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Fotografia: Nuno Conceição
Publicado a: 02/07/2024

Irmandade através do som.

Renato Chantre: “Quando toco com outras pessoas tento sempre respirar com elas”

Fotografia: Nuno Conceição
Publicado a: 02/07/2024

Não estaremos muito longe da verdade se dissermos que, nas últimas duas décadas, qualquer pessoa que tenha percorrido o circuito da música ao vivo da Grande Lisboa em algum momento se terá cruzado com as quentes e pulsantes linhas de baixo de Renato Chantre. Chegado a Portugal no final da década de 1990, o músico trouxe consigo um sonho nascido nas ruas do Mindelo, em São Vicente, onde aprendeu a tocar e a imaginar uma vida onde a música pudesse ser profissão, ética e forma de estar na vida. 

Cumprir esse sonho não era fácil, sobretudo para um jovem imigrante num país que nessa época celebrava a reimergência do discurso lusotropicalista à boleia da Expo 98 e que ainda fazia o luto do trágico assassinato de Alcindo Monteiro. Mas como os sonhos são sempre mais poderosos que os constrangimentos, o músico fez-se ao caminho e foi formando a sua identidade à medida que colaborava com projetos fundamentais da música portuguesa contemporânea, como Mercado Negro, Kussondulola, Philharmonic Weed ou Cacique 97, e acompanhando artistas como General D, Tito Paris, Bonga, Eneida Marta, Remna Schwarz, Kimi Djabaté, Chullage, Cachupa Psicadélica, Jon Luz, Dino D’Santiago, Richie Campbell, Boss AC, Acácia Maior e muitos, muitos outros.

De todo esse caminho se fala nesta entrevista, onde se lembram conquistas sem ceder a falsos romantismos, já que a sua história é também a da precariedade do setor artístico, do parasitismo da indústria e da sua ideologia competitiva. Obstáculos reais que o fizeram parar três vezes, em momentos onde teve reaprender a acreditar num sonho que só imagina poder ser concretizado junto de uma geração que tem feito da união a sua força. É também essa geração que se celebra no seu projeto em nome próprio, desde logo ao lado Milton Guli e Prétu, convidados dos primeiros dois singles, mas também de muitos outros companheiros que a si se juntam no vídeo de “Meio Tuston Li Ka Tem Troku”. Afinal, a imponência dos tubarões revela-se sempre impotente perante uma festa unida dos chicharros, a sua força coletiva e os sonhos que eles engendram e alcançam em conjunto.



Queria começar pelo início da tua trajetória. Tu nasceste em São Vicente, em Cabo Verde, certo? Viveste lá até que altura e quando é que vens para Portugal?

Sim. Vivi lá até aos 17 anos e vim para cá em 1998 porque a minha mãe já estava cá em Portugal. Ela veio estudar e depois trabalhar e eu lá vivia com a minha avó. 

Que memórias tens da vida no Mindelo? Como era a vivência lá? 

Era muito boa. Lembro que comecei a tocar aos 15 anos e foi de forma muito inesperada. A malta tocava na rua e um dia eu e um amigo fomos ter com o Vamar Martins, que é um guitarrista incrível, ele ensinou-me o lá maior e o lá menor, aqueles clássicos, e ficava a improvisar por cima. A partir daí nunca mais parei. Tínhamos um grupo de amigos, é uma memória muito boa que tenho, que se juntava para tocar na rua. Eram, por exemplo, dois guitarristas, e de repente vinha mais um e outro. Quem ia chegando ia tocando com muito cuidado para não atropelar ninguém porque já estava instalado um groove. Fomos aprendendo com quem sabia mais, nessa dinâmica, até que passado pouco tempo juntámos um grupo e participámos num concurso de bandas.

Tinhas que idade? 

