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Fotografia: João Duarte, TAGV
Publicado a: 24/02/2025

Uma obra integral em palco.

Tiago Sousa no menor’25: minimalismo maximal

Fotografia: João Duarte, TAGV
Publicado a: 24/02/2025

Voltando à obra poética de Cesare Pavese, retoma-se, em prosa do próprio, a propósito da sua recolha Trabalhar Cansa, no confesso apêndice d’”O Ofício de Poeta”, onde começa por olhar para trás. “A composição desta recolha durou três anos. Três anos de juventude e de descobertas, durante os quais é natural que a minha ideia da poesia, e ao mesmo tempo as minhas capacidades intuitivas, se tenham vindo a aprofundar. […] Poderei fazer ou não fazer outras tentativas poéticas, poderei ocupar-me doutras coisas ou reduzir ainda mais toda a experiência a esta actividade. […] Simplesmente, tenho pela frente uma obra que me interessa…”

Tiago Sousa, compositor, pianista, teclista e organista tem na sua obra Organic Music Tapes, editada em 4 volumes noutras tantas cassetes de fita magnética, uma monumental incursão na música orgânica e minimal. Sousa fez sair Vol. 1 em 2022, pela Sucata Tapes, selo da Discrepant dedicado exclusivamente à edição em fita de cassetes. E desse primeiro volume escutam-se composições como “Sitting Quietly, Doing Nothing…”, “The Scent of Time” ou “The Taste of Nothingness”. Temas que aproximam, na assunção dos nomes, as obras de Sousa e Pavese. E se preciso for, aclarem-se as ideias quando Tiago Sousa, a propósito da antevisão da prestação em palco, no menor – Festival de Música Electrónica, no Teatro Académico de Gil Vicente, da execução integral da obra. Refere tratar-se de “uma oportunidade única para subverter as dinâmicas do tempo baseadas no consumismo. Decerto que a economia de consumo sucumbiria se de súbito começássemos a cuidar da perdurabilidade e do sossego”. 

Um palco primorosamente preparado, um grande piano e um órgão eléctrico, frente-a-frente para receber o compositor e instrumentista de si próprio, na sua obra. Toma o momento que em tudo se conjuga de feição, a favor da arte poética. A tela recebe a cadência das imagens de outros que ele, o músico, coligiu aprimorando o cenário, tornando visual a arte dos seus sons. Os primeiros temas alinhados surgem do primeiro dos quatro volumes da obra. Há um sentido cronológico nesta integral. Voltar a abordar é uma oportunidade de aprofundar, adensar e de a tornar integra. Também neste olhar recobrado há pontos tangenciais entre Sousa compositor-interprete e Pavese poeta-leitor, obras olhadas pelos próprios a certa distância, que permitem imprescindíveis olhares fora de dentro. 

Sousa tem lado-a-lado, na estante do piano, partituras-anotações e um dispositivo de tape loop. Outro mecanismo de volta em volta, carreado à música provinda das teclas, martelos e cordas. Um desejado efeito “de nebulosa” na sua própria música, como o próprio denota antes do intervalo da performance, uma matriz acentuada do minimalismo — convocando ciclos, trazendo o movimento perpétuo. A tela exibe uma tradução clara do sentido orgânico da música. Padrões de microcosmos vivos — hifas, micélios de fungos ou bactérias —, padrões dinâmicos de estruturas ramificadas. A música ouve-se assim, acompanha as imagens em movimento. Há nisso a transcrição de modos primordiais da revolução orgânica, os modos e formas que já ninguém vê — tamanha vai a alienação dos dias que correm. Nesta plateia caberia todo um público, sabendo-se receptivo à contemplação, soubesse “cuidar da perdurabilidade e do sossego”, como referia o compositor. Estados de um nada fazer para muito alcançar — quão longe e arredados prosseguem os dias. 

