Em Lisboa, ao fundo da Calçada do Combro, após passar a bifurcação em que se opta pela Rua Poiais de S. Bento, encontra-se a pequena oficina de Tomás Miranda. Passam à porta dezenas de pessoas por dia, carros, elétricos… mas muitos não se aperceberão do pequeno tesouro que está ali. Da porta de vidro é possível observar vários instrumentos — antigos e recentes —, as respetivas malas de transporte e um balcão por trás do qual estão Tomás e Fábio a trabalhar. Entrar na pequena oficina, descer os degraus para lá da porta envidraçada, é uma passagem ao tempo real, ao aqui e agora, onde se dá nova vida a algo que depende de nós para se transportar para o universo e, simultâneamente, nos leva consigo de forma generosa.
Tomás Miranda, luthier de sopros, falou-nos do seu pequeno grande tesouro e de como chegou a ele, ao mesmo tempo que limpava cuidadosamente a campânula de uma antiga flauta de madeira.
Como foi o seu primeiro contacto com a música?
Em casa, o meu pai e o meu avô tocavam ambos banjolim. O meu pai tocava ainda flauta e guitarra portuguesa. Eu às vezes acompanhava-os à guitarra. Algumas músicas eram interessantes e era possível as tocarmos juntos. Nada profissional, mas servia para preencher o tempo. Penso que esse contexto contribuiu para criar um “bichinho” que se foi alastrando.
Mas como surgiu esta ideia de reparar instrumentos, de lhes dar vida?
Eu frequentava muito a Rua do Carmo e parava sempre numa montra que pertencia à loja do Custódio Cardoso Pereira. Na época, havia duas lojas dedicadas a instrumentos: a Santos Beirão, que era na Rua 1º de Dezembro, e a Custódio Cardoso Pereira, na Rua do Carmo. Então, eu parava ali muito em frente daquela montra e ficava fixado em alguns instrumentos de sopro, um deles era o oboé, que me chamava muito a atenção porque, além de não saber o nome desse instrumento, intrigava-me de tal maneira que fiquei apaixonado por aquelas formas. Isso trazia-me alguma inquietação e, por isso, ficava sempre a pensar porque é que aquilo me estava a acontecer, sentia que tinha uma atração enorme, mas nem sabia exatamente que instrumento era. Com o tempo, surgiu a oportunidade. Precisavam de alguém para a oficina e o meu irmão mais velho frequentava muito a loja. Mas estávamos em tempos diferentes. Enquanto eu estava cá fora, a olhar, a observar a montra, ele estava lá dentro, com as conversas dele. Como falava muito bem inglês na altura, ajudava no atendimento em inglês, nessa época quase ninguém falava. Eu estava cá fora e muitas das vezes nem sequer entrava, ia dar uma volta até que, quando surgiu a oportunidade por precisarem de alguém, lembraram-se de mim. Primeiro, porque estava sempre a ver a montra, depois por acharem estranho eu estar ali. Também foi fácil porque o meu irmão os conhecia. Quando entrei na oficina, o mundo ficou totalmente diferente para mim.
Que idade tinha?
