Nem sempre os astros tão inteiramente alinhados e as atenções todas viradas para o mesmo lado, mas o mais importante será sempre aquela insaciável vontade de apresentar coisas novas ou de voltar a sublinhar algo que não se deve mesmo deixar passar ao lado perante os nossos leitores. É por isso que, já quase à entrada do mês de Julho, recuamos um pouco no calendário para repescar 4 faixas que nos marcaram no decorrer de Maio — acompanhem-nos nesta breve, mas sempre entusiasmante viagem.
[zé menos & Pedro, o Mau] “canção de embalar”
De um frágil embalo se trata, visceralmente lúcido e inesperadamente reconfortante. Talvez esta “canção de embalar” já não busque a mesma estrela d’alva que o Zeca procurava em ’65, embora continue fixada na esperança das nuvens que talvez não voltem e em sonhos de framboesas que nos desabituem das coisas do mundo que não fazem sentido. Esta é uma das peças mais sensíveis de quatro partos, EP que conjuga as íntimas, frágeis e acolhedoras texturas sonoras de Pedro, o Mau, com a lúcida inquietude de zé menos, num mundo narrativo que é tanto deles, como nosso. Vemo-lo desde a “arena”, tema de apresentação do projeto, onde já nos falavam dos cravos secos regados com o nosso suor. E por aqui continuamos, agora neste embalo cantado sobre as misérias presentes, mas também sobre a promessa serena do porvir. Afinal, “amanhã se tiveres sorte/ o vento já não te sopra/ vais ver que as nuvens se foram/ e o sol tímido olha/ para o teu sorriso forte”. Não é certo que o peso do corpo se apodere e o sono nos leve “onde a pressa não tem ar”. Tampouco que a chuva que imitida quem dorme por baixo das casas, deixe também de atormentar quem só fica satisfeito “quando o outro for livre”. Mas como não tentar, uma outra e outra vez, esse sono quase acordado, intranquilo e revigorado pelas imagens do anseio que os gatos têm do carinho e tempo com que teimamos em mimá-los? Como não tentar adormecer com consciência do tempo que vivemos sempre que não nos matámos e da possibilidade de nos liberarmos dos grilhões que nos agarram? Precisamos, como Josézinho, de algum tempo para descansar, até porque, e voltando ao Zeca, “quando os adultos dormem e as luzes se apagam nas janelas os meninos levantam-se e vão cumprimentar as estrelas”.
— João Mineiro
[Vince Staples] “Étouffée”
Ao sexto álbum de originais, Vince Staples mostra-se semelhante ao que sempre foi, e desengane-se quem pensa que isto se traduz em monotonia. Dark Times é o último projecto pela Def Jam do rapper de Long Beach e um álbum que constrói sobre o que o antecedeu. Longe vão os tempos de uma entrega exasperada e de disparo rápido, ouvimo-lo mais ponderado, pacato e recatado. Apesar da sua mensagem ser constante, transparece a maturidade de um artista que há mais de uma década que vem trilhando um caminho singular no hip hop norte-americano. E “Étouffée” é uma acertada reflexão sobre essa caminhada.
O tema tem um instrumental que mistura electrónica com barras de uma maneira que só Staples consegue, com graves profusos e presentes que intercalam com uma melodia melancólica e uma batida dançável que rivaliza condignamente as palavras do artista. Ouvimo-lo desabafar sobre aqueles que partiram, sobre a realidade traumática que experienciou, rodeado por fãs presos no passado e facínoras para quem o lucro é sempre o que fala mais alto. O refrão é confessional e caloroso, gritado debaixo de uma almofada, sentimentos de alienação afastados por uma imbatível confiança em si mesmo. Há um pessimismo que permeia este tema, a vida nem sempre corre bem, mas é importante não nos sentirmos sufocados e trabalhar para seguir em frente. Staples é sempre honesto consigo mesmo e com aqueles que o ouvem. E é sobre essa máxima que se rege a sua música
— Miguel Santos
[BR!SA] “AGUENTA”
No último par de anos, BR!SA tem provocado um burburinho no underground do rap português que agora se concretiza mais definitivamente com o lançamento do seu primeiro EP, É FDD. Neste trabalho de recorte clássico e registo cru, uma das melhores faixas é “Aguenta”, tema envolvente onde Marta Cardoso se assume como uma “dama que esquenta”, reivindicando o poder e o valor da sua voz feminina num panorama masculinizado. Ainda são demasiado raros os lançamentos de rappers femininas em Portugal, mas BR!SA veio atirar uma pequena pedra para esse charco. Aguentem.
— Ricardo Farinha
[Issy Wood] “Gravity”
Há uma nova vaga de mulheres a invadir o espectro da cena indie rock com propostas musicais bem fora-da-caixa, capazes de abranger um amplo leque de influências, que vão desde a estética beatmaking do hip hop à sublimação de guitarras shoegaze, e de se edificarem seguindo intrincadas linhas de arranjos pop — suficientemente limados para escorregarem facilmente por qualquer ouvido adentro, mas experimentais o quanto basta para nos deixar com a ideia de que estamos a escutar algo realmente novo e não uma replica de algo que ficou perdido no tempo.
Aos nomes que já vínhamos a acompanhar com mais afinco dentro desta zona específica do espectro sonoro — com Saya Gray, Ouri, Helena Deland, Nilüfer Yanya, ML Buch ou Grace Ives à cabeça —, juntou-se mais recentemente o de Issy Wood, polímata que, por acaso, até tem um currículo mais cimentado na área das artes plásticas. Não são precisos muitos minutos a escavar por entre a sua discografia nas plataformas digitais para percebemos que, apesar de mais discreta, o seu histórico musical é um autêntico baú de boas surpresas.
Seja qual for o meio que usa para expressar a sua criatividade, esta norte-americana radicada na capital britânica é detentora de uma sensibilidade visual e auditiva impar. Para quem chegou tarde à festa e não segue as suas pegadas desde o final da década passada, encontra no catálogo de Issy Wood uma catrefada de projectos nos quais vale a pena mergulhar profundamente durante largas horas. E a altura para apanhar o barco não podia ser melhor, já que a artista tem estado a apostar em novos singles e pode muito bem querer apontar para a edição de mais um disco, ela que já coleccionou um par de lançamentos pela Zelig Music, a etiqueta fonográfica dirigida pelo super-produtor Mark Ronson. “Gravity” é a sua mais recente malha e sucede a “Orange Wine” e “Back Burner”, em mais uma amostra da grande inventividade que lhe permite criar faixas em série sem repetir fórmulas e mantendo uma linha conceptual coerente.
— Gonçalo Oliveira