Há um paraíso chamado Sesimbra Natura Park que ganha nova vida nesta altura do ano com o Sabura Festival. À segunda edição, este certame que fica a cerca de 50 minutos de Lisboa veio solidificar o seu estatuto com uma proposta que se faz através da combinação entre música local e global (com especial foco na lusofonia), uma ampla zona florestal, um lago, campismo e inúmeras actividades — que vão do arvorismo ao kayak.
Depois de chegarmos já bem ao final da tarde de ontem, 30 de Agosto, a corrida contra o tempo começou. Entre o instalarmo-nos no local, conhecer o recinto e jantar, já Orlando Santos estava a preparar toda a logística do seu concerto. Felizmente, o palco Zeca Afonso, para o qual estava escalado, era mesmo ao lado do local destinado para a revigorante refeição que tínhamos à nossa espera. Várias guitaras, um baixo, microfone e o que deveria ser uma pedaleira de loops foram as principais ferramentas deste artista português que tem feito larga escola na cena soul — são mais de duas décadas ao serviço da música negra nacional, tendo já colaborado com projectos como Cool Hipnoise ou Orelha Negra. No Sabura Festival, focou-se no amplo espectro sonoro que o reggae consegue cobrir, mostrando-se um verdadeiro mestre do lovers rock e um amante das frequências do dub, apresentando versões despidas de canções suas ou de outros artistas.
Apesar do vasto terreno que cobre este parque natural de Sesimbra, o recinto onde decorrem as actuações é bem modesto, o que não tem de ser necessariamente mau, pois a afluência de festivaleiros também não exige um espaço maior. Isso significa que não enfrentámos propriamente nenhuma multidão a testemunhar cada espectáculo, algo que, estamos crentes, pode muito bem vir a alterar-se num futuro breve, mal o festival comece a estar mais presente na cabeça do público português. E acreditem: bastam umas horas aqui passadas para nos imaginarmos a regressar e a imergir neste ambiente mais vezes.
Às 21 horas, o número de transeuntes era um bocado mais simpático, mas ainda assim longe do desejável para um alinhamento desta envergadura. Foi em frente ao palco Sabura que se adensou um maior número de cabeças para experienciar um bocado da herança cultural cabo-verdiana, um dos vários pilares que compõem a actual e plural paleta sonora portuguesa. Sentadas ao longo de uma série de cadeiras perfeitamente alinhadas estavam as Batucadeiras Finka Pé a representar os ritmos daquele arquipélago africano, adornados com canções tradicionais que vão passando de geração em geração — e no elenco havia mulheres de todas as idades a comprovar isso mesmo. Além de nos presentearem com a mais pura das doses da sua cultura, estas cantadeiras e percussionistas fizeram sempre questão de envolver o público ao máximo, desafiando até umas quantas pessoas a subir ao palco para as acompanharem nas danças. Uma coisa é certa: é um concerto daqueles em que nem é preciso conhecer o repertório para que a nossa alma seja embalada ao ponto de não darmos pelo tempo a passar. De longe a experiência mais espiritual neste dia inaugural do certame.
E do espiritual passámos ao emocional num abrir e fechar de olhos. Rita Vian foi a artista que se seguiu e que nos motivou um regresso ao palco Zeca Afonso. Apesar de já termos perdido a conta às vezes que a vimos ao vivo, ontem fomos surpreendidos pela presença de TNT atrás da maquinaria que nos temos habituado a ver ser controlada por João Pimenta Gomes. O rapper e produtor dos M.A.C. encaixa que nem uma luva num tipo de espectáculo que, à partida, podíamos não sentir ser a sua praia, pontualmente abrilhantado pelos mágicos dedilhados de Manel Ferreira à guitarra, que entrou e saiu de cena um par de vezes. Não por culpa sua, a voz de Rita Vian não soou tão cristalina como é habitual. O sistema de som daquele palco parecia estar mais talhado para sons graves e lo-fi, o que favoreceu a prestação de Orlando Santos e não tanto a da autora de CAOS’A e SENSOREAL. O que não pudemos absorver de cristalino das cordas vocais da cantora, levámos a dobrar em descargas de frequências baixas que causaram uma grande pressão sonora sobre os presentes. Nas faixas em que a batida era mais pronunciada, foi quase como se estivessemos a experienciar a obra de Rita Vian em contexto de bass music.
Marcado para se apresentar às 23 horas, a espera por Dino d’Santiago foi imprópria para cardíacos. O artista de Quarteira era, de longe, aquele que o público mais queria vez neste arranque do Sabura Festival’24. O DJ de serviço esteve irrepreensível na escolha de temas d’Os Tubarões ou José Casimiro para nos manter entretidos, mas não foi o suficiente para que a massa adepta não se fizesse escutar a espaços com cantorias de “Dino, cadê você? Eu vim aqui só pra te ver.” O homem que tem elevado a nação criola só surgiu em cima do palco Sabura uns 30 ou 40 minutos após a hora marcada, perante aquela que terá sido a plateia mais cheia do dia, que ainda assim não formava uma moldura humana totalmente condizente com envergadura deste evento.
2024 foi o ano que Dino escolheu para regressar ao formato de banda, e para o Sabura fez-se acompanhar por um baixista, um baterista e um vocalista que, mais para o final do concerto, deslumbrou principalmente devido a uma breve coreografia a solo que protagonizou no centro do palco. Percorrendo a sua vasta obra, desde Eva (2013) a BADIU (2021), encantou todos os presentes com o seu incontornável poderio vocal — fossem ingleses, espanhóis, alemães ou italianos, todos estavam a vibrar ao som da pulsação de Dino. O momento mais alto da sua performance foi quando fez as delícias das Batucadeiras Finka Pé ao convidá-las para subir ao palco na hora de “BRAVA”, elas que haviam passado a actuação inteira a vibrar na fila da frente com um dos seus grandes ídolos da música cabo-verdiana.