A Culturgest encheu-se de gente na noite da passada quinta-feira, 13 de Fevereiro, para o arranque de uma digressão especial que colocou Ben Chasny (aka Six Organs of Admittance) e Norberto Lobo lado a lado para um diálogo entre cordas de guitarras. A sala de espectáculos lisboeta uniu esforços com mais quatro equipamentos culturais do nosso país para acomodar em palco estes dois músicos numa performance inédita que tinha como premissa servir de homenagem a Carlos Paredes, mítico guitarrista de Coimbra cujo centenário do seu nascimento se assinala amanhã, 16 de Fevereiro, mas que serve de motivo para uma série de eventos que celebrarão a redonda marca ao longo de todo o ano, como podem atestar pelo roteiro cultural criado para o efeito e disponível para consulta através deste link.
À chegada do espaço inserido no edifício-sede da Caixa Geral de Depósitos, esperava-se o inesperável — e no melhor dos sentidos possível. Afinal de contas, estamos a falar de outros dois mestres da guitarra que se unem no nobre propósito de enaltecer o legado deixado por alguém que os antecedeu na grande história da música, e ainda por cima com a promessa de um concerto totalmente desenhado para o efeito e sem recorrer ao mais óbvio dos “truques” que costumam ser utilizados nestas ocasiões — o tão famoso cover. Do jovem hipster sedento pelo que mais disruptivo oferece a cultura que brota na capital portuguesa ao economista em busca de descomprimir da rotina através do lado mais sofisticado e arrojado da arte, era imenso o contraste entre os corpos que formavam a massa adepta que lotou por completo a Culturgest para ver os dois músicos em acção e perceber de que forma poderiam eles evocar o espírito do eterno gigante da guitarra portuguesa através de uma fornada de novas composições.
Este é também o momento perfeito para se reflectir sobre como devemos continuar a passar as memórias de um dos maiores símbolos culturais do nosso país às gerações vindouras. A relação íntima que este mestre de Coimbra desenvolveu com as cordas da guitarra portuguesa, aplicando-lhe elevadas doses de inventividade, deveria ser merecedora de uma análise mais aprofundada ao longo da escolaridade obrigatória. Apesar do enorme reconhecimento que emana daqueles que se cruzam com a sua obra, a música de Carlos Paredes parece estar apenas ao alcance dos mais curiosos, aqueles que buscam o que existe além do que vem resumido nos compêndios, quando o seu nome deveria estar na ponta da língua de qualquer alminha que termine o 12º ano — tal como estão os de Amália Rodrigues, Eça de Queirós, José Saramago ou até mesmo Eusébio da Silva Ferreira. Uma aula a menos em torno da romântica e errada visão dos “descobrimentos” ou do estudo da infame flauta de bisel poderia abrir a vaga curricular necessária para que muitos mais jovens pudessem estar a par dos feitos daquele que, de forma unânime, é considerado o maior guitarrista nacional de todos os tempos.
Já imaginaram o nobre propósito que é um músico rejeitar a ideia de viver da sua arte, mantendo outro trabalho “das 9 às 5” de modo a garantir a total independência da sua arte e assim conseguir continuar a explorar novos trilhos sonoros? Paredes fê-lo para ter as bases que lhe permitiram engrandecer a cultura que hoje todos respiramos e o mínimo que podemos fazer para lhe devolver o gesto é ter a curiosidade de escutar as melodias que emergiram desse altruisticamente peculiar gesto. Até um artista de blues do Mississippi teria algo a aprender com a melancolia que transpira a “Canção Verdes Anos”, assim como “Movimento Perpétuo” deveria ser uma peça de estudo obrigatória para qualquer par de mãos com aspiração a solista de heavy metal. Paredes tanto foi o nosso BB King como Randy Rhoads, o twist português necessário a linguagens musicais que apenas estávamos habituados a escutar vindas de outras coordenadas. E trocando as voltas a um famoso adágio de uma marca de laticínios: se não formos nós a gostar e enaltecer daquilo que é nosso, quem o fará?
