Programar um evento cultural de grande magnitude acompanha uma ideia de retorno consequente, de como vai ser vivido e, sobretudo, do impacto que causará, não tanto na matraqueada economia, antes na educação e promoção da arte na vida de cada pessoa que vem. Esta edição faz-se 20 anos depois da primeira e continua a cumprir, pela 18ª vez, o maior desafio de todos — o de celebrar a expressão artística contemporânea garantindo a entrada gratuita. Esta utopia do real afirma o Serralves em Festa como maior evento cultural do ano entre portas e um programa marcante no panorama fora delas. Hoje há artistas que pisam os palcos destas 50 horas contínuas de programa influenciados desde sempre por esta iniciativa e que irão, entre os milhares que vivem a programação, deixar marcas que garantem a continuidade criativa pulsante. É um cruzamento festivo, da fruição do espaço envolvente com a música, dança, teatro, cinema e mais linguagens que (n)os ligam. Um festival é um momento de viver o desconhecido e de se ver e ouvir o que nos faz voltar dele mais enriquecidos.
Jessica Moss, abriu o programa à música. A violinista canadiana tomou o palco do Campo de Ténis e lembrou bem como a maior razão para a festa é a gratidão. Sente-se honrada e felizarda por estar ali presente. Contudo faz múltipla alusão a que no mundo há os que resistem e sonham em ser livres dos que os oprimem e aniquilam. Faz-se acompanhar de um keffiyeh negro — o lenço que representa a esperança da resistência na Palestina. Sobre cada um dos dois postos emissores da sua música, há uma fatia de melancia em tecido — a ardilosa maneira de desfraldar a bandeira palestiniana. “Dreaming for free Palestine” — são suas as palavras, como as de muitos que sonham em igual medida. A música feita de longas arcadas ao violino que as plêiades de pedais processam e acumulam em camadas, sedimenta-se na expressão do som vindo das vocalizações que alterna para uma construção de uma peça contínua sonora vivida entre a fragilidade e o marcante. Um par de crianças brincava na terra batida, levantando pequenas nuvens de pó e terraplenando o seu micromundo com as mãos — era a expressão visual do que a música remetia, marcada pelo cariz denunciante e sonhador que Moss decidiu imprimir no ar.
Foi o voo de asa para o sonho que se aguardava no palco das Azinheiras para Jeremiah Chiu. O que gravou no Vintage Synth Museum e editado em In Electric Time para a International Anthem seria intransponível para ali. Cada museu com o seu acervo, o de Los Angeles tem um vasto conjunto de sintetizadores que lhe permitiram uma intuitiva experimentação eternizada em disco, o do Porto tem arte contemporânea e serviu de paredes-meias para a música de Chiu, improvisada no momento e que ficou a pairar. Do porta sintetizadores, cheio de cabos multicoloridos, descolavam os sons disparando sob o céu estrelado hábeis corpos cintilantes. Mais adiante serviu a par disso esteiras de ritmos vindos de idiofones de mão, que soube cruzar na trama electrónica. Viajou-se num sentido orgânico, onde a linguagem electrónica adornou o cosmos sonoro que teve passagens mais lúdicas trazendo pontuados de diversão ao espaço do vaguear planante. Foi o primeiro de muitos mais voos que se esperam deste comandante sónico que esperamos ver de novo a cruzar o nosso espaço aéreo.
De volta às Azinheiras — que acabaria por ser um local tão orgânico durante a festa — para ouvir na luz e temperatura do meio da tarde quente o magistral minimalista Tiago Sousa. O teclado funciona como orgão (externo), vital para sua música e orgânico para o que com ela transcreve. Somos privilegiados por ouvir o que será uma boa parte do 4º volume das Organic Music Tapes, a próxima a sair lá para o inicio do ano na série da Sucata Tapes pela Discrepant. A sua música feita de caleidoscópios rituais sonoros apresenta-se como modelo descritivo orgânico, evolutivo, como “organismo na forma alternativa de organizar o mundo” com explica por palavras entre música, assim como “as árvores, que ninguém esculpiu”. Ouvimos de presente “Fear’s Dance” e “Being a Landscape”, na qual há um cenário de tarde de Verão de fundo, composto por uma parede sonora permanente de como que coros de cigarras, uma plena tarde de Verão — que ainda não é — que se sente próximo. Lembra-nos Sousa que “o lado orgânico da eficiência é conseguido pelo tempo necessário até esse alcance” — em resumo, a evolução. “Resonates” é escutada em acomodadas vozes que se vão acamando à medida que surgem, peça que fecha Organic Music Tapes Vol. 3 e que aqui é antecâmara para o final que se escuta com “Thousand Streams”, outro inédito servido e que se revela em textura diáfano, mostrando claras interacções das ondas com acrescidos padrões e figuras escutadas.
Cruzando a nova ala do Museu de Arte Contemporânea voltamos ao mundo das projecções de fita 16mm sem fim, pela instalação “Onça Geométrica” da dupla João Maria Gusmão e Pedro Paiva. Os anéis, como discos voadores multicolores, integrados na releitura das obras da colecção do Museu com “Anagramas Improváveis”. Foi veloz, em modo de atalho estratégico, para alcançar um dos limitados lugares disponíveis na Capela, para a reunião sónica convocada com Ensemble Decadente. É um colectivo intermitente de músicos, aqui reunindo 10 elementos com outras tantas (ou mais) instrumentações: um gira-discos vintage de rádio integrado; dois núcleos de controladores e sequenciadores sonoros — um deles operado por João Paulo Daniel (de Folclore Impressionista); duas vozes — uma delas a de Maria Radich (de Lantana); duas guitarras eléctricas operadas mais até nos pedais; um portentoso baixo eléctrico; dois percutores de utensílios inusitados; um operador de rádio transístor. Há ainda um skate estático e um porta-estandarte com um pano onde se pode ler estilizado um “NNÃO”. Com isto, a plenos pulmões e muita descarga, ouve-se a música em catarse, numa contínua expurga sonora que manteve a Capela em alto volume de comunhão entre crentes do principio da irrepetibilidade na música.
Rita Silva, no nosso regresso ao recanto das Azinheiras, para um sublimar sónico servido desta feita pelos sintetizadores modulares. Voltar ao palco onde os modulares de Chiu já nos tinham feito sonhar alto. Agora era a vez da música contemplativa electrónica de igual ferramenta servida no feminino. Na entrevista que deu a Maria Carvalho para conferir aqui, para Rita Silva não é coincidência de todo haver mais mulheres artistas neste campo da música e que se relaciona com: “uma certa sensibilidade e uma certa reflexão que nós fazemos muitas vezes e que eu faço no meu processo, que é ‘eu faço música e sou mulher, tenho sorte’ — há muitas que querem fazer música e não podem.” Além das vindas a palco a solo tem-se apresentado também em colaborações, como reportámos na sua passagem surpresa pelo menor’24 – Festival de Música Electrónica. Consciente da dimensão e do alcance profundo destes instrumentos, faz nas prestações ao vivo uma combinatória entre técnicas de programação generativa com a improvisação surgida no momento. Absolutamente compenetrada desenvolveu uma ascensão que permitiu em muito sentir a rugosidade crustal, como numa viagem planar etérea até assentar de novo os pés no solo do parque de Serralves.
A música que se cruza connosco ou que nos trouxe a mais um palco leva a momentos de total surpresa. Foi o que aconteceu com o concerto de Miguel Pipa, no chão da sala da Galeria Contemporânea, entre um enorme címbalo suspenso, uma verdejante costela-de-adão, osciladores de som, sensores de movimento entre outros dispositivos. Neste mundo sonoro segue-se o caminho orgânico na música electrónica, num sentido multiverso, mas de certo modo recorrente nestes encontros. Despontado por uma perdurada e envolvente maré sonora vinda do címbalo que alimentou os canais por onde haveria de passar até nos embater. Esse efeito era duplo, directo da fonte emissora e retardando após interagir com os dispositivos ligados em contínuo. O resultado é uma energia cíclica que se autoalimenta, estimula e se percepciona de forma concreta no meio envolvente vegetal e animal. Um encantador retorno terapêutico que permitiu a recarga necessária para os dois mais momentos que havíamos programado para o dia.
Serpente nas Azinheiras, nem seria a vez dum réptil nem estávamos num recanto do montado, antes uma dupla de músicos no palco que já nos tinha cativado o lugar. Serpente como entidade do produtor Bruno Silva, que do último longa duração Dias da Aranha, seleciona da mão cheia de colaborações em disco a do saxofonista Pedro Alves Sousa, partindo das possibilidades reveladas na faixa “Ritos de Poeira”. Sousa que se vai multiplicando em mais possibilidades de emprestar a dupla voz do seu tenor — na edição do ano passado fê-lo junto à flauta processada de Violeta Azevedo. Desta feita volta pela mão de Silva, que se apresenta imerso nas malhas prontas a serem disparadas do laptop servindo uma trama de ritmos entre o jungle e o drum’n’bass. Sousa atravessou esse caudal, fazendo uso das descargas cósmicas emanadas, quer na via limpa, quer pela via processada, o som campanulado do tenor. Num corpo sonoro orgânico, percutindo em via aberta, resultado da intensidade vibrante de um fôlego ininterrupto da respiração circular de Sousa e do embalo contaminado das cadências marcantes produzidas por Silva.
E de corpos precursores de som haveria de continuar o programa das festas. Chegada a derradeira possibilidade de tomar um dos lugares do Auditório para ver e ouvir “Strong Born”, a coreografia de Kat Válastur em estreia nacional, que conta com a sonoplastia e música ao vivo da percussionista Valentina Magaletti, para um corpo de dança concebida e levada a palco pelas intérpretes Xenia Koghilaki, Noumissa Sidibé e Tamar Soon. Apresenta Cristina Grande — programadora das artes performativas a par de Pedro Rocha — que o que iremos assistir é um ritual, que usa a ferramenta do mito — grego de Ifigénia — para, desviando a história do lado trágico do sacrifício, antes enaltecendo a solidariedade feminina. O corpo de dança, desenvolvido sobre um palco estrado-arena — que ressoa — amplia a função de dança-percussiva, das três entidades que incorporam elementos de madeira e cerâmica como pontos de som. E desenvolve-se um embolo que convoca e desafia, que envolve e aparta, com elementos de dança da cultura hip hop, e se desenvolve ao ralenti. Isto até ao momento catalisador que coincide com a “chamada” de Magaletti ao dispositivo de percussão montado. Daí em diante decorre uma interligação poderosa das três, conjugando os elementos percutidos adstritos do corpo com a vibrante percussão provinda das baquetas resultando numa força enriquecedora de peito feito ao afrontamento do sacrifício feminino — para lá da mitologia.
A hora dominical mediana do último dia de programa retomou o espaço do contínuo corpo como matéria sonora na festa, e no jardim da Casa do Cinema Manoel Oliveira, Marco da Silva Ferreira e João Pais Filipe voltaram a “Terra Cobre”. Os chocalhos como matéria de trabalho sonoro e visual, entre uma planície feita de folha de zinco e um dispositivo de percussão, entre um corpo — que dança — feito badalo, e um par de baquetas que a timbrar o metal e peles faz a ligação entre o animal — que guia — e a matéria que constitui o objecto que indica o paradeiro das reses tresmalhadas. Silva Ferreira haveria de voltar feito chocalheiro, evocando o Entrudo transmontano, e Pais Filipe a deixar no ar o que o haveria de o ligar mais tarde, no quase final de festa além deste cobre, a CZN, aliado a Valentina Magaletti.
Derradeira e terceira apresentação de “S-P-Y-H-M-O”, no ainda enigma do nome, para o acto performativo para vozes e movimentos corporizados por CIA Instável com Ana Olcina, Artur Bóndia, Beatriz Lourenço, Carina Hofmann, Eiby Lobos, Felipe Contreras, Joana Correia, José Couteiro, Kosma Bresson, Margot Thuillier, Marine Perruchoud, Marta Machado, Mia Brandão, Passaint Hicham, Paola Ribeiro, Sílvia Fernandes e Thalia Agapaki. Idealizado pelo colectivo vocal COBRACORAL de Catarina Miranda, Clélia Colonna e Ece Canli. Trio que, na Biblioteca do Museu onde a performance tem lugar, fica oculto da visão, mas presente na voz, na sonoridade e na condução do acto. Os corpos que surgem rastejantes, que nem nudibrânquios, transpõem o plano horizontal num novo vertical, emergem vindos de algures, e trazem a luz frontal, aquela que indica o caminho. Desenham padrões vocais mecânicos, respiram e movimentam a voz e ligam-se em coreografias envolventes que se observam desde o alto, como quando se olha para os seres que habitam as poças das rochas, numa oportunidade que se revela entre marés.
