita simpatia, doçura, jazz, gospel, soul e uma pitada latina, ela se emocionou e emocionou. Fez juras de amor pelo Brasil, desejou amor, graça e paz a São Paulo, que imediatamente respondeu. Ela também fez as honras para que seu guitarrista Romelo Lubambo ganhasse destaque. Inclusive, a sintonia dos dois estava muito bem apurada. Os solfejos e scats também tiveram espaço. Em certo momento, o concerto se transformou num culto de alguma igreja negra americana. Assim como o jazz, aos 67 anos, Dianne Reeves continua na sua melhor forma.

No dia seguinte, o SP Jazz Weekend ainda teve Arismar Espírito Santo, Shai Maestro Trio e Seu Jorge com Daniel Jobim.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos