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Fotografia: Adriano Ferreira Borges, Sérgio Monteiro & Lais Pereira
Publicado a: 03/02/2025

O festival de conferências e showcases propõe-nos uma nova visão para um mapa historicamente problemático.

Square: o Atlântico cabe dentro de um quadrado (reflexão ao retardador)

Fotografia: Adriano Ferreira Borges, Sérgio Monteiro & Lais Pereira
Publicado a: 03/02/2025

O mapa, como sublinha o tantas vezes citado adágio, não é território. Mas pode ser plano, pode ser intenção. E é a isso que se propõe o Square, novo “showcase festival” que tem por declaração de princípios “mapping the Atlantic”, uma ideia que se traduz numa ambiciosa proposta programática que se estende por um cartaz prenhe de problemáticas abordadas em conferência e num diverso conjunto de concertos que se espalham por múltiplos palcos de Braga, Guimarães, Barcelos e Famalicão — o quadrado a que se refere o nome do evento. O Square arrancou no dia 29 de Janeiro e terminou anteontem, dia 1 de Fevereiro.

A base e ponto de partida para este mapear do Atlântico — que liga, histórica, cultural, económica e geograficamente a Europa, África e as Américas, que permite que o Norte comunique com o Sul e que o Este faça trocas com o Oeste — é o bracarense gnration, espaço disruptor e dinamizador que se tem afirmado crescentemente como força vital no panorama cultural nacional. Uma galeria que também é palco, um laboratório que também é rampa de lançamento, um espaço de pensamento que também é lugar de acção.

Actualmente, o gnration — que é um dos muitos polos de onde emanam as múltiplas actividades de Braga 25, capital portuguesa da cultura — tem patente “Objects of Projection“, retrospectiva da obra visual da eternamente jovem Kim Gordon, artista que a partir de Nova Iorque, primeiro com os Sonic Youth e depois com um vibrante trajecto a solo, difundiu para o mundo uma distinta visão artística que da música se estendeu às artes visuais. Percorrer os diferentes espaços onde os seus filmes e música se desenrolam em instalações imersivas equivale a meter um pé nesse vasto oceano de estímulos que o Square também pretende mapear, um lugar tão real quanto culturalmente construído, como bem se percebe pela temática das conversas, debates e comunicações que o extenso programa propõe. Na quinta-feira passada, dia em que o Rimas e Batidas entrou dentro deste quadrado, a manhã alinhava temáticas como “Escrutínio Terrestre”, “O centro não pode conter: redefinindo a ideia de sucesso”, “A margem não escreve a história” ou “Geografia como catalizador, geografia como limitador” e “Língua franca” num conjunto de animadas talks e sessões de cinema. Mas, ao longo dos três dias de programação, as conversas abordaram ainda mais divisivas e pertinentes temáticas que se entrelaçam neste problemático presente. A saber: “Prática Artística no Portugal rural”, “Cidades e comunidades criativas para a música”, “Precariedade ou viver como músico”, “Salas geridas por comunidades e outras ideias de organização horizontal na indústria da música”. Percebe-se claramente que o investimento no pensamento crítico começou a ser feito logo no momento do desenho do programa, algo que parece lógico, mas que nem sempre sucede.

As conversas, sempre tidas perante atenta e plural audiência, são elas mesmas oportunidades de mapeamento, declarações de partilha de experiências e ideias onde se implodem e desmontam noções de centralidade, colonialismo, cultura e tradição, com os diferentes oradores a trazerem ao encontro do público exemplos das suas práticas e projectos que são, cedo se percebe, possibilidades de nós mesmos, os receptores/ouvintes, nos questionarmos criticamente perante o que julgamos serem as certezas da nossa existência. São sempre úteis estas escutas do que chega de outros lugares deste mapa Atlântico. Por exemplo, Kikelomo Oludemi, na conversa em torno do impacto das geografias ditas “periféricas” no activismo cultural, em que também participaram igualmente Saya Mohamed e Brahim El Mazned, sob a orientação da jornalista April Clare Welsh, explicava que a decisão de criação da Oroko Rádio em Accra, no Ghana, foi crucial para a sua diferenciação, já que lhe facilitou a ligação directa a uma vibrante e original cena artística que se desenvolvia longe dos olhares dominantes. Exemplo prático do sempre inteligente agir local/pensar global que deveria orientar todos os novos projectos.