Tinha 15 anos. As coisas aconteceram muito rápido e em poucos meses comecei a tocar ao vivo. Essa banda era eu, o Miroca Paris, o Flávio, o Felino, o Djodje, o Vamar Martins. Passado uns tempos, o Vamar sai e entra o Danilo Lopes. Nesse concurso de bandas também participaram os Ferro Gaita, que ganharam, e em segundo ficou uma banda de Jon Luz que eram os Serenata. O júri tinha pessoas como o Luís Morais ou o Manuel d’Novas.

Só grandes nomes da música cabo-verdiana.

Verdade. Era tudo malta grande, nós éramos os putos e não ganhámos nada [risos]. Mas nessa altura comecei a tocar todos os dias. Em vez de ir jogar futebol, ía para o campo na mesma, mas para tocar. Quem sabia mais ensinava quem sabia menos. Era uma troca muito fixe. Depois viciei-me… [Risos]

Nessa altura já tinhas uma guitarra tua? 

Sim. Pedi à minha avó para arranjar uma antiga guitarra que era da minha mãe, mas que estava estragada. Estava mesmo empenhado porque já estava com um feeling para a música. 

De onde é que achas que veio esse feeling? Li que vens de uma família de músicos.

Sim. A minha mãe cantou numa certa fase, o Teófilo Chantre também é o meu tio. E o próprio Danilo [Lopes] é meu primo, embora algo afastado. Lembro-me da minha mãe a cantar, apesar de ela ter emigrado quando eu era novo. Mas na verdade a aprendizagem musical foi na rua com amigos. 

Lembras-te das tuas primeiras memórias musicais, das primeiras músicas que ouviste?  

O meu pai era bargueiro, andava sempre a viajar e é um amante de música. Onde ía, comprava CDs, e houve um dia em que trouxe um CD do Ziggy Marley, que curti bué, mas que não me deu nem emprestou [risos]. Depois ouvi um CD do Bob Marley e fiquei completamente vidrado. A partir daí comecei a ouvir tudo o que era do Bob Marley. 

E as primeiras músicas que aprendeste foram de reggae ou já foram músicas do cancioneiro cabo-verdiano? 

Não, não… Primeiro aprendi aqueles dois acordes e depois a “Come As You Are” dos Nirvana [risos]. E aprendi também algumas músicas dos Megadeth [risos]. Os meus amigos eram todos da cena pesada e ouve-se muita coisa em Cabo Verde. 

Vens para Portugal aos 17 anos. Como foi o processo de imigração e de chegada aqui?  

Foi uma decisão da minha avó e da minha mãe, porque eu já só tocava e queria pouco estudar. Era adolescente, um bocado rebelde, e a minha avó achou que a minha mãe tinha que meter mão em mim [risos]. Hoje em dia acho que foi a melhor decisão porque aqui torna-se mais fácil fazer música. Lá é mais difícil por causa das condições que tens. Se fosse para lá agora, não haveria muitos sítios para tocar. Existem os barzinhos, mas pagam mal. Onde a malta consegue trabalhar enquanto músico, tirando na Praia [em Santiago], onde vai havendo algum trabalho, é nos hotéis da Boa Vista e do Sal. É um trabalho onde consegues ganhar dinheiro, mas torna-se rotineiro e podes ficar preguiçoso.

Quando chegaste a Portugal vieste estudar ou começaste a trabalhar? E como foram os primeiros tempos? Suponho que fosse uma vida bem diferente daquela que tinhas no Mindelo. 

Vim para estudar, sim. A minha mãe vivia no Montijo e custou-me um bocado. O que me fez mais falta foi aquela reunião de amigos em que a gente se encontrava para tocar. Aqui isso não existia. Mas acabei por fazer rapidamente amigos por causa da música. 

Como é que isso aconteceu?

Estava a estudar no secundário, no Montijo, e a minha mãe pôs-me nos escuteiros, para conhecer malta da minha idade. Eu não queria porque os escuteiros estavam ligados à igreja e era obrigado a ir à igreja todos os domingos tocar [risos]. Nada contra, mas…

Não ias tocar Bob Marley nem Nirvana na igreja [risos]. 

[Risos] Sim, o repertório não me chamava a atenção. Mas foi bom porque houve um momento em que fomos para o Gerês fazer um acampamento, eu levei o violão, e alguém me disse que no Montijo havia uma malta a precisar de um guitarrista. Fiquei contente porque ia ser guitarrista finalmente, que era o meu sonho! Mas quando conheço os gajos, eles dizem-me que estavam a precisar era de um baixista [risos]. Mas aceitei na mesma, apesar da banda ser uma cena de heavy metal pesado. Tocávamos covers de Megadeth, Metallica, Manowar, tudo com muito peso! 

E depois desse projeto, o que se segue?

Matriculei-me às escondidas numa escola de música. A minha mãe não ia deixar, porque era uma escola técnico-profissional, tinha de voltar para trás e acho que tinha algum receio. Hoje em dia ela apoia e dá força, mas na altura, sabes como é, os pais querem que os filhos tenham uma profissão de sucesso, em que ganhem bem, e a música é muito instável. Mas eu acredito que uma pessoa tem de seguir a sua vocação. Inscrevi-me às escondidas na EPMAA, na Sobreda. Quando a minha mãe soube foi uma guerra, mas acho que a minha tia e o meu avô conseguiram acalmá-la [risos]. Então fui trabalhar para as obras para comprar o meu primeiro baixo porque que não tinha instrumento nenhum. 

Porquê o baixo e não a guitarra, que foi o teu primeiro instrumento?

Eu estava na dúvida, mas foi intuição, não sei explicar. Comecei a sentir mais o instrumento, a ouvir alguns discos, do Marcus Miller por exemplo, e passei a ver o baixo de outra forma. Depois ouvi o Pastorius e fiquei impressionado com uma versão que ele fez do Bob Marley. Apanhou-me completamente e comecei a compreender que o papel do baixo não é só acompanhar o cantor ou a banda, pode ter uma função solista, pode ser um improvisador, pode ser usado como um instrumento melódico… Depois tive um grande professor, que foi o Cícero Lee, que me apresentou o pai dele, que é o Jorge Lee. Essas pessoas ajudaram-me bastante porque perceberam que eu era realmente feliz a tocar e a criar. Além deles tenho de mencionar meu brother Pacheco, do Montijo, que tinha uma garagem com amplificadores, guitarras, baixos, bateria, passávamos lá o dia inteiro [risos]. 

Como é que se dá então o teu processo de profissionalização como músico?  

Um amigo meu disse-me que havia uma banda que estava a precisar de um baixista. Essa banda eram os Philharmonic Weed. Fiz uma audição e entrei! A partir daí comecei a fazer muitos concertos pelo país e o sonho já estava a acontecer. De repente também comecei a fazer concertos de jazz em sítios mais pequenos. Depois o Milton [Guli] e o Gonçalo [Prazeres] fizeram Cacique 97 e convidaram-me. Nessa altura começo a tocar também com a Eneida Marta e começamos a fazer tours internacionais. E também já tocava, por exemplo, com o Kimi Djabaté. Quando dei por mim já estava a fazer muitos concertos pela Europa… Nesse período sai de casa da minha mãe, comecei também a dar aulas a crianças e já tocava vários dias por semana. 



Outras duas bandas que integraste tocaste foram os Kussondulola e os Mercado Negro, dois grupos históricos do reggae e da música negra em Portugal. Como é que se deram essas ligações?