Prova do quão importante foi a pegada deixada por Paredes é, também, o facto do evento da passada quinta-feira ter contado com um renomado guitarrista norte-americano a fazer a vénia ao mestre das 12 cordas de aço. Ben Chasny é um adepto confesso da técnica do malogrado herói português e até foi o principal responsável para que a Drag City, editora sediada em Chicago, abrisse as portas do seu catálogo a um par de reedições de Paredes em 2011, que recaíram sobre os clássicos Guitarra Portuguesa (1967) e Movimento Perpétuo (1971). No palco da Culturgest, Chasny mostrou que os seus dedilhados são executados com a mesma perícia e sensibilidade que escutamos na obra do homem que Amália Rodrigues um dia apelidou de “monumento nacional”. Entre notas disparadas de forma calma e melodias mais velozes, capazes de emular a paz de amplos e verdejantes pastos ou a correria mecânica de uma locomotiva a vapor, teve o arpejo enquanto principal munição para a sua guitarra electroacústica e foi das pontas dos seus dedos que se ergueram a maior parte das “camas” harmónicas em que assentaram os temas criados em parceria com Norberto Lobo numa residência artística que decorreu em São Miguel, nos Açores. O americano foi uma espécie de Fernando Alvim, o homem que acompanhou Paredes à viola por mais de duas décadas, deixando grande parte das tarefas mais vistosas para Lobo executar.
Em cerca de uma hora de espectáculo, o português com conceituado percurso a solo e que milita em bandas como Montanhas Azuis e Oba Loba esteve quase sempre ao leme de uma guitarra eléctrica Fender, que apenas largou momentaneamente para um dos temas, substituindo-a por uma semelhante de outro fabricante. Com o auxílio de uma pedaleira ou um bottleneck, Lobo aproveitou aquele dueto para nos dar um valente showcase de toda a sua técnica, arrancando todo o tipo de diferentes sons do seu instrumento — houve alturas em que a guitarra se disfarçou quase de acordeão, outras em que conseguiu soar a um qualquer sintetizador com defeitos de fabrico. A sua prestação foi quase como um solo em continuum, ora a assumir a dianteira dos temas, ora de forma mais sublime a tecer texturas que ajudavam a enriquecer o que Chasny tinha para destacar.
De fado e de Paredes, praticamente só o ponto de partida que serviu para esta dupla dar aso a novo repertório. Houve muito experimentalismo na performance e laivos vindos de diferentes quadrantes da música, com a ancestralidade do blues, da folk e do country a conseguir ganhar novas formas de expressão através do olhar vanguardista que Chasny e Lobo tão bem conseguem alcançar. Algum material já inscrito na discografia do português também veio ao de cima a espaços por entre o alinhamento e houve até uma altura em que pareceu estarmos a escutar um certo funk banhado em ópio que fez lembrar uma espécie de versão decadente de “Snow (Hey Oh)” dos Red Hot Chili Peppers. Tudo pode ser Paredes dependendo de quem toca e do grau de atenção e análise que prestam os que assistem. De uma forma mais palpável, o eco do mestre da guitarra portuguesa fez-se sentir no derradeiro tema da noite, que trouxe os dois músicos para o palco já em regime de encore para nos presentearem com a sua visão única de “Mudar de Vida”, uma das preciosidades que podemos encontrar no já mencionado álbum Movimento Perpétuo.
Depois de Lisboa, o par seguiu para Braga, onde actuou ontem dentro das paredes do gnration. Hoje mesmo, 15 de Fevereiro, voltam a repetir a dose no Auditório de Espinho, seguindo-se imediatamente mais um par de prestações escaladas para o Convento São Francisco (Coimbra, dia 16) e o Teatro das Figuras (Faro, dia 18) antes de, em Abril, agraciarem a edição que se avizinha do festival Tremor, nos Açores. Façam um favor a vocês mesmos e não percam a oportunidade de recordar um dos mais inventivos espíritos da música portuguesa através das mãos de dois incontornáveis e visionários instrumentistas do nosso presente.