Da electrónica ao jazz, o output musical ao longo de Abril foi imenso e basta uma breve passagem pelas entradas na rubrica Sexta-feira farta para ter uma ideia dos inúmeros discos lançados nesse mês. O nossos ouvidos fartaram-se de trabalhar, escutando cada uma dessas valiosas oferendas, e resumem agora esse período a uma lista de 7 faixas, colocando em evidência as trilhas que mais sobressaíram por entre a maré de edições.
[DJ Lynce] Live @ Bola de Cristal
E a Príncipe volta a acertar. Factos à parte, também é importante notar que, quando se dispara com DJ Lynce, estamos realmente a falar de um alvo com léguas de diâmetro, ou não fosse este um dos principais danificadores de soalho da cena clubbing do Porto (e além). Depois de muitos, e bons, anos a partir pistas, Lynce juntou maquinaria pesada ao seu arsenal e partiu para os lives com uma confiança tardia, mas inabalável. Se ainda não o testemunharam numa sala por esse mundo fora, estes 40 minutos encassetados pela Príncipe Discos são uma ótima forma de perceber do que estamos a falar: síncopes tresloucadas, não raramente quebradas, atravessadas por acidez elevada. Como qualquer viagem comandada por synths a navegar o espaço entre os sistemas acid, eletro e hardcore, assim que se atinge a hiper-velocidade de cruzeiro já não se pára mais; a paisagem muda, mas a alucinação é constante. Aguentem-se!
— André Forte
[André Murraças] “Regularmente Irregular”
É uma das peças fundamentais da estreia discográfica de André Murraças e um dos gestos que melhor sintetiza a sua jornada sonora. O saxofone, protagonista indiscutível desta narrativa, tece uma trama sonora que oscila entre a limpidez e a inquietação, a tranquilidade e o desejo de fuga. Mas esse protagonismo igualmente se deixa emaranhar harmoniosamente no tecido sonoro mais amplo, onde cada elemento contribui para um quebra-cabeças regularmente irregular. Trata-se, então, de uma muito prazerosa viagem a que não é alheia a bateria irrequieta de Luís Candeias, a tensão do contrabaixo de Francisco Brito e os solos inspirados de guitarra de João Carreiro. Todos juntos constituem uma experiência ao mesmo tempo intensa e atmosférica, que por momentos se abeira da vertigem, para logo regressar ao controlo. Uma jornada, em suma, onde talvez se possa levantar voo, mas onde as esquinas e encruzilhadas da vida também são oportunidades para se retomar a um caminho regular e de possibilidades irregularmente infinitas.
— João Mineiro
[Parris] “Passionfruit”
É um dos mais dotados produtores londrinos a criar alquimia na eletrónica britânica. Residente habitual da estação Rinse FM, DJ omnipresente na capital inglesa e fundador de editoras como a Tempa ou Keysound, a alma nata de divulgador é uma qualidade que se revela em cada assinatura sua. Enquanto devoto de inovação, Parris mergulha no filão histórico de coordenadas em redor da house, drum & bass e do UK Funky para daí renovar a genética e encontrar novas morfologias.
Com uma mão cheia de vitaminadas edições e várias colaborações, Passionfruit é o EP que traz quatro novos temas — tão essenciais quanto necessários. Sonhos líquidos cujo tema-título nos leva a um carrossel de boa onda. Escutamos a melodia da kalimba entre beats sedutores e aqueles primeiros raios de sol matinais que ditam o arranque de mais um dia. A música de Parris tem esse poder de envolver para nos devolver ao mundo sem peso. Sempre certeiro na afinação emocional que imprime, faz parecer esta autêntica destilação de sentidos num exercício simples e natural. Talvez seja assim mesmo que reconhecemos os verdadeiros.
— Nuno Afonso
[St. Vincent] “Broken Man”
Ao longo da sua carreira, St. Vincent tem-se mostrado como uma das grandes artistas da música alternativa norte-americana, provando com álbum atrás de álbum que está um passo à frente da competição. Em All Born Screaming, o seu mais recente projecto, Anne Clark volta a fazê-lo, com grande destaque para outra das suas qualidades: os seus sublimes dotes na guitarra. E em “Broken Man”, as vibrações das seis cordas relembram-nos que Clark não esquece uma boa malha.
A guitarra surge entrosada entre uma batida dançável e um baixo que flutua por cima dos restantes instrumentos. Clark alterna entre a sedução e a angústia, encarnando um magoado engatatão com muito jeito para riffs de cortar a respiração. Com “Broken Man”, St. Vincent cria um tema deliciosamente ensurdecedor que traz à mente saltos suados e ruidosos, sem discriminar entre pista de dança ou chão de poeira.
