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Fotografia: João Duarte / TAGV
Publicado a: 01/03/2025

Subida às nuvens numa capela.

Tashi Wada no menor’25: oceânica liturgia pagã

Fotografia: João Duarte / TAGV
Publicado a: 01/03/2025

Serão os palcos os cenários que fazem a música soar mais além ou, por outra, é a música que pede lugares idílicos para se fazer ouvir melhor? Talvez nem seja preciso tomar opções, quando ambas podem fazer sentido em simultâneo. A música que o compositor Tashi Wada trouxe até ao segundo acto da programação, para já revelada e experimentada, do menor — Festival de Música Electrónica, em Coimbra, teve lugar na capela barroca do Colégio das Artes. 

Com o registo What Is Not Strange? (RVNG Intl, 2024), há elementos musicais de sobra que fazem imaginar um espaço dedicado a liturgias como ideal para o revelar em concerto. Tornam-se mais evidentes quando se escutam sonoridades electrónicas que remetem para o órgão de tubos. Esse elemento que carrega inevitavelmente uma conotação de música sacra. Recordemos ter sido designado num concílio régio da igreja católica como o instrumento dos instrumentos, capaz de dar “um esplendor extraordinário e elevar poderosamente o espírito […]”. Quando dias antes do concerto, referia-nos Wada, a propósito da celebração conjunta com o público e os espaços, haver “uma ligação que se forma, respondendo uns aos outros e à sala, fazendo o nosso melhor para alcançar um reino superior (mesmo que momentaneamente)”. Entende-se o sentido de uma liturgia musical em curso. Melhor lugar para isso acontecer? Uma capela barroca, pois então. Ainda para reforço, estas composições inscritas em disco e trazidas a concerto por Wada, Julia Holter (voz e teclados) e Corey Fogel (bateria e percussão), carreiam elementos notórios da musicalidade barroca, amiúde “cheira” a sonoridades de cravo. 

O barroco foi feito de esplendores, na música e na arte como um todo, exaltando a grandiosidade pelas formas e expressões, com frequência foram aplicadas tensões de carga emocional potenciando essa leitura. Ora o concerto começa nessa herança, propositadamente ou não, ficamos sem o saber, e mais uma vez a dualidade do enigma em campo. Quem chama quem? A música ao lugar ou o este palco a esta música, que é feita de olhares e sentidos de tensão iniciais? É uma entrada a pedir máximo empenho e predisposição a todas e todos nós, e aos músicos. Diálogos de perdurados fluxos migratórios entre as partes. Contudo, o tal tema de efeito coda, que Wada nos referia em entrevista, que tanto gosta de utilizar como passagem de final de movimento, surgiria alinhado logo em seguida, escutando “Grand Trine” como canção. Enamoram-se os diálogos para uma estética de sonho feita terreno e palpável. “New on foam / Break in the air / Pingingingingin / My whole life”, canta Julia, áurea a Tashi, entre frase do “cravo” de Wada e teclas de Holter. Um tema que os junta na composição confessa, tal como na vida. 

O alinhamento, em concerto, retoma no entanto a via de outros fluxos anteriores e interiores. Adensam-se as texturas de órgãos eléctricos (Prophet e Nord, em campo), pairam drones sonoros, como os que Phill Niblock deixou em legado na música. E com “Time of Birds” entra o novo elemento não inscrito em disco desta música — uma transgressora gaita-de-foles. Transgride porque rompe, galopa espaço adiante, nota pedal omnívora que tudo envolve. À partida, suspeitando desta nova utilização, ainda julgámos não possível neste lugar. É um som intenso para um lugar exíguo, que melhor contempla sussurros que vozes gritantes. No entanto, admitamos a função prazerosa de inicial estranheza. Afinal, há essa passagem entre a música de Wada – pai e Wada – filho, a exploração das vozes de fole e dupla palheta foram uma constante na obra de Yoshi. Estamos sob os limites acústicos da capela, o tecto celeste toma-nos como lugar de encosto. 

Tempo para desfrutar, para além dos recursos de dissonâncias, trazidas amiúde como cavas entre ondas de ligação, da intermitência como estilo exploratório das possibilidades tímbricas da música de Wada, e que melhor se expressam em “Subaru”. Terá algo que ver com qualquer exercício rítmico de sinais de alarmes dos veículos? Só Wada saberia explicar… Mas reside no carácter intrigante, e de entrada nada fácil destas composições, parte do estímulo para seguir em viagem. Com “Flames of Perfect Form”, entrou em campo — na capela, relembremos — um coeso trio de músicos, onde a acção percutida de Fogel, em muito até então comedida a apontamentos tímbricos e propulsores, se fez chão de base. Um tema que se sorveu na fruição mais para os lados do jazz que esta música também contém e transporta. 

Habitámos por momentos nesse reino superior e surrealista, como ansiado por Wada e retomado pelo próprio, refira-se, de Philip Lamantia. Razão para transcrever deste último de “Celestial Estrangement”, tal como plasmado no interior da edição no disco de Wada, num total propósito neste palco, altar-mor: “Oceanic gardens / where the clouds are soaked into my eyes”.


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