Sabemos como foi. A 30 de janeiro de 2021, uma queda fatal marcou um ponto final na vida de Sophie Xeon. Tinha 34 anos. Queria chegar mais perto da lua. Para trás ficou um corpo de obra pioneiro (apelidaram a sua música elástica e dissonante de bubblegum bass, designação que ganharia novos contornos com a chegada da hyperpop, já nesta década) e um legado por cumprir que deixou marcas em todos os cantos da pop, que ajudou a moldar com uma plasticidade ímpar. Em entrevista à Billboard, alguns meses após a morte da irmã, o produtor Benny Long recordava o desejo partilhado de alternar entre a criação de um álbum experimental (o álbum de estreia Oil of Every Pearl’s Un-Insides, de 2018) com um sucessor pop, bem como o desejo de prosseguir esse ciclo criativo por muitos anos. SOPHIE, uma ópera sintetizada em quatro atos, é o resultado desse segundo impulso.
Apontado como o segundo e último álbum de SOPHIE a solo, o primeiro lançamento póstumo da autora de “Immaterial” arranca com uma tensão quase palpável. A atmosfera sinuosa da introdução — uma ode aos ambientes planantes de Badalamenti — inaugura o primeiro segmento com um manancial de eletrónicas expansivas e texturas distorcidas, antes de se dissolver numa nuvem abstrata que contrasta pela contenção e minimalismo. A artista multidisciplinar Juliana Huxtable dá voz à descarga industrial de “Plunging Asymptote”, tema previamente incluído na compilação Locus Error, lançada em 2019 pela editora трип, da russa Nina Kraviz. A última, por sua vez, contribui com um poema no tema “The Dome’s Protection”, antes de avançarmos para território familiar — isto é, o da pop pegajosa e irresistível — com Kim Petras, uma das muitas discípulas da escocesa, a iluminar o caminho de “Reason Why”. “Live In My Truth” é um pedaço de pop maximalista, mas sem o visco de “BIPP” ou “Faceshopping”. “Why Lies”, com LIZ e BC Kingdom, preenche essa lacuna e confere alguma espessura, mas fica a sensação de que algo se perdeu pelo caminho.
O terceiro segmento foi pensado como um mix criado em tempo real, à semelhança do que aconteceu com o sucessor de remisturas de Oil of Every Pearl’s Un-Insides. Nele entregamo-nos ao abandono da música de dança, com teclados viperinos e linhas de baixo devedoras dos primórdios do techno e do house. É justamente aí que se encontram alguns dos momentos mais bem-sucedidos de SOPHIE, como a exuberância de “Do You Wanna Be Alive?” na reta final ou a galopada que dá lugar ao pesadelo rave de “Berlin Nightmare”. O último ato prende-se com os conceitos de eternidade e de renovação. As cúmplices Hannah Diamond (“Always and Forever”) e Cecile Believe (“My Forever”) ditam o tom emocional do trecho, apontando para uma ideia universal de reencontro com o primordial (o amor, a amizade e a música enquanto elemento transformador). É o momento mais tocante do álbum, um retorno a território conhecido que evoca o desejo de encontrar o extraordinário no ordinário, construindo pontes entre o tangível e o sublime.
A essência de SOPHIE sempre esteve nos acabamentos. Montado e finalizado por Long após a morte da irmã, o álbum póstumo homónimo peca por uma certa falta de edição. O trap processado de “Rawwwwww”, enfiado inexplicavelmente no segmento mais experimental do disco, revela fragilidades ao nível do sequenciamento. O problema acentua-se quando se torna difícil distinguir a colaboração da mera contribuição, erros de cálculo que beneficiariam de uma filtragem mais apurada. Mais do que inacabado, SOPHIE é uma obra programada e impessoal: não mancha nem deixa marca. A antítese, portanto, de uma artista que soube expandir os limites da pop como poucos, reenquadrando-os num prisma queer e transdisciplinar. No ar fica a dúvida sobre o que poderia ter sido alterado, eliminado ou reformulado.