Já tinha vinte e qualquer coisa. Eu fiquei deslumbrado porque a oficina era um espaço antigo, ainda se ensinava de uma forma tradicional e faziam-se peças que hoje já não se fazem. Todo esse ambiente foi fantástico para mim, embora não concordasse muito com as formas de aprendizagem, porque não eram as mais confortáveis, pois eram muito autoritátias. Enfim, se se tem essa postura, não se transmite grande coisa, dão-se ordens. Portanto, comecei a trabalhar, a fazer coisas, mas debaixo de indicações. Contudo, cedo me apercebi de que estaria por minha conta e o facto de criar o meu próprio “ombro” e de arranjar soluções foi muito interessante porque, nessa época, não sentia dificuldades. Via fazer algumas coisas e, ao ver e ao fazer, de imediato absorvia, o que também me permitia ter o interesse de acrescentar. Ao fim de alguns meses já estava a arranjar clarinetes e com ideias minhas que passavam e os músicos apercebiam-se das melhorias que tinham no instrumento. Bom, foi um processo onde se passam 5 anos, acho eu… Chegou a uma altura em que as pessoas perceberam que eu tinha algum potencial e quiseram premiar-me com uma especialização na Amati, na Checoslováquia, uma fábrica de instrumentos de metal e madeira. Nessa mesma altura em que eu estava de partida, apareceu um senhor do São Carlos que tocava fagote, José Frois. Veio ele com um outro colega de fagote, americano, tocavam os dois no São Carlos. A proposta era eu sapatilhar o fagote dele, do José. O outro já tinha enviado o seu para os Estados Unidos. O Frois esperou que eu viesse da Checoslováquia para ser eu a arranjar o fagote e criou-se uma grande expetativa daquilo que eu poderia fazer. Entretanto, na Checoslováquia tenho uma experiência fantástica, onde muitas respostas estavam ali e abriu-me completamente os horizontes e a visão. A ligação às pessoas era muito importante, porque eram pessoas com uma cultura razoável, cultura musical, sobretudo, e com poucas coisas… Eu acho que não lhes faltavam grandes coisas. Mas é evidente de que, quando temos esse plano fechado, pensamos que precisamos de muita coisa do outro lado e depois pode ser uma desilusão, não é? O que eu reparei naquela altura é que as pessoas eram muito mais cúmplices, falavam mais umas com as outras e partilhavam muitos meios. E, realmente, a imaginação ali também era abundante, porque quando não se tem as coisas tem de se imaginar, tem que se transformar, e eles tinham muito essa capacidade. Tive ainda o privilégio de poder circular pela fábrica toda, até porque naquela época eu só podia estar lá com visto especial e por cada secção que passava tinha uma pessoa responsável por mim. Portanto, eu conheci a fábrica toda.
Em que ano?
Em ’85. E o grande problema que se pôs quando lá cheguei era de como iria ser a especialização. Eles estavam com dificuldade em arranjar um método, porque eu não falava checo nem eles falavam francês ou inglês. Mas encontrámos um entendimento. Numa reunião eu peço uns dicionários que tinha visto lá no escritório e escrevo com a tradução: “Estou a perceber o problema, deixem-me fazer um plano”. Isto com pessoas de grande nome ali presentes. E depois, um puto ao pé deles a dizer que quer fazer um plano. Começou tudo a rir-se. Mas disseram: “Ok, então faz um plano”. Fui para casa e no fim-de-semana tracei um plano, porque já tinha visualizado na fábrica os sítios que me interessavam. Eu não podia beber tudo, mas marquei dias, marquei semanas, e eles viram o plano e nem queriam acreditar. “Ok! Então, avançamos!” Eu comecei a controlar os dias, aqui e ali. É evidente que estava ao pé dos técnicos superiores, pois eram eles que me ensinavam naquela área, mas consegui. Tinha que prestar provas, porque tinha não sei quantos dias para pegar num instrumento e entendê-lo para depois fazer a montagem e apresentá-lo. O primeiro foi um clarinete. Agora aqui é que está uma coisa interessante, porque isto foi na Checoslováquia, onde não havia grandes meios. Contudo, nessa altura aqui em Portugal ainda tinha menos.
Sim, aqui nem sequer há fábrica… Essa fábrica teria quantas pessoas a trabalhar?
O nome da localidade é Kraslice e eu suponho que toda a gente da cidade trabalhava na fábrica. Aquilo era dividido por zonas e numa pequena cidade ou aldeia havia a fábrica dos pianos, noutra havia a fábrica das cordas e noutra a dos sopros. Então, no primeiro instrumento passei facilmente e começaram a olhar para mim um pouco admirados, porque eu já tinha as minhas soluções, mas com os meios deles. A coisa para mim era maravilhosa. Tinha mais possibilidades que em Portugal e tinha as minhas soluções, que podia aplicar. Claro que sempre orientado pelo método deles, que tinha de cumprir, mas o espaço para a criatividade não me foi roubado. Tinha margem para cumprir e para acrescentar e isso para mim foi um sonho incrível. Passo dos clarinetes para os saxofones, e nos saxofones aconteceu a mesma coisa. Chegou uma altura em que me vieram chatear a cabeça a dizer que eu era um espião, que afinal sabia aquilo tudo e que estava a espiar. Tudo um bocado na brincadeira, mas às vezes um bocado a sério, porque não me deixavam tirar fotografias, isto porque uns anos antes tinham estado lá japoneses e fotografaram aquilo tudo e depois foram para o Japão e desenvolveram outras tecnologias. Então, o acesso estava proibido. Eu fui passando de instrumento para instrumento, depois fui para os oboés, para os fagotes, ainda fiz uma incursão pelos metais e o tempo passou e tive a nota máxima deles. Entretanto, venho para Portugal e tenho o fagote do São Carlos à espera. Só que aí tive um dilema, pois os materiais que nós tínhamos em Portugal eram nacionais e muito rudimentares. Ora, vi-me sem materiais nenhuns e esse foi o grande desafio, mais uma vez. E eu fiquei assim: “Agora estou por minha conta e toda a gente está à espera de alguma coisa muito grande e eu não tenho meios.” Então, o que é que eu fiz? Peguei nos materiais nacionais e transformei-os todos, mas transformei-os com uma visão nova.