Nas Azinheiras o palco era agora o lugar inútil, sem aproveitamento. “Esse lugar não somos nós”, avisa Loup Uberto que junto a Lucas Ravinale (dois dos membros de Bégayer) montaram antes arraiais e instrumentação à sombra de uma azinheira. Tal como na canção de Grândola, da azinheira que nem sabíamos a idade jurámos ter por companheira a vontade daqueles dois músicos franceses. Praticantes de uma música que em muito se enraíza na “arte e cultura povera” do noroeste de Itália, no canto de trabalhadoras do ciclo rural, no canto do trabalho, nas mondadeiras dos campos do arroz na Bacia do Po — Le Mondine —, as mesmas da canção “Bella Ciao” que a resistência anti-fascista eternizou. Uberto e Ravinale revisitam esse cancioneiro e acrescentam também o do ciclo pastoril da transumância. Na apropriação que fazem usam uma instrumentação na leitura do canto da terra, entre pandeiros e cordofones, que vêm do Magreb às estepes da Mongólia, onde até entram instrumentos inventados, como uma gaita-de-fole de duplo cantante feito de tubos de PVC e odre de cantil de plástico, engenhosamente insuflada por uma pequena bomba eléctrica, já que os pulmões e a boca ficam empregues ao canto, por vezes polifónico de rasgado entusiasmo. Quando imaginámos que o encanto das longínquas sonoridades chegaria apenas mais adiante pela mão de Ustad Noor Bakhsh no benju eléctrico, não prevemos que este seria um concerto bem mais imperdível. Fica a referencia para o registo Racconto Artigiano que Uberto tem co-editado na helvética Three:Four Records e na francesa Le Saule, onde explora este repertório melódico artesanal que tem absoluto lugar e pertinência no espaço cultural contemporâneo.
Ustad Noor Bakhsh foi programado para o maior dos palcos do Serralves em Festa, no Prado, e sob um sol inclemente apresentou-se ladeado por dois tocadores de Damboora. Bakhsh com o cordofone benju que, ficámos a saber, deriva do taishōkoto — instrumento de brincar japonês — outrora deixado pelo cruzamento cultural no Baloquistão (Paquistão) e adoptado e transformado pelos músicos da cena local, numa história contada por Daniyal Ahmed, mediador e um dos músicos em palco, etnomusicólogo que em 2022 empreendeu uma viagem de dois dias para encontrar o virtuoso músico e a sua música até à remota aldeia perto de Pasni. Actualmente viajam em digressão pelo mundo, com Doshambay, e chegam vindos de um concerto na Suíça e as bruscas mudanças de clima causam moça nos instrumentos. O benju encontra destemperos frequentes e Bakhsh passa momentos recorrentes de afinação que causam quebras no andamento do concerto — assim tarda em levar-nos para longe dali como imaginámos e desejámos. Há até uma corda que parte e obriga a que a música passe a fazer-se antes de uma raga — uma das que se ouvem à tarde — que na sua diversidade devem ser escutadas em função do momento do dia. Bakhsh assim que tem uma nova corda reposta e encontra a afinação segue os dois músicos e desprende o seu virtuosismo — enquanto a mão direita bordeja incessante as cordas metálicas, a esquerda vai “dactilografando”, já que o braço do instrumento é formado por um mecanismo que parecem as teclas de uma máquina de escrever. A música de Bakhsh tem muitas fontes de inspiração, mas uma das mais influentes é a melodia que aprende do canto das aves da sua região. São essas melodias que transcreve de forma intuitiva para o benju e desbrava com elevada maestria, transporta essa aura de lenda viva e toca com um sorriso generoso e eloquente.
Nem foi preciso sair muito do cenário musical para ter de fazer escolhas contínuas do vasto programa de actividades, por isso este foi um percurso dos muitos possíveis e que assumimos fechar com o concerto de final de tarde no Campo de Ténis, onde no mês de Julho se ouvirá o que o ciclo Jazz no Parque trará ao rectângulo de terra batida de Serralves. Para final de festa escolhemos CZN, o acrónimo do nome dos elementos cobre, zinco e níquel que João Pais Filipe tem como matéria-prima nas percussões que constrói. Em palco, num frente-a-frente, que se sente bem mais num lado-a-lado, alinhados no desafio, estava a companheira de cena Valentina Magaletti. No que se começou por escutar como uma prática de carrilhões estendidos, entre o cruzar de timbres vindos dos sinos tubulares, passou a ser tomado em ritmos que foram descrevendo trajectórias entre os timbalões e congas, a dois, coesos, circulares e de pulso grave inquebrável, que convocaram a danças interiores hipnóticas e irrecusáveis. E foi sentir chamamentos constantes, sinais de uma festa que queria perdurar…