A primeira vez que ouvi Kussondulola foi na rádio em Cabo Verde. Chamou-me logo a atenção e fiquei viciado naquilo. Reggae cantado em português a soar daquela maneira não era comum. A sonoridade, a dicção, batia tudo certo. Apesar da malta lá ser do rock, obriguei-os a tocar um reggae de Kussondulola [risos]. Quando já estava em Portugal soube que a minha mãe conhecia os músicos, porque ela também tinha cantado com o Bonga e alguns dos músicos, como o [Lito] Graça, o Laterna, o Betinho Feijó ou o Tchiemba — eram os mesmos. Já tinha essa referência, mas o convite deu-se quando fui abrir um concerto deles na Moita com uma banda que tinha que eram os Mensageiros de Jah. O Janelo [da Costa] estava a assistir e convidou-me para integrar a banda. Fiquei muito contente. Mas nessa altura também já estava a tocar com Mercado Negro porque já tinha conhecido o Messias. Foram ambos uma grande experiência para mim. 

Além das várias bandas que integraste, também tocaste para músicos como o Bonga, Richie Campbell, Dino D’Santiago, General D, Tito Paris, Boss AC, Tô Alves, Chullage e muitos outros. Sendo projetos com sonoridades distintas, como é que, enquanto baixista com uma identidade muito própria, te adaptas a todas estas linguagens? Como é construíste a tua identidade enquanto músico entre todas essas relações? 

Aquilo que me dá prazer é estar com outros músicos a tocar. E quando eu toco com outras pessoas, tento sempre respirar com elas. Tento encontrar onde está o balanço da música, onde está a coisa boa… Se um gajo encontrar uma boa secção rítmica, se a relação entre o baixo e a bateria estiver quentinha, já tens a melodia, já tens a música, já tens tudo. Eu tento encontrar um balanço bom para cada desafio. 

Para encontrares esse balanço, essa energia particular, tens de ter relação com as pessoas antes de tocarem?

Não necessariamente, embora ajude. É uma aprendizagem contínua. O mais importante é não estares fechado. Por exemplo, quando me chamaram para tocar heavy metal achei altamente porque ia tocar com outras pessoas. Quando fui tocar com a Eneida Marta, pensei: “Ui, grande desafio…” Aquelas músicas da Guiné, aquelas frases, ritmicamente aquilo é muito rico… Senti uma grande responsabilidade. Quando vais tocar uma linguagem que não é a tua, tens de ir com muita atenção, ouvir muito. Eu estava sempre a fazer perguntas. Às vezes a malta não me conseguia explicar bem, mas eu ficava ali na minha investigação. Acho que o truque é não ter a cabeça fechada, querer aprender e ouvir. Até cheguei a tocar fado com o António Amorim e o Sidónio Pereira, grandes guitarristas, infelizmente já falecidos. 

Ao longo deste percurso conseguiste viver exclusivamente da música? 

É muito difícil, sabes? Já tentei outros trabalhos, mas nunca fui feliz. Isto é o meu trabalho, tenho de me dedicar dia e noite. A música não é só o fim de semana quando vou tocar, tem de ser de segunda a segunda. Este sábado, por exemplo, vou tocar com a Jennifer Soledad e tenho de aprender todo o repertório. É duro, mas quando estou a tocar, estou a curtir. Hoje em dia consigo viver da música, mas é difícil. Não tenho nenhuma banda em que faça 10 concertos por mês. O meu trabalho é todas as semanas aprender o repertório de artistas muito diferentes com quem vou tocar. A cena da música é muito complexa. Aliás, já parei de fazer música três vezes. 

Porquê?

Não conseguia, não estava a dar… A última vez que desisti até foi recente. Tinha ido estudar para a Universidade Lusíada, mas desisti porque era caro, tinha a renda para pagar e com o trabalho tinha pouco tempo para estudar. Como as coisas na minha vida não estavam muito fixes, em 2016 decidi largar tudo e fui trabalhar com uma banda para cruzeiros dos Estados Unidos. Fiz isso uns meses e resolvi alguns problemas, mas decidi não aceitar as propostas para continuar porque aquela vida não era para mim. Para quê ganhar bom dinheiro, se depois o gastas todo em remédios porque estás todo rebentado da cabeça?