Quando diz materiais, refere-se ao quê?
Às sapatilhas, aos calços, muitas coisas assim. Imaginando uma sapatilha toda deformada, toda mal feita para tocar instrumentos a sério, não é propriamente o melhor meio. Então, eu desfiz as sapatilhas nacionais todas e reconstrui-as com coisas minhas.
Estou impressionada. É que isso é um trabalho muito minucioso.
E depois ainda utilizei uns batentes chamados amortecedores, que hoje são utilizados por todo o mundo. Antigamente utilizavam muito as cortiças. Só que, naquela altura, eu pensei: “Já que estou por minha conta, vou fazer tudo por minha conta.” Comecei a usar feltros que ia buscar ao armazém dos pianos, porque os pianos vinham embalados com feltros muito bons que depois iam para o lixo e eram maravilhosos, porque eram silenciosos, confortáveis e duravam muito mais. Ao fim de algum tempo, eu tinha o fagote pronto, mas faltava-me alguma coisa que me preocupava muito, porque a afinação daquele instrumento era muito alta, então o Frois usava umas anilhas entre as peças para baixar a afinação. Eu não gostei das anilhas e comecei a pensar, à procura do que iria fazer ali. Entretanto, achavam que eu era um bocado maluco e deixavam-me ir para a rua para eu pensar. E na rua eu ia sempre a olhar para as coisas, para o chão, mas houve um desses dias em que não encontrava nada. O tempo passava e eu pensava preocupado: “Agora não estou a encontrar nada…” Mas quando vou a entrar na oficina vejo o Frois à minha espera. “Epá, o que é que fizeste ao instrumento?” Eu assustei-me muito, porque era uma grande responsabilidade, achei que tinha feito algo mal, mas ele deu-me um abraço, agarrou em mim ao colo e disse: “O que tu fizeste? Já nem anilhas de afinação eu preciso!” E quando ele me disse isso percebi que o fagote afinou sem as anilhas Então, durante muitos dias ele ia lá à oficina, comentava o trabalho, até que chegou à administração, com quem teve uma reunião para falar sobre o trabalho que, segundo ele, tinha sido muito superior ao do efetuado no fagote do colega americano e que nunca se tinha visto um trabalho daqueles. Agora, aqui a questão é que eu não pude dizer que fui eu que inventei, porque se eu dissesse que tinha inventado, as pessoas não iriam compreender. Então, elogiaram muito a Amati, a Checoslováquia, e só mais tarde é que eu pude dizer que inventei tudo e isso já nem era tão importante. Mas a minha cabeça abriu-se ainda mais e inventei muita coisa que funcionava, criei muitas soluções. Agora, nesta época está tudo a funcionar, as fábricas copiam-se umas às outras e já usam todos feltros, porque agora já ninguém tem memória das outras coisas. Mas, na época, a transição para isto não foi fácil.
O seu trabalho era já amplamente reconhecido?
