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Fotografia: Adailton Moura & Ju Dentello
Publicado a: 05/02/2025

Da rua para da TV e da TV para o palco.

Sintonia – O Último Baile: a valorização da cultura e das pessoas da periferia de São Paulo

Fotografia: Adailton Moura & Ju Dentello
Publicado a: 05/02/2025

O caos de São Paulo teve o nível elevado com a chuva que caiu na sexta-feira, 31 de janeiro. Por conta da quantidade de água, alagamentos aconteceram em diversos pontos da capital financeira do Brasil. Esse problema recorrente poderia ter afetado os planos de uma parcela dos jovens da periferia da cidade que estavam empenhados em passar o sábado, 1 de fevereiro, curtindo funk e rap no Memorial da América Latina. Aberto, o espaço recebeu Sintonia – O Último Baile, um festival gratuito — com distribuição de ingressos físicos e online que esgotaram em poucos minutos — para promover a 5ª e última temporada da série homônima da Netflix, baseada em uma ideia original de KondZilla.

Por retratar a vivência das favelas do país, Sintonia se tornou um dos grandes sucessos nacionais da plataforma. Os primeiros episódios da temporada anterior atingiram o topo do ranking diário da plataforma no Brasil e em Portugal, sendo a primeira entre as séries de língua não-inglesa com mais de 42 milhões de horas assistidas e média de 6,4 milhões de visualizações.

Ao meio dia, horário em que os portões se abriram, o tempo melhorou. O sol não apareceu, mas o calor era intenso pelo mormaço. Os ambientes foram divididos em dois: Palco Fluxo e Ringue de Batalhas de Rimas, e Palco Principal. O primeiro, do lado esquerdo do Memorial, reproduzia a vivência dos bailes feitos nas ruas das periferias de São Paulo, os chamados fluxos. Ali, os DJs do Baile do Céu, Baile da Ruinha, Baile do São Jorge e o Baile da DZ7, um dos mais conhecidos, colocaram todos para dançar com as diferentes vertentes do funk, da bruxaria ao mandelão.

Excitados pelo frenesi da palpitação dos graves que faziam o corpo tremer, jovens, negros em sua maioria, se divertiam trajados com seu melhor kit — o conjunto de roupas. Diferente dos fluxos, a curtição aconteceu sem a preocupação do baile ser encerrado de forma brusca e violenta pela polícia — como acontece corriqueiramente. Seguindo as tradições estilísticas da quebrada, uma barbearia foi colocada à disposição para quem quisesse dar um trato no cabelo e fazer as unhas. 

Enquanto isso, do outro lado da passarela, os trabalhos no Palco Principal foram iniciados com o DJ Kalfani (filho do DJ KL Jay, dos Racionais MC’s) nos toca-discos. Às 14h, os três protagonistas de Sintonia, Christian Malheiros (Nando), Bruna Mascarenhas (Rita) e Jottapê (Doni), abriram o primeiro concerto anunciando o medley que viria na sequência. 

Ao longo de quase duas horas MC IG, MC Tuto, MC Marks, MC Cebezinho e Jovem MK se revezaram no microfone. A dinâmica entre eles funcionou bem. A cada hit, o público cantava junto. MC IG foi um dos mais celebrados. Ele é um dos 11 MCs presentes no sucesso “Lets Go 4”, uma das músicas mais ouvidas no Spotify Brasil em 2023, e que atingiu o Top 80 Global e o Top 60 em Portugal. O MC Tuto também esquentou ainda mais a pista com “Barbie” e “Do Job”, feita em parceria com o Grelo, que juntas ultrapassam os 200 milhões de plays. Destaque também para a trapper Jovem MK, que ganhou destaque em 2024 pelo álbum Meu Karma. O mesmo foi indicado ao Grammy Latino na categoria “Melhor Vídeo Musical Versão Longa” com o curta-metragem da música que intitula o disco. Assim como na gravação, MK é ligada nos 220 volts. Não para. Vai de um lado para o outro, interage com a plateia, a câmera e os dançarinos. Faz o show, e o mantém quente. 

Com horários seguidos rigorosamente, MC Menorzinha, Tasha & Tracie, e Duquesa entraram em cena por volta de 16h10. Antes teve um grupo de vogue e break, com o duo Deekapz tocando as “mais brabas”. O fim de tarde destacou quatro mulheres representantes do rap, trap e funk. MC Menorzinha, considerada a mulher pioneira do funk de São Paulo, que se desenvolve anos depois do Rio de Janeiro, foi aclamada e recebeu a “coroação” das gêmeas Tasha & Tracie, duas artistas visionárias e influentes no trap e também no streetwear. Junto com a rapper Duquesa, elas representaram todas as mulheres presentes no “rolê”, que eram maioria. Apesar dos recorrentes problemas no retorno e no tempo da guia, que estava um pouco atrasada, elas mantiveram a postura e seguraram até o fim. Em 2024, Duquesa ascendeu com o álbum Taurus, Vol. 2. Entrou nas muitas listas de melhores do ano e os seus shows foram alguns dos mais comentados. Não era para menos, considerando que todas as vezes que tomou à frente manteve os espectadores atentos e envolvidos. 

Na metade dessa apresentação, a imprensa foi retirada (sem ser informada os motivos) do pit — o espaço em frente ao palco — e não foi permitida voltar ao lugar, nem mesmo fotógrafos. Essa limitação prejudicou o trabalho, levando alguns jornalistas a desistirem de acompanhar os demais concertos.

Antecedendo os headliners, Racionais MC’s e Hariel, o rapper RT Mallone trouxe para o ao vivo a habilidade que o fez vencer o reality show Nova Cena (Netflix), a versão brasileira de Rhythm + Flow. Para complementar a cultura dos fluxos e enaltecer o trabalho dos motoboys, o grau (empinar motos) teve o seu momento com alguns motociclistas profissionais fazendo manobras na passarela do próprio palco. Ao final, Gloria Groove surge na garupa de uma moto, toda de vermelho, para homenagear o MC Daleste — assassinado em 2013 durante uma apresentação em Campinas, interior de São Paulo. Um tributo necessário para um dos funkeiros que contribuíram para o fortalecimento do funk paulista.

Com um pequeno atraso, os Racionais MC’s entraram quase que ao mesmo tempo que a chuva começou. Abriram com “Marighela”, e seguiram com músicas “lado b”. “Eu sou Função”, com a participação do Dexter, e “Preto Zica” foram as que mais empolgaram. Quando a intensidade da água aumentou, houve quem procurasse um lugar para se refugiar. Mas a maioria se manteve com ou sem capas de chuva. A experiência que ficou marcada foi ver a interpretação de “Jesus Chorou” naquele clima denso, trazendo para a realidade toda a sensação ouvida na gravação. Completamente molhados, eles mantiveram a postura e o compromisso. Assim que saíram do palco, a chuvarada também cessou. 

Sob chuviscos, Hariel acabou com a ansiedade daqueles que ficaram o dia todo esperando para vê-lo. Ele não só fez jus a essa expectativa, como mostrou porque é um dos grandes artistas da música brasileira. Por ter letras politizadas (“conscientes”) e discursos relacionados à justiça social, ele furou a bolha do funk e se mantém relevante dentro e fora da música — conquistando a admiração de medalhões da MPB, como Gilberto Gil. Irrepreensível, segurou a atenção. Um artista que precisa de mais oportunidades nos grandes festivais, fora do circuito funkeiro.

Às 22h, nem um minuto a mais, não se ouvia mais nem um som, a não ser de conversas e risos. A felicidade estava estampada nos rostos. Essa foi uma oportunidade importante para que pessoas sem acesso a um evento desse porte acompanhassem de perto alguns de seus ídolos de forma gratuita e se identificassem com o ambiente. Isso se faz cada vez mais necessário porque a cultura que nasceu na periferia tem ganhado cada vez mais espaço no show business, porém, os moradores dessas áreas não possuem condições de vivenciar sua própria criação nos grandes festivais por questões financeiras. Foi bom, mas ainda é pouco. Ao final, bilhetes de metrô foram distribuídos para que os presentes voltassem para suas casas.


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