Dever-se-ia começar por aí, por esse fluxo. Afinal Yoshi Wada, pai de Tashi Wada, foi desde cedo um dos artistas do Movimento Fluxus. Esse manifesto de vanguarda na arte, que trouxe na década de 1960 práticas experimentais e performativas, que visaram “promover um fluxo e uma maré revolucionárias; promovendo a arte viva, a anti-arte, a realidade da não arte para ser apreendida por todos”. Partimos, contudo, para uma troca de impressões com Tashi Wada, precisando melhor as suas ideias. Haverá esse legado subjacente, mas há seguramente a sua música, que procuramos desvendar melhor.
O propósito é a sua vinda para três concertos, a começar em Coimbra no âmbito do menor — Festival de Música Electrónica (dia 28 de Fevereiro), seguindo-se a actuação na blackbox do gnration em Braga (dia 1 de Março) e que, depois da incursão pela vizinha Galiza, terminará no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa (dia 5 de Março).
Wada traz na bagagem um primeiro álbum em nome próprio — What Is Not Strange?, editado no Verão de 2024, pela RVNG Intl., editora pela qual, em 2018, tinha feito sair um disco colaborativo, elo de ligação — Nue — juntando Tashi Wada, Yoshi Wada e amigos. Entre eles dois músicos que permanecem ao seu lado até hoje, Julia Holter (voz e teclados) e Corey Fogel (percussão), e que o acompanham nestas datas por terras lusas. Agora traz uma música assente numa electrónica abstracta onde se tornam recorrentes a dissonância e intermitência, desvios à expressão sónica de até então focada nas notas pedais. Um processo melódico, que faz uso da exploração como modo de progressão. Reflexos de uma música que contém tanto de um olhar interior como de procura do desconhecido — mas sem angústia, fá-lo de modo contemplativo, traduzindo uma delicadeza sublimada. Resultado de um processo de composição entre marcos, como ciclo de vida — a morte do seu pai e o nascimento da sua filha.
Daqui a alguns dias estarás de regresso a Portugal e Galiza para uma digressão que te fará regressar a certas memórias. Também a tua música é feita de uma projecção que tem muito em conta memórias de um passado marcante. Que recordações mais influem na tua música, desde figuras de referência como o teu pai — Yoshi Wada —, ou a Galiza da tua infância, suspeito do som drone das gaitas-de-fole?
Oh, eu não vivi na Galiza. Tenho familiares do lado da minha mãe que são da Galiza, mais concretamente de Santiago de Compostela, e íamos visitá-los no Verão. É muito bonito lá. Fomos a Ortigueira, ao festival de gaitas-de-fole. O meu pai tocava gaita-de-fole, como referes, por isso estava interessado em ver e ouvir isto. Para mim, a música é como uma acumulação de memórias sonoras, cada uma delas moldando-me subtilmente e, por vezes, dramaticamente. Na minha própria música, procuro frequentemente mundos sonoros que me pareçam simultaneamente familiares e desconhecidos, o que, de certa forma, é uma resposta a isto. A gaita-de-fole pode fazer sobressair esta qualidade. Toquei repertório de piano clássico ocidental durante toda a minha infância e juventude, pelo que esses gestos e formas estão enraizados em mim e existem como uma corrente subjacente na minha música.
Referes que o teu registo What Is Not Strange? é uma “música de sonho, habitando um estado emocional”. Podemos pensar numa aproximação ao teu subconsciente? São como elementos tornados possíveis em composições que orbitam estados difíceis de traduzir? Como que processos introspectivos partilhados?