Em Portugal, no Custódio Cardoso Pereira, eu era a única pessoa que fazia aquele trabalho, mas depois saí. Isto nos anos 80. Inventei muitos trabalhos, fui fazendo e fui percebendo que nem valia a pena falar sobre aquilo, valia a pena era a surpresa do músico. Assim, consegui criar um selo de trabalho que as pessoas começaram a identificar e a procurar também. Nos anos 80 houve obras no Custódio Cardoso Pereira. Em ’85 ou ’86 começaram as obras e eu ia conhecer a oficina nova que fui eu a desenhar, porque naquela altura vinha também com ideias muito frescas da fábrica, conseguia visualizar tanta coisa que desenhei a oficina e ela estava a ser construída na Rua do Carmo. O meu patrão, o Dr. Almeida Mendes, que naquela época andava a negociar a entrada na CEE, pois fazia parte da equipa do governo, estava sempre muito por fora e isso gerou vários problemas. Devo dizer que os ordenados da oficina eram, em geral, os mais baixos da empresa. O pessoal da oficina ganhava sempre menos, na visão de que quem trabalhava ao balcão era o lixo da empresa… Enquanto eles vendiam um piano ou outro instrumento e o lucro era imediato, nós na oficina, a trabalhar com as mãos, chegávamos ao fim e o lucro era praticamente nenhum, mas era o grande suporte das vendas. Contudo, isso não era reconhecido pelos colegas que estavam ao balcão. Enfim… Então, pensavam que eu ia ter uma ascenção enorme lá dentro, porque estava a fazer aquilo e, na minha cabeça, eu queria era fazer esse trabalho, porque iria proporcionar condições para toda a gente trabalhar na oficina. Dai surgiram vários problemas, entre eles uma circular interna inventada a dizer que o Custódio Cardoso Pereira tinha desistido da oficina. E, embora antes de ir para fora tenha dado a minha palavra de que nunca iria sair de lá, na altura fiquei bastante chateado e acabei por sair. Mais tarde, voltei a dar-lhes assistência. Tinha a sala cheia de instrumentos, tanta coisa inventada e tanta coisa por fazer… Não era para mim interessante estar a lutar contra o trabalho e pensei: “Inventei tanta coisa, mas se as coisas ficam paradas é porque se calhar alguma coisa não está certa, se calhar vou abandonar os instrumentos.” E abandonei. O Dr. Almeida Mendes ainda me propôs de novo a criação da oficina, só que eu estava de tal maneira desgastado e cansado que lhe disse que já não queria trabalhar mais com instrumentos, já não conseguia. Ele desejou-me a melhor sorte do mundo e poucos meses depois morreu. E morreu com um desgosto enorme. Era o homem que pagava melhor na música em Portugal, podemos falar de ordenados na ordem dos 340 contos, isto em ’80. Não era para toda a gente, estamos a falar para os chefes principais. Mas, por ai abaixo, toda a gente ganhava bem, excepto o pessoal da oficina, que também não ganhava tão mal como isso, em relação ao que se praticava no país. Mais tarde, volto ao mercado e começa isto aqui. Isto não é mais do que uma célula viva do Custódio Cardoso Pereira. Continuo aqui o trabalho e, por outro lado, a minha passagem está feita ao Fábio e aquele elo não está cortado. Portanto, de uma forma ou de outra, continuamos com o Custódio Cardoso Pereira e isso é a parte em que eu fico satisfeito, porque é muito difícil encontrar alguém para continuar o nosso trabalho e o trabalho de outros.
Com toda a filosofia inerente ao espírito de lá?
Sim, sim. Hoje estamos nesta entrevista, tenho muitas entrevistas, nem sei já o que tenho para aí filmado, mas muita gente me quer ouvir, por várias razões. Porque, mesmo sendo de outras áreas, têm curiosidade de ter mais janelas em perspetiva, porque as soluções dos instrumentos são para as pessoas e a música em geral é necessária na formação das pessoas, mesmo aquelas que não tocam nada, mas têm ouvidos, ouvem e sentem. E apesar de acontecerem muitas coisas destas, o que me surpreende é que cada vez que vou falar estou a falar das mesmas coisas, mas de formas diferentes, e isso às vezes surpreende-me porque há tanto por dizer e depende muito dos momentos, porque estamos sempre em movimento. E porque estamos sempre em movimento, nunca o trabalho está finalizado, há-de sempre continuar.
Ao início, quando começou a reparar intrumentos, teve dificuldades auditivas para perceber as afinações? Sentiu que foi desenvolvendo o ouvido ou já tinha esse ouvido apurado? Sinto que uma pessoa com um trabalho como o seu tem de ter um ouvido muito apurado, uma maior sensibilidade em perceber a afinação e o som do instrumento, porque cada instrumento tem um som.
