Estamos de braços abertos para dançar ao som de tudo aquilo que Julho nos está a oferecer, mas fazemos uma pausa no mês para olhar pelo retrovisor e recuperar uma mão-cheia de malhas que nos entusiasmaram — e de que maneira — ao longo de Junho, com direito a comentários por parte da equipa do Rimas e Batidas. O hip hop liderou a demanda da turma no período de transição entre a Primavera e o Verão, mas o jazz também disse “presente” e intrometeu-se por entre esta nova edição da playlist mensal da nossa publicação. Denzel Curry (com That Mexican OT), Saint Levant, Hiatus Kaiyote, Il-Brutto (com Amaral e El Loko) e JPEGMAFIA interpretam as cinco faixas aqui compiladas.
[Denzel Curry] “BLACK FLAG FREESTYLE” feat. That Mexican OT
O talento de Denzel Curry permitiu-lhe chegar a uma etapa na sua carreira em que consegue fazer amigos em qualquer estado e em qualquer beat. O floridiano batizou então o verão num estado ainda mais quente, apesar de menos húmido, dirigindo-se ao Texas para cuspir umas rimas com That Mexican OT, o campeão mundial de enrolar R’s. “BLACK FLAG FREESTYLE” é muito mais que uma amostra do poder contido em dois liricistas que sabem trabalhar os seus significados de uma ponta à outra, os seus flows do início ao fim, e as suas punchlines da manhã até à noite. Um dos pontos altos do mês transacto que se mantém relevante em julho pela sua inclusão no novíssimo King Of The Mischievous South Vol. 2.
— Leonardo Pereira
[Saint Levant] “Comme C’est Beau”
Nascido em Jerusalém, filho de uma franco-argelina e de um sérvio-palestino, Saint Levant tem sido uma estrela em ascensão que começa, aos poucos, a captar mais atenções fora do mundo árabe. É apenas justo que assim seja, até porque o seu aguardado álbum de estreia, DEIRA, editado no passado mês de Junho, veio confirmar um potencial que muitos já vinham a reconhecer. É um disco de profunda homenagem a Gaza, vítima de um terror há décadas mas cujo sofrimento só se tem intensificado nos últimos meses. DEIRA, bem como a respectiva capa, é alusivo a um hotel gerido pelo pai do músico na Palestina. Foi o sítio onde cresceu, a que chamava lar, e que acabou destruído nos bombardeamentos durante o ano passado. Enquanto símbolo do disco, representa o sonho de uma Palestina livre e a nostalgia sobre um tempo melhor. Musicalmente, as raízes e influências diversas de Saint Levant reflectem-se nos oito temas que compõem o álbum. As letras cruzam o árabe, o francês e o inglês como se se tratasse de apenas uma língua. Os sons pop contemporâneos mesclam-se com melodias e ritmos que vão da Palestina ao Norte de África, dando vida a um corpo musical coeso, de múltiplas nuances, com produção auspiciosa, que tem em “Comme C’est Beau” uma das mais belas e representativas canções. Há referências a Gaza e ao sofrimento do seu povo, mas também a uma história de (des)amor que se vai desenrolando e que também serve de temática para grande parte da obra de Saint Levant. Ainda não é um nome assim tão sonante no ocidente, mas desconfiamos que essa tendência só se irá inverter se o artista de 23 anos se mantiver nesta trajectória promissora, tão social como musicalmente relevante.
— Ricardo Farinha
[Hiatus Kaiyote] “Dimitri”
Com quase metade do álbum lançado como singles a antecipar a data de lançamento, transparece que os Hiatus Kaiyote estavam mortinhos para nos mostrar o que andaram a fazer desde Mood Valiant, lançado em 2021. Felizmente que ainda há muito por descobrir no enigmático Love Heart Cheat Code, e “Dimitri” é um exemplo da mestria da banda australiana composta pela vocalista e guitarrista Nai Palm, o baixista Paul Bender, o teclista Simon Mavin e o baterista Perrin Moss.
Neste tema do quarteto que nos mostra o seu future soul em grande destaque, uma parte da letra toma inspiração numa teoria sobre Dimitri Shostakovich, que especula que o compositor russo conseguia ouvir melodias atonais quando virava a cabeça devido a um pedaço de metal alojado no cérebro. Versos como “Tilt your head right” ou “He don’t remove the shrapnel” remetem-nos para essa história numa cálida atmosfera de neo-soul misturada com uma batida de hip hop que nos faz instantaneamente abanar a cabeça. As melodias acolhedoras de Palm falam também sobre procurar o impossível e questionam o nosso fatalismo, admitindo que por vezes somos o nosso pior inimigo. O ambiente que acompanha esta reflexão é perfeitamente adequado: ouvimos acordes dedilhados de guitarra e notas fortes de baixo com a bateria sempre invicta na sua batalha para manter o mesmo ritmo descontraído ao longo de toda a música.
Os Hiatus Kaiyote conseguem assim construir uma música que parece nunca sair da mesma onda, mas se ouvirmos com atenção conseguimos escutar um tema progressivamente mais ocupado construído à volta de um mantra espiritual, provando mais uma vez que são uma banda que não vive só dos seus singles.
— Miguel Santos
[Il-Brutto] “Brasas” feat. Amaral & El Loko
Long time no see! É a reação inicial ao ler os créditos das “Brasas” que Amaral Jones e El Loko cuspiram neste beat robusto e bem dirty de Il-Brutto, que soltou o seu FUSCO, o primeiro longa-duração do catálogo. Dois grandes rappers da nossa praça com pouca atividade nos últimos anos, especialmente El Loko, que marca definitivamente o seu regresso às sixteens neste tema — e desengane-se quem pensava que estava enferrujado. São 3 minutos de muito gangsta rap recheado de barras, lições do quotidiano de ambos os artistas, que aproveitaram a base ideal de Il-Brutto para o caso, numa mescla de grande quilate que merece uns quantos replays consecutivos. Esperemos que este seja o rastilho necessário para os MCs voltarem a dar mais uso à caneta, que parece tudo menos sem tinta.
Apesar das “Brasas” do último junho, a temperatura já tinha disparado nos últimos meses com toda a mestria de Il-Brutto, que agora atinge o pico com este FUSCO, álbum que brilha pela chuva de estrelas do rap lusófono que o jovem produtor agregou — e é, provavelmente, esse pequeno (grande) detalhe o maior selo de aprovação de qualidade da sua arte, que está boa e recomenda-se. Um disco essencial para hip hop heads.
— Carlos Almeida
[JPEGMAFIA] “don’t rely on other men”
Não dá para não ficar a bater mal da tola com as partidas que JPEGMAFIA nos prega sem aviso prévio. Parece Halloween quando Peggy arma barafundas sonoras como aquela que, no mês passado, deu ao mundo através deste “don’t rely on other men”, um pedaço de caos organizado que evoca a força do metal através de bombos e 808s que acusam crocância nos speakers com profundos graves. Estamos oficialmente numa nova temporada do homem que nos deu discos como Veteran (2018) ou All My Heroes Are Cornballs (2019), pois a chegada deste single deu desde logo a entender que vinha um “álbum a caminho” através das redes sociais do MC e produtor que, no ano passado, formou dupla com Danny Brown num par de projectos — SCARING THE HOES e respectivo DLC. Entretanto, até já temos mais uma faixa cá fora, “SIN MIEDO” — quem sabe não estará por esta rubrica aquando o balanço de Julho…
— Gonçalo Oliveira