[TEXTO] Gonçalo Oliveira [CAPA] Sebastião Santana
O fechar de portas da Matarroa deixava o circuito independente do hip hop português órfão daquela sua vertente mais inventiva, lírica e musicalmente falando. De norte a sul do país, com a Internet enquanto ponto de encontro, vários jovens de uma geração seguinte começavam a colher os frutos da banalização dos softwares e periféricos áudio para uso doméstico.
Edificou-se a Monster Jinx, que se mantém em actividade ainda nos dias de hoje, mas faltava ainda uma organização colectiva que reunisse as mentes que estavam a limar sonoridades mais obscuras e a delinear os versos mais insanos. Surge então a No Karma para suprimir essa urgente necessidade, apresentando-se com um elenco de luxo — AVC, ORTEUM ou Metamorfiko eram alguns dos responsáveis pela chegada do hip hop português a um nível superior de conceptualização, que davam excelentes indicações a quem ansiava por uma revolução no paradigma na cultura portuguesa das rimas e batidas.
A existência da No Karma terminaria de forma prematura e, no esquadrão das palavras, Tilt e Osiris eram quem mais puxava pelos “colegas” no microfone. Se o segundo acabaria mesmo por largar o rap em definitivo, o primeiro foi ainda a tempo de deixar a sua marca no legado da editora, com aquela que será certamente uma das suas jóias da coroa.
Alimentar Crianças Com Cancro Da Mama era o culminar de um intenso período de estudo dos mecanismos da rima ao qual Tilt se tinha dedicado. Com base nos avanços alcançados pelos EUA, graças a selos como a Def Jux, o rapper da Margem Sul apostava todas as suas fichas na modernização conceptual de que o rap em Portugal tanto precisava. O underground estava cada vez mais silencioso e Tilt decidia dar um pontapé na porta, causando um estrondo suficientemente grande para se dar a conhecer ao mundo e, ao mesmo tempo, colocar em sentido todos aqueles que se estavam a deixar adormecer numa escrita mais preguiçosa. A “terapia de choque” começa logo no título do seu EP de estreia, que ganha maior força com a data escolhida para o seu lançamento — o Dia Mundial da Criança. Sem querer entrar em bruxedos: Angelina Jolie, figura feminina utilizada para ilustrar a capa de ACC/CDM, dava sinais de fraqueza poucos dias antes da saída do projecto, tendo recorrido a uma intervenção cirúrgica que lhe pudesse reduzir o elevado risco de cancro.
Tilt abandona simbolicamente o útero com recurso a “Epidural”. Na sua carta de apresentação ao movimento declara-se como “portador de uma alma velha com ferrugem nas dobras, a trepar Lúcifer pelas costas”, criado através da combinação genética de um “animal robô, que um canibal moldou e alimentou com um flow fodido”. “Respeita-me” é o seu derradeiro pedido no tema de abertura do EP, que termina com a primeira aparição de DJ Apu, ele que é também uma peça fundamental no ambiente estético que o disco adopta, com cortes tão cirúrgicos como sujos.
A metáfora é um dos recursos de eleição de Tilt para ACC/CDM, pontuado por algumas doses de egotrip e um jogo de rimas de primeira categoria, que combina flows sem qualquer tipo de defeito e a selecção exímia de um vocabulário escurecido mas nunca monocromático, dado o amplo contraste que a paleta de palavras adquiridas lhe aufere. O “Homem do Lixo” varria as ruas com classe e meteu organização no underground, com ACC/CDM a servir de wake up call para quem começava a duvidar da evolução do liricismo nacional.
Em “1917” vestiu a pele do místico Rasputin, comparando subtilmente a influência que “o bruxo mais pesado do império” conseguiu perante a monarquia russa à sua própria situação no panorama do rap português. “GTA MS Stories” emula as mecânicas do videojogo com a Margem Sul em pano de fundo, recorrendo o MC a vários códigos de cheats para tentar evitar a morte num caótico cenário de “salve-se quem puder” — a verdadeira batota aqui é a precisão milimétrica de Tilt na busca pelo detalhe, que escapa da polícia ao meter o “céu sem estrelas” depois de uma sessão de “massagens tântricas para o ego” através da interacção menos ética com os NPCs.
Não é tarefa fácil tentar nomear uma destas seis faixas enquanto a “melhor” ou “favorita”. O EP de estreia de Tilt prima também pela consistência, fruto da entrega impressa em cada tema. Sendo ACC/CDM um álbum de “rap para rappers”, faz sentido escutar “Diferença” com mais atenção — “uma merda à MCing, sem refrão e o caralho”, anuncia Tilt na introdução. Cinco anos após a sua edição, Alimentar Crianças Com Cancro Da Mama continua a ser um manual obrigatório na instrução do hip hop, para aqueles que almejam a especialização na arte da rima.
“Futuro aproxima-se e sinceramente espero que te extingas
Vêm multies, espero que distingas duas frases distintas
Vá lá, puxa pela cabeça, tipo que te agarram na mesma só pra dar um finisher“