Sim, sim. Mas há uma coisa interessante que é a abordagem. Um instrumento é sempre um mundo diferente de outro instrumento. Embora tenha a mesma forma e há-de ter o mesmo timbre, mas tem ali qualquer coisa de diferente, de especial. Eu tento chegar ao som que o instrumento pode produzir, sem me preocupar com o meu ouvido. É como se houvesse aqui uma aliança com as mãos, com o coração ou a alma e com estéticas, por exemplo, com elegâncias, com movimentos… são ingredientes. É como se fosse uma poção mágica. Fazendo aqui a combinação, que podemos chamar harmonia dos desequilíbrios, nós chegamos ao som. O meu som, a partir do momento em que eu consigo captar o som de um instrumento, ele leva-me. E todas as notas que ele cantar, eu posso afiná-las, sim, aliando movimento, elasticidade, estética, sei lá… uma série de ingredientes, desde que estejam presentes, isso acontece. Não estou preocupado com o meu ouvido, porque eu não tenho obrigação de tocar como um músico, não é para isso que eu estou cá, eu tenho a obrigação de preparar as notas para o músico. Cada músico que tire uma nota, tem de tirar uma nota cheia de energia. Estou mais preocupado em criar beleza, mesmo do ponto de vista mecânico, que depois chegue ao som e as ferramentas que nós temos estão todas à nossa frente. Depois, também, cada músico tem o seu plano, tem a sua sensibilidade, tem tudo isso que também conta. E nós procuramos fazer a ponte, criar o tal conforto para o músico, onde o instrumento passa a fazer parte do corpo. Se repararmos num músico de sopros a tocar, normalmente está abraçado ao instrumento. Não só está abraçado como está ligado através do ar quente. Portanto, tem muitas ligações ao instrumento, criando uma intimidade completa. Não estou a dizer que é mais que os outros instrumentos, é diferente. É uma intimidade muito grande. Ainda hoje tivemos duas urgências aqui. Isto pode acontecer durante a noite, pode acontecer a qualquer hora e eu e o Fábio estamos sempre disponíveis, na medida do possível, para estas situações. É assustador e nem alertamos os músicos para os perigos iminenetes. Porque num sistema mecânico em que uma molinha se parta, está tudo estragado e pode acontecer. Mas um músico não pode pensar nisso. Nós, quando temos os instrumentos na mão, assumimos isso tudo. Portanto, tem de ser um trabalho muito sério. É falível, como é óbvio, mas a aborgadem tem de ser muito séria. Assim, nós trabalhamos sempre de uma forma, não digo a prever, mas a verificar e a criar mais conforto, para que tudo saia o melhor possível. Depois, temos de ter em conta a parte física do músico, por exemplo, o tamanho dos dedos. Muitas das vezes lutam com tenditites e perdem a ação dos dedos e às vezes as notas atrasam-se ou quase desaparecem, porque aquele dedo deixou de ter contacto. Quando se perde contacto as frases oscilam, portanto aqui a ligação tem de ser perfeita. O corpo tem de funcionar todo, quer o corpo do instrumento, quer o corpo do músico. Então, muitas das vezes, quando conhecemos as pessoas, nós distribuímos as forças das chaves e isso parece um trabalho invisível, mas não, porque não é só a parte mecânica do instrumento. Temos duas mecãnicas, a mecânica humana e a outra mecânica mais fria, mais técnica. Essas duas mecânicas têm de se encontrar, por isso é que eu falo na harmonia dos desequilíbrios, porque quando se consegue essa ponte, é um alívio. Quando as frases são conseguidas e o movimento, a projeção de ar quente, traz as notas coladas, ficam os corpos todos com a mesma velocidade, então é um motor completo a gerar música, a gerar energia. E isso muitas das vezes depende das partes mecânicas que têm de ser ajustadas. Isso é o grande desafio, nós temos de trabalhar com este sonho. Não é só pegar numa chave, dar-lhe força e colocá-la. Não, não é isso. Estamos a lidar com coisas vivas. Um outro grande problema que todos sentimos é a mudança do clima. Hoje temos uma temperatura diferente, até no próprio dia temos vários registos diferentes. Então, essa continua a ser a nossa linha de trabalho e, sobretudo, de procura. Porque podemos estar a falar de coisas que pecisam de mais liberdade. Por exemplo, à medida que a temperatura sobe e desce com muita frequência e com contrastes muito fortes, temos de criar mais liberdade ao material, para que ele se possa ajustar. Se o prendermos em demasia, o material não se ajusta e é o caos. Temos de ter pontos de elasticidade, de tolerãncia, mas isso não pode ser um esforço mental, tem de ser uma coisa natural. Quando trabalhamos, trabalhamos já nesse sentido.