Esta música orgânica, é agora emanada de um dispositivo eléctrico afeiçoado pela electrónica, e esse órgão (externo) de Tiago Sousa, que inscreveu ao serviço das suas composições no Vol. 2 da série, é retomado na execução em palco. Leva-nos em “For Such Path I Long”, nessas esteiras de texturas que vivem da interação sónica, interferências electroacústicas que terminam por ser escutadas na feição distinta de cada um dos presentes. Para Philip Glass, seminal cultor da música de matriz minimal “é a repetição que nos usa e não o músico que usa a repetição”, como retoma, por lembrete, o músico Jorge Lima Barreto em Música Minimal Repetitiva. De volta ao grande piano da casa Steinway, Sousa dedica-se a “Maar”, peça de elevado esplendor cromático e cristalino, esse vasto corpo de água que em tudo é mudança, perdurado o olhar na apenas e somente aparente monotonia da repetição, nos períodos da onda ou no espraiar, como em tela projectado. Seguimos vivazes com “The Tone of One” a criar múltiplas vozes dissonantes dentro de nós. 

Os volumes 3 e 4 da Organic Music Tapes transpostos neste menor compuseram a segunda parte da execução. De fora do alinhamento haveria de fica “Upbilding”, composição para órgão de tubos e cuja gravação contida no Vol. 3 é um excerto do concerto no órgão da Igreja da Nossa Senhora do Rosário, no Barreiro, aquando do festival OUT.FEST em 2023. Na verdade, tratou-se de uma quase integral da obra, que em nada retira o momento único em que a música minimal se assumiu maximal. Esta parte da obra expande os limites da música trazida de compositores de vanguarda, como foram Terry Riley ou Steve Reich. Sousa estira as bordaduras do conceito minimal e impulsiona de intensidade momentos cintilantes. Em “Reflections” há cúmulos vários, como que se eleva a música dentro dela própria, jogos de espelhos, feitos de figuras assimptotas, ou como por caminhos que nos aproximam de um ideal maior, sem que, contudo, haja outro mecanismo além da contemplação redentora e dos intrínsecos do piano. E se nesta parte da obra se explorava o macrocosmos, trespassada a escala do tempo, escutado incomensurável, a abordagem ao derradeiro volume da obra traz de volta um sentido terreno, contudo verdadeiramente eufórico, delirante até. 

“Spheres Dances” ouve-se como piruetas num carrossel, traz estados de proto-transe, daqueles como andar com a cabeça à roda — rodopios infindos. Mais uma vez as teclas do órgão eléctrico a servirem os padrões compostos pela mestria minimal e ciclópica da arte dos sons de Tiago Sousa. Condutor que tem presente o ritmo da sua música sabe como fazer regresso, qual hipnoterapeuta que devolve estados de consciência aos presentes. Desaceleramos e retomamos o lugar — é aqui, é este. Regozijamos estar presentes, neste inesperado momento da integral. É tarde, suspeitamos saber o que já leva de tempo andado a obra tocada. Há ainda a escutar a incontornável “Open Up Rejoice”, procurando reaprender os ciclos vitais, que vão da respiração aos da formação de cadeias montanhosas partindo dos oceanos. Aqui, a tal nebulosa das loop tapes é premente e opera no campo da descoberta e do deslumbre dos relevos a alcançar, exercícios de esconde-esconde que o piano mapeia como território, rumo ao lugar. Lugar de longo alcance e fulgor, que permite justamente recobrar o espaço em redor desde “Sculping Time”, uma vez mais de volta ao órgão. É com “Regather” que se começa o caminho de volta — contudo, suspeita-se a um ponto não inicial. Esse então voltar a reunir, em título, pelo menos traz esse plano descritivo de volta ao grande piano e à magna composição de Sousa, e voltamos a contemplar a serenidade, é a isso que induz a melodia. O que leva o próprio compositor a terminar a execução da sua obra integral em palco colocando-se a si mesmo no lugar de contemplado, assistindo ao desenrolar da fita do tempo, situando-se diante do dispositivo das loop tapes, tal como um de nós a deixar-se levar pela Organic Music Tapes.

Podemos verdadeiramente ainda estar aquém da plena consciência do momento. Sabemos sim, do acontecimento, da ousadia da obra, um marco na música, para além da de Tiago Sousa. Numa escala de importância cujo nome do festival remete para os antípodas. Uma música que se minimal o é na matriz, se fez maximal pela forma e pelo modo. Há horas assim — e foram perto de três — em que nem damos conta do quão felizardos e felizardas fomos.


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