De Braga, partiu-se depois de uma manhã de “talks” de autocarro até Barcelos, por si só uma possibilidade de descoberta do território. Este quadrado que se estende entre Braga, Barcelos, Guimarães e Famalicão pode ele mesmo impor uma outra possibilidade de centralidade, com cada uma destas cidades a afirmar-se crescentemente com diferenciados argumentos, todos eles mais do que válidos: do Semibreve ao Mucho Flow e Westway Lab, do Julho é de Jazz ao Guimarães Jazz e Jazz ao Largo, do gnration e Theatro Circo ao Centro Cultural Vila Flor e Centro Internacional das Artes José Guimarães e daí ao Museu de Olaria ou Fundação Cupertino de Miranda e Casa das Artes de Famalicão. Um conjunto de eventos e diferenciadas instituições que têm vindo a erguer novos eixos de programação que convidam à circulação de públicos. A já mencionada mostra dedicada à arte de Kim Gordon é apenas um exemplo de entre um vasto leque de eventos, exposições e festivais com personalidades muito vincadas. E que nos mostram e proporcionam coisas — concertos, exposições, conferências, etc. — a que não se tem acesso em Lisboa ou Porto. 

A tarde em Barcelos começou com um interessante exercício no largo da feira, quando em frente a um chafariz se realizou um concerto com os neerlandeses Housepainters, praticantes de uma música ritmicamente  musculada e naturalmente dançante que levou até ao recinto onde é possível encontrar louças de barro, artesanato em madeira e roupa acessível — “3 boxers sem costura a 5 euros” é um bom exemplo — um público com perfil visual “alternativo” que quase de certeza não é clientela habitual daqueles vendedores. O curioso aqui é que não é só esta “juventude” mais moderna que é confrontada com uma cultura popular bem distinta. O curioso, na verdade, é que a observação é mútua e a confluência quase inevitável: o feirante dança um pouco e tira notas para as modas do futuro; e o melómano urbano tem oportunidade de se educar com aromas distintos do ramen da sua dieta habitual. Win-win.

Concertos com as galegas Caamaño&Ameixeiras (folk movido a violino, acordeão, pandeireta, humor desafiante, erotismo soft e feminismo declarado), um desinteressante Ricardo de Léon (podem circular, nada para ver aqui…), uns espantosos Hetta (hardcore movido a nervo incontido e militância na zona extrema dos decibéis que arrancou com uma gravação de “Diamond Life” de Sade, coisa linda, e, para estes ouvidos, pelo menos, terminou com o que soou — e perdoem se estiver enganado — a delirante citação a “Kalemba (Wegue Wegue)” de Buraka Som Sistema), e um interessante Julián Mayorga (espécie de versão sul-americana de Gary Wilson em modo new wave absurdista) completaram a etapa barcelense do programa. O regresso a Braga ainda permitiu conferir os tugas Unsafe Space Garden e Zancudo Berraco

Nos restantes dias, antes e depois de Barcelos, o Square alinhou ainda artistas como Skanderani,  Judas, Ariana Casellas y Kauê, Comfort, King Kami & João Parente, Susobrino, Rádio Cassetta, Mynda Guevara, Sju, Verde Prato, Planta Carnívora (curioso estes dois nomes aparecem em sucessão no cartaz…), Fidju Kitxora, Tennaz, El Khat, Huggen Luft, De Schuurman, ANTCONSTANTINO, Guedra Guedra, Júlia Colom, Maggie Nichols, Adelaide, Gushes, Gato Sapato, George Silver, Fantasmage, Isa Leen, Yeri & Yeni, Tresor&Bosxh + Belladona&Lombwa, Maria Reis, Quadra, Asmâa Hamzaoui & Bnat Timbouktou, Cantes Malditos, Fvlcrvm,  Rocío Guzman, System Sophie, Ricardo Martins, Psudoku, Emmvr, ||ALA|MEDA||, Liliane Chlela, Ale Hop, Noia e DJ Fucci. Um extenso programa que se estendeu por essa vasta ideia Atlântica que pode ir da Venezuela à Polónia, das músicas tradicionais ao hardcore e ao techno, e que espelha bem o mundo diverso em que ainda vivemos apesar de toda a normalização capitalista que torna os centros das grandes cidades em zonas indistintas e absolutamente subtraídas de identidade.


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