As “Variações” (em “Si Menor”, “Lá Menor”, “Ré Menor n°2”, em “Mi Menor”, entre outras) são temas para guitarra portuguesa de Artur Paredes — pai e referência na mestria das doze cordas de aço que o filho, Carlos, tomou cedo com devida deferência no seu processo de genialidade autoral. Mas variações foram também, em muitos momentos, o modo de execução com que o expoente maior da guitarra tocou as suas próprias composições. Repentinos desvios, imprevisíveis alternâncias do modelo melódico dos temas que, contudo, as harmonias à viola de Fernando Alvim, e mais tarde Luísa Amaro, sempre souberam primorosamente acompanhar.
No Convento São Francisco, dia 16 de Fevereiro, cem anos depois e em Coimbra, na terra que vira nascer o genial mestre, outros fizeram da sua música motivo maior para compor nova música, a deles mesmos — música própria. Este ano de 2025 já está a ser de extensa programação em torno da evocação do centenário de Carlos Paredes. Haverá em muitas dessas ocasiões homenagens das mais diversas formas e feitios. Haverá oportunidades de voltar a ouvir os seus temas e as suas variações, versões mais próximas ou mais distantes das contudo inigualáveis composições do mestre Paredes. E dentro disso há outras manifestações criativas, que partem dessa motivação mas escolhem mudar. sem perder a influência devida do mestre. Foi disso que se tratou a junção de dois imprescindíveis guitarristas dos dias de hoje, Ben Chasny (também conhecido como Six Organs of Admittance) e Norberto Lobo, uma ideia surgida, refira-se, desde Ilídio Marques (programador cultural do gnration) e de pronto cultivada por Pedro Santos (que desempenha igual função na Culturgest). Também Paredes teve em muitos momentos da sua obra marcos de mudança. Quando fez surgir no novo cinema português os seminais temas que acompanham Mudar de Vida — filme de Paulo Rocha de 1966, junto com António Reis no argumento —, Carlos Paredes serviu nele a arte dos novos sons. Até então nada se ouvira assim.
Chasny e Lobo, que na residência no meio do Atlântico criaram nova música, num encontro a meia distância, partilha mútua da música um do outro, e sob a égide inspiradora da herança de Paredes. Lobo é para o seu cúmplice de palco um músico “inter-estrelar”, assim mesmo apresentado a meio do concerto. Chasny que se vira de algum modo impelido a mediar por palavras o estarem ali, para tal ocasião. No entanto, referindo que o que melhor se ajustava na vontade e propósito era que a música trazida se fizesse ouvir em modo de uma suite — tudo de seguida. Sim, estamos em sintonia, e paira também nisso um modelo utilizado por Paredes quando em 1975 gravou para a RTP um conjunto de peças musicais por homenagem a Catarina Eufémia, quando compusera a suite “O Ouro e o Trigo”. Uma enorme demonstração autoral e que junto com Alvim colocava a guitarra portuguesa num espaço apartado, próprio de um instrumento solista com alma infinda de uma identitária cultura.
Neste presente, Chasny e Lobo trazem um conjunto de temas que gravitam entre culturas, que tanto nos trazem uma profunda folk americana como se inscrevem perto das linguagens malianas como que ecos de koras, sinais de mudanças dentro das seus percursos até aqui escutadas. Há pontos de tangência à música de Paredes no sentido em que das cordas saem manifestações de gentes e culturas. Aqui e agora, escutam-se multiversos em cruzamentos e miscigenados. Uma ancestralidade cósmica das Américas e das Áfricas que se encontra neste périplo continental por Portugal a propósito de uma celebração — começou em Lisboa, passou por Braga, Espinho e hoje desce até Faro. Em palco houve lugar de outras guitarras, e dentro do instrumento no regaço de Norberto Lobo há uma miriade de outras guitarras. Das cordas em tensão libertam-se expressões à medida da mestria das suas invenções. Também Paredes inventou outras instrumentações, concretas no modo. Junto ao mestre construtor Gilberto Grácio, Paredes idealizou o guitolão — uma extensão da guitarra portuguesa em novos campos de possibilidades —, um instrumento solista para dispensar acompanhamento e em tudo mais grave e ressonante que a guitarra. Grácio haveria de o construir, mas o mestre Paredes apenas tocou um pré-guitolão, e essa guitarra portuguesa barítono tem hoje em António Eustáquio um privilegiado cultor e compositor.
Há motivos vários para celebrar Paredes como mestre de novos rumos, partindo de demonstrações vividas como esta, plena de inovação. São, afinal, mudares de vida, sabendo homenagear apresentando o novo, sem contudo deixar de reconhecer quem e como se chegou até aqui. Norberto Lobo bem cedo no seu percurso revelou essa influencia cimeira, e esse reconhecimento consta precisamente no seu primeiro disco, Mudar de Bina (2007), dedicado a Carlos Paredes. Registo esse que incluí a sua visão de “Mudar de Vida”, tema inevitável, com toda a carga e significado, que finalizou o concerto tornado presente póstumo no centenário do mestre dos movimentos perpétuos da guitarra.