E quando regressaste a Portugal, voltaste logo à música? 

Não, e até senti que alguma malta não me queria deixar entrar de novo no mercado. Este meio é muito difícil, é muito competitivo.

Verdade, embora no teu último vídeo estejas acompanhado de uma geração bem avessa a essa cultura da competição e do individualismo. 

Exatamente. Um deles é o Lula’s [Cachupa Psicadélica], meu amigo de infância e que reencontrei cá. Ele sempre falou em fazermos uma unidade e rejeitarmos essa competição. Nós estamos juntos: “Se estou neste barco, tu também podes estar neste barco, um dia vou eu para o teu.” Essa atitude é muito boa. “No dia que eu não puder ir ao mar, vais tu por mim.” E vice-versa. Ganhamos todos. A cena alimenta-se e andamos todos para a frente. Mas o mercado é muito complicado. Quando voltei decidi que só queria tocar com amigos, mesmo que fossem projetos mais pequenos. Chegaram-me a propor cachês muito bons, eu não tinha dinheiro na conta, mas recusei porque estou farto de alguns players desse game. Por causa disso tive que arranjar outros trabalhos e demorei cerca de 3 anos até voltar a tocar outra vez. Quando voltei foi com o Danilo [Lopes] e foi quando a gente fez o “Kriol” e também por “culpa” do Jon Luz. Chamou-me para ir ter com ele ao Tejo Bar, disse-me que eu era um talento desperdiçado e esteve três meses a insistir que devia voltar a tocar. Lá me convenceu a tocar aos sábados no B.Leza e decidi abrir de novo o coração. 

Segue-se então a tua estreia em nome próprio e logo acompanhado de um amigo e parceiro de longa data, o Milton Guli. De onde surgiu essa vontade de começares um projeto teu?

Eu já tinha essa vontade há muito tempo, mas na minha vida e experiência faço coisas muito distintas, e para fazer algo meu tinha de ter um conceito ou um princípio para começar. Então comprei um computador e instalei o Logic, embora eu nunca tenha sido um gajo dos programas e dos computadores. Mas comecei a mexer com o programa e o Alex, dos Terrakota, disse que eu tinha feitio para aquilo e que tinha de ter paciência e não desistir logo das ideias. Até porque eu tinha mesmo este sonho de fazer uma coisa minha. Então decidi que queria fazer uma cena dentro do reggae, que foi o que comecei a ouvir desde novo, e dentro do afro, que era algo que vinha dos meus muitos trabalhos nos últimos anos. Essa foi a ideia e o Milton acabou por ser o primeiro convidado pela nossa longa relação de amizade e trabalho. 

E em relação à ideia da música? Compuseste primeiro a música e ele escreveu a letra depois? 

Fiz a base musical no Logic e mandei-lhe. Gravei guitarras, teclados, baixos, e o Mike [Simões] fez as misturas. As baterias foram gravadas mais tarde com o Ras M. Em relação à letra, a ideia foi do Milton.  Já trabalhamos há muito tempo, é um gajo super criativo e pedi-lhe apenas que fizesse a cena dele. Fiquei bué contente quando ele enviou e lançámos o tema.

Seguiu-se “Meio Tuston Li Ka Tem Troku”, com a participação de Prétu. Como é que o conheceste o xullaji? São os dois da margem sul, embora ele da Arrentela. 

Exato, somos os dois daquela margem, mas conhecemo-nos por causa da música. Eu e xullaji temos montes de amigos em comum e conhecemo-nos num projeto, talvez em 2012, ligado à música africana, também com um lado jazz e que tinha poesia. Era muita malta de países diferentes. O xullaji curtiu-me logo, disse que conhecia e era fã da minha cena, mas eu disse-lhe que eu é que era super fã dele! [Risos]

E ele é mesmo da bass music… Conhece muito bem a a história dos graves.