Então, para si, também é muito importante quando o músico vem aqui experimentar o instrumento à sua frente.
É sempre. Gosto muito porque parece que não há mais nada a fazer, mas quantas vezes eu digo: “Epá, espera aí, vamos cá ver isto não sei quê.” E a pessoa diz “Hã? Não tinha pensado nisso”. Às vezes, a força de uma mola ou o toque de uma mola pode nos tirar da terra e pôr no céu.
O Tomás também costuma experimentar os instrumentos?
Sim.
E quando está a procurar essa afinação faz por si? Ou seja, faz os intervalos, relaciona as notas?
Eu tenho de pôr todas as notas num mesmo plano. Imaginemos um ponto no universo. Todas as notas têm que coincidir com aquele ponto. Portanto, daí determinamos uma beleza qualquer, imaginamos e trabalhamos essa nota nessa beleza. A partir daí todas as outras notas têm de passar por esse filtro. Então temos a frase ligada muito facilmente, sem quebras, e com todas as notas bonitas — uma coisa assim transforma-se num ponto. E isso é uma ideia a seguir. Às vezes é mais difícil, outras vezes menos. É perceber também que o músico pode fazer melhor se estivermos atentos. Depois, tudo se vai fazendo por este processo que eu estava a dizer. Isso começa tudo no primeiro momento quando pegamos no instrumento. Quando pegamos numa flauta, ou seja que instrumento for, nós recebemos uma têmpera. Por exemplo, eu estou há muito tempo com isto na mão e esta madeira já me pertence, já temos o mesmo calor. Isto das têmperas é engraçado, porque os músicos ficam registados nos instrumentos. Muitas das vezes quando alguém vende o instrumento a outra pessoa, depois a nova pessoa pode ter dificuldade. Não é apagar o que está feito, é arranjar espaço para o instrumento receber outra têmpera. Porque são como livros que registam as memórias todas e, às vezes, percebemos que o instrumento pertenceu a muita gente. É engraçado, isto. É evidente que, no fim, isto pode ser um bocado poético, mas temos de pensar sempre que é possível. Se partirmos sem estes pensamentos, a coisa fica fria. Faz-se, fica tudo muito mecânico, responde-se e vamos embora. Mas não é assim.
E acha que qualquer instrumento de sopro, falando no caso das madeiras, pode ser tocado mesmo que tenha, por exemplo, 200 ou 300 anos?
Sim, eu aqui ponho flautas a tocar com 200 e tal anos… Aliás, tenho ali um flautim que não era para pôr a tocar e está a tocar.
Por exemplo, um clarinete com 100 anos é possível pôr-se a tocar?
Pode sim. Eu acredito nisso. Agora, não podemos esperar que ele cumpra um papel de um clarinete que saiu agora de fábrica, tem que ser tratado também com o que ele pode dar. Mas o som bonito que pode tirar, o som orgânico, pode ser muito superior a um clarinete que saia de fábrica, super afinado, mas cujas notas estão todas desinfetadas. Muita coisa pode acontecer. Eu acredito sempre que os instrumentos não morrem e fico muito triste quando os condenam ou quando dizem que um instrumento não é para tocar. Eu penso: “Opá, eu faço o trabalho, mas para mim tem de tocar”. Os materiais estão mortos. Mas cantam ainda, embora o tempo de validade já tenha ido. Eu coloco sempre a tocar. Este flautim deve ter à volta de cento e tal ou duzentos anos. Esta peça na cabeça fui eu que ofereci ao instrumento. Porque quando os instrumentos estão incompletos, o desenho destas peças vêm-me imediatamente à cabeça. E, para mim, completei a elegância do instrumento. “Isto é marfim, isto é tudo prata e eu acho que assim está bonito.” Isto não tem preço, é algo que ofereço ao instrumento. Porque quando estamos a trabalhar com coisas destas, merece o nosso melhor. Antigamente trabalhavam com requintes impressionantes. Tudo muito orgânico e manual, também extremamente bem feito, são obras de arte.
