Roberta Flack era — e assim há-de permanecer — uma pessoa especial. Foi educada na igreja desde cedo, mas cedo também percebeu que não era a entrega a uma entidade divina, a um conjunto de mandamentos e princípios, aquilo que mais a atraía, antes a música que se escutava nos templos, fossem eles a igreja metodista em que começou por tocar piano para acompanhar hinos ou a igreja baptista, “ao fundo da rua”, para onde se esgueirava para ouvir uma declinação mais moderna de gospel, lá em Black Mountain, numa Carolina do Norte dura para quem tinha nascido com um tom de pele escuro, no início de 1937, muitas décadas antes dos movimentos que reivindicaram direitos para os afro-americanos.
“Gosto de dizer que dois pregadores vieram de Black Mountain. Billy Graham e eu”, contou Flack à revista Ebony em 1971. “Ele está a pregar à sua maneira e eu estou a pregar à minha maneira. E para mim, uma filha falhada da igreja que, durante uma parte da minha vida, foi obrigada a sentar-se em bancos gastos num esforço para salvar a minha alma, eu compreendo. A religião, pelo menos da forma que os meus pais esperavam, não me conquistou. Não eram as palavras que estavam sempre a ecoar na minha cabeça, era a música. Adoro a forma como um hino me faz sentir, como uma brisa suave na pele quente. Uma afirmação sussurrada. E quando me apercebi que a música — qualquer tipo — pode ser santa e sagrada, soube que tinha encontrado a minha religião. Encontrei-a em notas, ganchos e refrões cheios de alma. Encontrei-a numa voz que dobra uma nota, sustenta-a, acaricia-a. Prega, Roberta, prega. Dá o teu sermão de amantes desavindos, românticos sem esperança, de sons de júbilo. Eu acredito”.
A vida de Flack foi realmente extraordinária e o biopic que certamente se fará um dia a relatar essa história terá que assentar num guião muito inteligente se quiser, num brevíssimo par de horas, condensar tantos feitos que isoladamente já seriam impressionantes: ingressou com uma bolsa completa na Howard University — instituição em que conheceria o cantor e futuro parceiro criativo Donny Hathaway — quando contava apenas 15 anos, deu aulas em liceus racialmente segregados enquanto, à noite, ia aprimorando a sua arte em clubes nocturnos e restaurantes, acompanhou cantoras de ópera e construiu com base no seu talento singular uma aplaudida e bem sucedida carreira que lhe permitiu, décadas mais tarde, ser a vizinha do lado do casal John Lennon e Yoko Ono no notório edifício Dakota, em Nova Iorque — o pequeno Sean Lennon tratava-a por “tia Roberta”.
E pelo meio aconteceu o suficiente para encher muitas vidas. A primeira grande oportunidade de Roberta Flack aconteceu em Washington, D.C., cidade para onde se mudou para tocar regularmente no Mr. Henry’s, um restaurante em Capitol Hill onde actuava todas as noites, depois de cumpridas as suas funções de docente. A visibilidade aí conquistada permitiu-lhe ser integrada num cartaz de um concerto beneficente que pretendia angariar fundos para uma biblioteca para crianças num bairro negro e pobre da cidade. Foi nesse concerto, em que Roberta Flack desfilou o seu habitual reportório de baladas folk, temas soul das tabelas de vendas contemporâneas e arremedos gospel de recorte mais clássico, que o pianista e vocalista Les McCann a ouviu, não hesitando em recomendá-la à Atlantic Records pouco depois. Joel Dorn, um dos mais destacados produtores ao serviço da etiqueta de Ahmet Ertegun, ouviu Flack interpretar quatro dezenas de canções do seu bem oleado reportório, numa sessão maratona de gravação que serviu para perceber que temas deveriam depois ser fixados no álbum de estreia, que seria gravado uns meses mais tarde, nos estúdios da Atlantic em Nova Iorque.