— Miguel Santos
[Mei Rose] “Cravo Na Voz”
Abril, o mês em que celebrámos os 50 anos de Liberdade em Portugal, trouxe-nos uma canção alusiva que nos apresentou à promissora Mei Rose. Com uma voz madura e repleta de nuances, uma produção auspiciosa e completa que vai beber à tradição nacional e a cruza com linguagens contemporâneas, tanto soa à banda sonora de um filme de James Bond como evoca o melhor da música pop interventiva feita por cá. Um nome a manter no radar.
— Ricardo Farinha
[Kendrick Lamar] “euphoria”
Bom… Chegados a este ponto, por onde começar? Estávamos, aliás, longe de prever na edição passada — em que “Like That”, tema incendiário que juntou Kendrick Lamar a Future e Metro Boomin, justificou por si só a capa da #ReBPlaylist de Março — que a coisa ia escalar de tal forma. Feitas as contas ao rescaldo (até ver, encerrado…), à provocação de K.Dot dirigida a Drake e J. Cole (designadamente em contraditório à ideia de “big three” expressa em “First Person Shooter”) somaram-se em argumentos de parte a parte um “7 Minute Drill” por J. Cole — entretanto apagado, e com um embaraçado pedido de desculpas logo a seguir —, seguido de ataques directos em “Push Ups” e “Taylor Made Freestyle” por Drake, com direito a resposta por Kendrick Lamar em “euphoria”, que mereceu novo contra-ataque do astro canadiano em “Family Matters”, o que motivou Kendrick a subir a parada com “6:16 in LA”, “Meet The Grahams” e “Not Like Us”, novamente ripostados por Drizzy com “The Heart Part 6”. Grosso modo, e fora umas quantas intervenções alheias — desde Rick Ross a Kanye West —, é isto que temos.
Beef dos tempos modernos, em que numa questão de dias estas faixas ganham uma dimensão na ordem dos milhões de ouvintes, furam as tabelas de vendas em menos de nada e vêem-se ainda mais reforçadas graças aos infindáveis glosadores que se multiplicam em segundas interpretações, significados subentendidos e revelações inesperadas (basta ver-se a panóplia de sentidos desvelados no simbólico número “6:16” para se perceber a profundidade da trama dramática). E a par disso, quem, afinal de contas, ganhou? Porque, para todos os efeitos, beef é condimento essencial numa cultura ultra-competitiva como o hip hop, e não será preciso recuar ao confronto fatal entre Notorious B.I.G. e Tupac Shakur para confirmar essa ideia. Mas é aqui que a coisa fica ambígua, desde logo porque nada é preto no branco, ainda para mais quando estão em conflito dois rappers, mas também duas celebridades, duas figuras altamente públicas, dois (verdadeiros) influencers de massas, dois homens, dois pais. E aí discute-se até que ponto não se terá ido longe de mais, quando o bom nome das famílias é arrastado para um exercício inflamado de egotrip, sabendo que, à partida, não há grandes regras no que diz respeito a um duelo destes no contexto do rap. Além de que seriam contas de um outro rosário se nos debruçássemos sobre perspectivas paralelas como a de Tayro Bero, escrita no The Guardian, que expõe os sinais mais flagrantes da misoginia por detrás desta luta de galos. Ou terá sido tudo isto uma brilhante e impiedosa estratégica de marketing conjunta?
Portanto, em que é que ficamos? É beef mal passado ou bem pensado? Ganhou Drake, enquanto promotor inigualável da sua própria marca, ou Kendrick Lamar, como um dos melhores da história do hip hop de caneta em riste a esgrimir versos? Ganhou a audiência pelo espectáculo, apesar de tudo, impressionante ou somos todos cúmplices num circo de feras? Contabilizam-se os lucros ganhos ou os danos adjacentes? Ficam mais perguntas que respostas porque, aqui, o trigo é inseparável do joio e, tal como os dois homens do momento, somos feitos de contradições. Isso não nos iliba, mas também não nos define. E algures no meio há-de haver uma posição em que se admira tudo o que daqui resultou sem atribuir medalhas aos intervenientes. A título pessoal, confessamos, ainda não é aí que estamos. Porque, apesar de tudo, é mais forte o peso do queixo caído perante os golpes de Mr. Morale. Venceu-nos o fraquinho pelo rap…
— Paulo Pena
[Niko B] “it’s not litter if you bin it”
A postura é a de um MC de drill, mas o instrumental faz-nos viajar até ao maravilhoso universo do novo jazz britânico. Não importa se Niko B é melhor ou pior do que os seus pares, interessa sim o fazer diferente e esta inusitada aposta numa sonoridade fora do comum soa a vitória para um jovem artista que está neste momento a preparar um álbum de estreia — dog eat dog food world sai no dia 24 de Maio. “it’s not litter if you bin it” é um dos três avanços desse projecto já revelados e é um misto de storytelling e braggadocious servido em jeito tresloucado, bem à imagem goofy do seu criador.
— Gonçalo Oliveira