Damos preferência ao nosso mundo físico partilhado por necessidade, mas todos nós também temos mundos interiores que habitamos, e pergunto-me se estes espaços escondidos são mais universais do que tendemos a permitir-nos acreditar. São tão reais como qualquer outra coisa que eu experimente. A música permite-me manifestar algo disto, invertendo a perspectiva do que é a fonte e do que é o reflexo. Talvez sejam todos reflexos neste momento ou sempre foram. Recentemente, após muitos anos, voltei a escrever num diário. Tenho uma filha pequena, por isso, muitas vezes, há muita coisa a acontecer e é mais provável que me esqueça de coisas. É um processo interessante estar em diálogo connosco próprios. Pode ser engraçado, mundano, mas também concentrado. Gosto da forma como nos obriga a sermos honestos connosco próprios. Para quê incomodarmo-nos de outra forma?
Assumes como influentes as ideias da escrita do poeta surrealista Philip Lamantia, também ele com processos criativos utilizando recursos experimentais e abordando linhas transgressoras. Esses são pontos notórios de contacto entre o trabalho de ambos, terás outros que possas revelar?
Claro. As fontes de inspiração que mais me marcam não são frequentemente a música. Acho que é mais interessante pensar na música em relação a outras coisas. Recuando um pouco mais na história, tenho regressado aos escritos de Franz Kafka nos últimos anos. Li-o no liceu, como a maioria das pessoas. Mas só mais tarde, já adulto, é que comecei a olhar para ele de uma forma mais aprofundada e alargada. Acho que não percebi bem o humor quando era mais novo. Mas ouço muita música. Provavelmente a música que mais ouvi no ano passado foi a de João Gilberto, particularmente o seu álbum homónimo de 1973. Sabias que a Wendy Carlos foi a engenheira de som deste álbum?
Ahh, de facto… Mas voltando ao teu álbum, que começa com um questionamento “What Is Not Strange?”, uma introdução que tenta colocar muito em perspectiva, depois desenrola-se até terminar numa clara afirmação, algo conclusiva, com “This World’s Beauty”. É assim mesmo, como uma boa estratégia de vida? E em palco, nesta digressão, podemos esperar um epilogo desse tipo para levar para casa?
Gosto de uma coda [n.d.r.: em música, é uma passagem que traz um final ao movimento]. Mas nem sempre têm de funcionar da mesma forma. Com “This World’s Beauty”, quis voltar a algo familiar e que me fizesse sentir bem, talvez a vida. Não diria que é uma resposta ou uma saída em si. É mais cíclico do que isso. Regressamos a esta vida uma e outra vez porque é tudo o que temos. Estamos aqui para experimentar e aprender.
Toda a criatividade experimental da tua composição, entre texturas e melodias nos teclados, ganha uma expressão maior e imprescindível com a voz de Julia Holter, uma ligação inseparável. Estarás acompanhado, para além da sua voz, pelas percussões de Corey Fogel. Tocar de forma o mais orgânica possível em concerto faz cada vez mais sentido hoje — uma afirmação de autenticidade e sinceridade. É também esse o vosso propósito enquanto formação?
Sim, acho que sim. Acho que pode parecer um pouco antiquado, nalguns círculos, ter uma banda nesta altura. Mas o aspecto humano de fazer música é importante para mim. Há uma ligação que se forma com o público quando tocamos todas as noites, respondendo uns aos outros e à sala, fazendo o nosso melhor para alcançar um reino superior (mesmo que momentaneamente). Gosto muito de estar nesse estado. É verdadeiramente surrealista.
O vosso primeiro concerto nesta digressão, em Coimbra, terá lugar numa pequeníssima capela com mais de 400 anos, um tesouro bem guardado, e que poucas vezes se abre ao público. Será um privilégio para nós e para vocês, mas sobretudo para a tua música. Como estás a prever esta vossa digressão?
Oh, obrigado. Sim, vi uma fotografia da capela, é linda! Temos andado a ensaiar. Tocámos bastante no ano passado, por isso temos andado a ensaiar, o que é divertido. Estamos a tentar dar uma maior clareza às coisas, mas deixando espaço para surpresas. Por dentro, a minha música tem uma espécie de estado de fluxo, e a minha esperança é que consigamos transmitir isso.