First Take, lançado em Junho de 1969, é um verdadeiro assombro. Ladeada por uma equipa de luxo reunida por Dorn, incluindo Ron Carter no contrabaixo, Bucky Pizarelli na guitarra, Frank Wess e Seldon Powell nos saxofones ou Jimmy Nottingham e Joe Newman nos trompetes — veteranos sérios das mais exigentes sessões de estúdio e dos mais vibrantes palcos de jazz —, Roberta Flack ofereceu ao mundo uma estreia em que a sua múltipla personalidade ficou imediatamente exposta: a abrir o alinhamento, uma canção de protesto escrita para si por Gene McDaniels, “Compared to What”, tema que obteria sucesso pouco depois nas mãos de Les McCann, que o incluiu no reportório da sua passagem pelo festival de jazz de Montreux; seguiam-se, depois, versões de “Angelitos Negros”, em que brilha o contrabaixo de Carter (tema a que Caetano Veloso também ofereceu uma tocante releitura, décadas mais tarde); “Our Ages or Our Hearts”, primeiro sinal de uma frutuosa parceria criativa com Donny Hathaway; e o tema tradicional “I Told Jesus”.
O lado B, no entanto, abrigava os maiores triunfos deste álbum: as versões de “Hey, That’s no Way to Say Goodbye” e, sobretudo, “The First Time Ever I Saw Your Face” afirmavam Flack como uma notável intérprete bem capaz de, graças a abordagens pessoalíssimas, reclamar para si temas criados em contextos muito diferentes. A primeira dessas canções foi originalmente gravada por Judy Collins, mas eternizada pelo seu autor, Leonard Cohen, no seu registo de estreia, Songs of Leonard Cohen, de 1967. A segunda é uma eterna criação do cantor folk britânico Ewan MacColl, uma declaração de amor escrita para Peggy Seeger e gravada por incontáveis nomes da geração folk dos anos 60, do Kingston Trio a Peter, Paul and Mary. Mas foi na voz de Roberta Flack que esta admirável e comovente balada se tornaria um êxito, sobretudo depois de Clint Eastwood a ter escolhido para figurar de forma destacada na banda sonora da sua estreia como realizador, Play Misty For Me, filme de 1971. Relançada em single em 1972, a canção seria um êxito tremendo que alavancou a carreira de Flack nos anos que se seguiram.
A cantora manteve a pressão sobre as tabelas, sobretudo as mais focadas na música negra, com os seus trabalhos seguintes que alcançaram igualmente êxito assinalável: lançou Chapter Two e Quiet Fire, em 1970 e 1971, respectivamente, que alcançaram ambos o Top 5 nas tabelas de R&B e ofereceram ao mundo belíssimas versões de clássicos de Dylan (“Just Like a Woman”), Buffy Sainte Marie (“Until It’s Time For You to Go”) ou da incrível tripla formada por Leroy Hutson, Curtis Mayfield e Donny Hathaway (“Gone Away) e ainda de Paul Simon (“Bridge Over Troubled Water”) e Carole King (“Will You Still Love Me Tomorrow”), temas estilisticamente muito diversos que expuseram bem o alcance das capacidades interpretativas de Flack.
O álbum seguinte foi importante, porque Roberta assumiu aí a faísca criativa que resultava dos seus encontros com Donny Hathaway, outro tremendo intérprete que também era um sólido autor. Roberta Flack & Donny Hathaway, de 1972, não só continha fantásticos arranjos para temas de Carole King, uma vez mais (“You’ve Got a Friend”), Aretha Franklin (“Baby I Love You”) ou os Righteous Brothers (“You’ve Lost That Lovin’ Feelin’”), todos eles da esfera pop. Como incluía uma tremenda “Be Real Black For Me” de Hathaway, um dueto que era um autêntico hino à negritude no auge do Black Power e dos protestos associados ao Movimento dos Direitos Civis. “Por muito que acredite na luta das pessoas negras”, disse uma vez Flack numa entrevista, “sei que a minha melhor aposta é expressá-la através da música”.