E essa ideia que estava a falar da higienização dos instrumentos novos, acha que hoje em dia, com a exigência do aperfeiçoamento, as escolas depois pressionam muito os músicos a ter esse lado muito higienizado?
Sim… Trabalham muito em retirar as camadas ao som, retirar a sujidade na afinação e velocidade na resposta, criar mil notas, muitas possibilidades, e às vezes não se dá as notas que se deveria dar. Estamos a cumprir outra coisa.
Acha que há uma formatação ou padronização?
Sim, caminha-se nesse sentido, também é muita gente e a competição é altíssima. Depois, temos mil pessoas a tocar de forma igual, com a mesma técnica. Há um grande trabalho por trás disso tudo, mas não se está à procura de alguma coisa natural, uma sujdade, uma imperfeição, são componentes humanas. Nós temos de tocar como máquinas? É o que está a acontecer. O nosso corpo tem as suas dinâmicas, a diferença é que temos de cultivar. Senão o prazer também desaparece, e as pessoas escusam de ir comprar bilhete, podem ouvir em casa, ligam a aparelhagem. Isso é a vida e a vida não tem de ser perfeita, tem de ser bela, que é diferente.
É interessante… Então se vier cá alguém que seja aluno de determinado professor já reconhece a forma do professor tocar nesse aluno?
Sim, são muitos alunos a lidar com determinado professor e a postura ou a velocidade de som são muito idênticas. Há sempre um ou outro que sai fora, mas a grande parte são iguaizinhos. Mexem-se da mesma maneira, fazem tudo da mesma maneira, mas há um que de repente consegue ser diferente e ainda bem. Mas as coisas completam-se pelas diferenças. O que está a acontecer no mundo é que cada vez falamos menos, cada vez colocamos as mesmas coisas e não precisamos todos das mesmas coisas, mas os formatos obrigam-nos a entrar em despesas por coisas que não precisamos, e depois temos de trabalhar mais para comprarmos as mesmas coisas e nem nos servimos delas, por não termos tempo, ainda por cima elas têm um tempo de vida mais curto. Duram cada vez menos e temos de trabalhar mais para comprar mais.
E acha que, hoje em dia, a sua profissão é reconhecida e valorizada?
A nossa profissão pode ser vista de várias maneiras. Nós não nos podemos queixar, porque temos trabalho. Não podemos fazer preços melhores porque estamos num país em que os ordenados são maus, isso às vezes não é nada confortável. Mas temos o nosso relógio e o nosso relógio permite-nos trabalhar com o tempo que precisamos. Conseguimos ter dignidade porque há um padrão de dinheiro que nós precisamos e isso conseguimos ter, mas nada de luxos, é só para o essencial. É, provavelmente, das poucas oficinas que funcionam assim. Mas, se não fosse assim, não podia estar a falar desta maneira, não podia olhar para os instrumentos como olho. Portanto, tudo tem um preço, e como a qualidade de vida é sempre muito relativa… Para mim, para o meu sítio, qualidade de vida é poder mostrar isto e falar sobre isto, contento-me com o que tenho, mas quando mexemos nestas coisa, nós estamos virados para o universo, para o mundo, e temos esse privilégio também. Se falarmos daqui a uns anos, não fará sentido a nossa profissão. Isto é um ponto de vista.
Está a dizer daqui a 40 ou 50 anos?
Não fará tanto sentido, porque as novas gerações já precisam menos destas coisas. Temos bebés já a mexer nos telemóveis logo que nascem, já pertencem mais a outros mundos. Penso que a evolução vai distanciar-se deste tipo de necessidades. Nós vamos é resistindo.
Mas acha que para uma profissão como esta é preciso tempo e calma? Não funciona a ideia de rapidamente executar algo e entregar o trabalho? Tem de haver respeito pelo tempo?