Completamente. Ele é bué do baixo! Conhecemo-nos e ele disse que tinha de passar lá em casa um dia para gravar uns baixos para ele, mas perguntei logo se ia ser como aqueles que dizem que vão e nunca aparecem! [Risos] Entretanto acabei por tocar no projeto dele, ficámos brothers e demo-nos logo super bem. Como queria começar este projeto a solo com amigos, decidi logo dar-lhe um toque. Ainda não tinha ideias muito definidas, mas falei-lhe da ideia e a coisa foi-se maturando. A ideia inicial era fazer uma música que fosse ao funaná e ao reggae/dub.  E ele disse logo: “Perfeito mano, estou mesmo nessa vibe!”

Além dele, nessa música tens a bateria do Cau Paris e o David Pessoa no ferrinho. O resto foste tu a gravar? 

A base sim. A bateria e o ferrinho gravei depois. Na maquete inicial que mandei para xullaji já tinha a cena do funaná, embora pareça outra música porque era um reggae bem pesadão. Até começava num reggae e só depois é que ia ao funaná. Mas um dia o Danilo disse-me que aquilo “não era bem funaná”, que existia um funaná lento, mas não era bem aquilo [risos]. Mal ele bazou recomecei a música e decidi começar pelo funaná e só depois é que vem o reggae. Passados uns tempos mandei de novo ao xullaji e houve um dia em que ele disse que já tinha uma ideia. Fui ter com ele à Arrentela, montámos a sessão e ele mostrou-me a ideia da letra. Adorei logo! O Xula é muito bom! Escreve de uma forma que põe o people a pensar na vida…

Totalmente. Curtiste logo a metáfora do tubarão e dos chicharros?

Sim! E fomos logo gravar. Além disso, ele é também professor na área da produção musical e eu estava motivado na cena de gravar. Então ele disse que o ia gravar naquela sessão. Foi excelente. Gravei-lhe as vozes, mandei logo para o Mike e fui para casa construir a sessão. 

Também temos de falar do vídeo realizado pelo Machine com aquele poderoso sound system e onde a ti e ao xullaji se juntam a Lady G Brown, o Scúru Fitchádu, o David Pessoa, o Cau Paris, Cachupa Psicadélica, Henrique Silva, Hudson Jah Son, o River Ramos e muitos outros companheiros. Que mensagem quiseste passar com o vídeo? 

O vídeo é tudo malta amiga e queria ter muita gente diferente, a nossa gente, que pode não ter participado diretamente na música, mas que estão sempre presentes a dar apoio e força. E foi muito difícil reunir toda a gente! [risos]. A ideia era mesmo essa: a gente tem que se ajudar uns aos outros! Essa é a única forma de te defenderes da máfia e dos abutres. A indústria da música é hardcore, mas se a gente se unir somos mais fortes! Se um deles precisa de uma coisa minha, eu estou. Quando eu preciso, eles também estão. Com essa atitude, os nossos projetos andam todos para a frente porque estamos todos juntos. E depois, claro, a letra da música que o xullaji escreveu também fala dessa união.

Onde foi gravado o vídeo?

Foi gravado no Barreiro, no Espaço Ras Damula, um espaço dinamizado pelo Ras Toy, um DJ pioneiro do reggae em Portugal. Tinha ido lá a uma festa de aniversário e percebi que tinha de ser ali. A malta toda a conviver, numa casa rastafarai virada para o mar… Imaginei logo o clipe, com muita gente, até porque a música fala disso mesmo. Mas foi difícil porque tinha de juntar aquela malta toda e quando finalmente conseguimos, no primeiro dia de filmagens com o xullaji, estava uma chuva torrencial e o pessoal do sound system também achava que ia ser difícil montar… Mas a Mariana [Campo] e o Machine não me deixaram desistir e deram-me essa segurança: “Esse vídeo vai ser feito hoje!” E foi mesmo. 