Foi, no entanto, o álbum seguinte que rendeu a Flack um dos mais perenes êxitos da sua carreira. Killing Me Softly saiu em 1973, alcançou o terceiro lugar nas tabelas de vendas gerais da Billboard e o segundo nas tabelas de soul e “despachou” a assombrosa quantidade de 2 milhões de cópias na época, tornando-se um registo ubíquo nas casas dos afro-americanos. O álbum também deve a sua extrema qualidade à excelência da equipa de estúdio reunida pelo produtor Joel Dorn: Ron Carter no baixo, uma vez mais, Eric Gale na guitarra, Grady Tate na bateria, Ralph MacDonald nas percussões e Eumir Deodato, Don Sebesky e “Pee Wee” Ellis nos arranjos de cordas e sopros. Não foi por isso espanto nenhum que em 1996 o tema tenha voltado a ser um tremendo sucesso na voz de Lauryn Hill, dos Fugees. Após a notícia da morte de Roberta Flack ter circulado, Lauryn Hill escreveu nas suas redes sociais um sentido tributo.
“Whitney Houston disse-me uma vez que a voz de Roberta Flack era uma das vozes mais puras que ela alguma vez tinha ouvido. Cresci a explorar os discos que os meus pais coleccionavam. A Sra. Flack era uma das favoritas deles e tornou-se imediatamente uma das minhas, assim que a conheci. Tinha um ar fresco e inteligente, gentil e ao mesmo tempo militante. As canções que gravou, desde ‘Compared To What’, passando por ‘The First Time Ever I Saw Your Face’, até à sua versão de ‘Ballad Of The Sad Young Men’, fascinaram-me pela sua beleza e sofisticação. A Sra. Flack era uma artista, uma cantautora, uma pianista e compositora que me comoveu e me mostrou, através das suas próprias escolhas criativas e padrões, o que mais era possível dentro do idioma da Soul. ‘Killing Me Softly’, uma canção que a Sra. Flack não escreveu, mas que se tornou extremamente popular, tornou-se a canção que me catapultou a mim e aos Fugees para fenómenos geracionais. Quisemos honrar a beleza e o brilhantismo desta canção e a sua interpretação para a nossa geração. Ficarei para sempre grato pela sensibilidade e pelo poder delicado do seu amor e da sua arte. Descansa em graça, amada”.
Claro que os Fugees estão longe de ter sido os únicos a samplar Roberta Flack: o facto dos seus discos terem sido êxitos identitários para gerações de afro-americanos tornou-os disponíveis quando jovens adolescentes munidos de samplers procuravam no armário da sala da casa dos seus pais a matéria prima para construírem a sua própria versão cadenciada de uma música negra em permanente devir. Artistas como Scarface, Chance The Rapper, Terror Squad, JPEGMAFIA, AZ, The Game, Gang Starr ou Kanye West estão entre as centenas que encontraram nos discos de Roberta Flack os pontos de partida para as suas próprias criações.
Roberta editou mais três álbuns antes da década de 80 se esgotar, cada um com válidos argumentos a favor da sua eternidade, e, em 1980, lançou Roberta Flack Featuring Donny Hathaway, dolorosa despedida do seu parceiro criativo que se suicidou no ano anterior, sucumbindo aos seus graves problemas de saúde mental.
Na década de 80, Flack ainda encontrou outro parceiro criativo em Peabo Bryson e na música que gravou acabou por influenciar também a cena “quiet storm” que então despontava com artistas como Sade e Anita Baker. O último dos seus registos, de 2012, foi Let It be Roberta: Roberta Flack Sings the Beatles, uma última amostra do seu apelo universal. Flack teve que lidar com severos problemas de saúde a partir de 2016, facto que a afastou irremediavelmente dos palcos.
No seu obituário, a Okayplayer citou uma entrevista de 2021 de Roberta Flack à revista Forbes: “Eu fui professora antes de ser artista profissional”, sublinhou. “O meu primeiro emprego depois da faculdade foi como professora nas escolas públicas de Washington, D.C. Quando considerei o que significava para mim deixar um legado para as gerações futuras, sabia que isso significava mais do que apenas o meu catálogo de música gravada, queria proporcionar aos jovens a oportunidade de aprender, crescer e desenvolver plenamente as suas mentes. Em 2006, fundei a Roberta Flack School of Music no Bronx, que, graças ao financiamento de Prince, proporcionou educação musical a mais de 1000 crianças durante mais de 10 anos”. O activismo tornado real, nas acções como nas canções.
“Acho que a música nos salva”, explicou também numa entrevista à revista Essence, em 1989. “[As artes] podem salvar a tua vida se fores capaz de estender a mão, tocá-las e agarrar-te”.