Tem que haver, sim. Porque, senão, atropelamos o músico. Não é só o instrumento, atropelamos o músico também. O desafio aqui não é só tratar do instrumento, é que o instrumento seja parte do músico, e se não se fizer nesse sentido, também não se está a fazer um trabalho para o músico. Está a fazer-se um trabalho para ganhar dinheiro. Muita gente trabalhará dessa forma, mas isto é muito sério. Eu costumo pensar que nós somos aquilo que fazemos e se eu não respeitar esta peça, não me vou respeitar a mim nem a ninguém. Parto desse princípio, porque são as batotas da vida que nós começamos a fazer — porque a outra pessoa não se apercebe, ou porque passa despercebida — que podem levar as pessoas a caminhar num sentido… mas estamos a caminhar para onde? Eu acho que para respeitarmos os outros temos de respeitar aquilo que fazemos para os outros, senão não chegamos lá. Há-de haver pessoas mais bem pagas, outras menos bem pagas, mas isso é outro assunto. Agora, se não fosse esta forma de trabalhar, não tinhamos este privilégio. Pegar numa coisa destas é muito especial.
É muito interessante o que está a dizer, porque normalmente o que nós ouvimos, quando ouvimos um músico falar do seu instrumento, é da paixão que tem por ele, além da paixão pela música. Mas é precisamente o instrumento que o coloca em contacto com a música. Entendo que o que o Tomás me está a transmitir é a sua paixão pelos instrumentos enquanto riquezas que existem e que devem ter a sua própria vida.
É como se eu tivesse esta responsabilidade, como se fosse guardião dos instrumento. Mas os instrumentos não terminam neles, precisam dos músicos. E por isso é para mim importante que toquem. Se tocarem, vão poder chegar ao músico, porque se não tocarem, morrem. Um instrumento tem vida e, por isso mesmo, precisa do músico, e quando essa aliança acontece não é só o músico que sai feliz, nós saímos todos felizes. Porque é esse o nosso papel também, só que não são profissões fáceis, muita gente tem a ilusão de que em 3, 4 ou 5 anos fica tudo a funcionar. Não. Fazem-se coisas, elas passam, sim, mas para chegar a certos sítios é caminhando, não é encurtado. Porque as técnicas normalmente ensinam-nos a encurtar, a não perder tempo, a chegar a um resultado rápido. Aqui inspiramo-nos na ideia que isto nos transmite até chegar ao som. É como um lavrador, uma pessoa do campo. Enquanto num restaurante estão a comer boa comida, boas batatas, bons legumes, sem pensar em mais nada, a saborear, alguém cuidou daquilo antes… E a qualidade vai depender do amor que alguém depositou ao fazer algo. Portanto, vai passar por uma série de estações até chegar à mesa. A pessoa, quando faz, deve sentir que deve fazer bem e só com a intenção de fazer bem é que pode acontecer desta forma. Mas se não for dessa forma, não sei.
Este trabalho é também artístico e por toda a filosofia envolvida, pela sua experiência inicial, vir aqui é uma viagem. O Tomás é uma pessoa espiritual?
Sim. Digamos que fui criado debaixo do cristianismo, mas não sou praticante, embora respeite. Portanto, penso que há muitas outras coisas que não têm só a ver com religião, outras coisas do mundo que ou captamos ou não. As religiões, de uma forma geral, foram os formatos que encontraram para nos controlar, para nos fazer seguir. Como fui criado com isso, respeito. Agora, eu acho que isto é muito mais transcendente, talvez mais que isso. Sou mais ligado aos sonhos do que ao pensar em depois encaixar isso numa religião.
Nunca pensou em dedicar-se a ser músico?
Eu acho que quando era miúdo poderia ter sido, mas as necessidades daquele tempo nem sempre permitiam. Os meus pais não pensavam que seria a música uma saída. Portanto, tudo isso me passou um bocado ao lado, mas toco um pouco de guitarra.
E ainda bem que não foi, senão perdia-se um grande mestre da construção dos instrumentos.
Eu acho que sou outras formas de tocar. Há muitas formas de tocar. Por exemplo, um bom ouvinte pode ser uma ajuda para um músico. Imaginando que as pessoas que estão a tocar se fixam numa pessoa e sabem que estão a fazer a passagem para aquela pessoa, isso é um reconhecimento, uma troca, pois começam a interagir e aí as coisas tomam outras proporções. Para isso é que é preciso público. No fundo, se não são músicos, podem ser musicais. Então, a música pertence a todos, ainda bem que temos alguém para tocar, outros para arranjar os instrumentos, outros para ouvir. Mas tudo isso é música.