Na sequência destes dois primeiros singles, o teu plano é fazer um EP ou um álbum? 

Sim. Não sei ainda se um EP, se um disco. Já tenho mais músicas na calha. O facto de estar a tocar com muitos projetos faz com que por vezes tenha alguma dificuldade de organização, mas está tudo em processo. 

Voltando um pouco ao teu percurso, nos últimos anos assistimos à afirmação em Portugal de muitos músicos negros, imigrantes e afrodescendentes. Mas nem sempre foi assim. Se pensarmos em nomes como General D, com quem também tocaste, e na forma como foi recebida a sua reivindicação da africanidade, ou em casos como o Bonga, ou até mesmo da Cesária Évora, que só depois de alcançarem sucesso fora de Portugal é que foram realmente reconhecidos cá, vemos que alguma coisa mudou.

Sim, sem dúvida. Hoje a situação está muito diferente em relação aos anos 90.

Mas ao mesmo tempo, como o xullaji tantas vezes alerta, a afirmação da música negra em Portugal foi paralela também a um movimento da indústria que muitas vezes se aproveita dessas vozes e sonoridades para lucrar, despolitizando e mercantilizando estas próprias sonoridades e a sua história. Como olhas para esse processo? Que balanço fazes destes últimos 25 anos?

A situação está melhor, sem dúvida, mas acho que o xullaji tem razão. A indústria musical é complicada e tenta tirar proveito dos músicos de toda a maneira possível, porque sabem que o músico quer trabalhar. Se ele trabalhasse numa caixa de supermercado, ou numa loja qualquer, e se tivesses horas extra, essas horas extra seriam pagas. Mas na música dizem-te assim: “Ou fazes isto assim ou não fazes, agora escolhe.” Põem-te na mão porque sabem que a malta tem de comprar azeite e cebola. Ninguém fala dos problemas da indústria, toda a gente sabe de tudo, mas ninguém sabe de nada, quase ninguém mete o dedo na ferida. É verdade que no final dos anos 90 era muito mais difícil e houve poucos projetos africanos que conseguiram furar neste meio. Havia obviamente os casos do Paulino Vieira ou do Bana, que nos anos 70 e 80 sempre representaram a música africana com dignidade. Mas acho que na altura era tudo mais fechado. A sociedade portuguesa era muito mais fechada. 

Sentes que a sociedade portuguesa se abriu a outras linguagens, vozes e discursos?

Acho que sim. Para já houve muitas crianças que já cresceram a brincar com africanos e com pessoas de muitas outras culturas… Nas novas gerações é natural essa mistura. Os adultos é que têm esses preconceitos, as crianças não têm essas paranoias e brincam com os amigos porque gostam dos amigos! Eu próprio, quando vim de Cabo Verde, lembro-me de estar com os meus amigos portugueses e eles dizerem que era o primeiro africano que tinham como amigo. Até houve uns comentários meio estranhos, do género: “És um preto, mas até és um gajo fixe!” Eu achava estranho esse discurso, mas aquilo era ignorância. Eles repetiam aquilo que tinham ouvido. Mas nesse processo eles foram mudando também. Um dos meus amigos que fez um comentário desses hoje em dia é um irmão que me defende, é um gajo que me arranjou casa quando estava sem nada, é mesmo grande irmão. O que eu senti foi que ele também estava a quebrar preconceitos e a mudar a própria ideia que tinha do que era o “africano”. Mas a verdade é que também passei mal com pessoas com a mesma cor de pele, país ou bandeira que eu. Supostamente tratar-me-iam bem, mas nem sempre isso aconteceu. Não podemos generalizar e julgar as coisas assim. Em todo o caso, acho que tem havido mudanças positivas e hoje o acesso à informação está muito mais disponível. A minha luta neste momento é fazer as coisas acontecerem, lutar pelos meus objetivos, ajudar a malta, ser uma pessoa melhor e não ficar simplesmente a dar voltas na roda.


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