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Fotografia: Garras / Outros Ângulos
Publicado a: 24/07/2024

Com um novo single-manifesto nas ruas.

Puçanga: “Podemos estar pendurados, mas também nos podemos desatar”

Fotografia: Garras / Outros Ângulos
Publicado a: 24/07/2024

Puçanga é nome de feitiço, poção e remédio caseiro, uma fusão de estilos e influências, dos cantos mais ancestrais e comprometidos às batidas e ruídos mais experimentais e imaginativos. É também o nome artístico de Vera Marques, cantora, produtora e artífice de frequências gravemente introspetivas, que ressoam no corpo como eletricidade, habitadas por palavras de anseios e desejos coletivos, onde a luta pela memória alimenta a busca por outros projetos de futuro. 

Nascida no Miratejo, Puçanga deu os primeiros passos artísticos entre a Margem Sul e Lisboa, embora as passagens por Paris e Buenos Aires tenham sido experiências impactantes, confrontando-a com a violência social que se esconde nas sombras da autoproclamada “cidade luz”, ou com as lutas pela memória das vítimas da ditadura na Argentina. Ao mesmo tempo, deixou-se contagiar por movimentos sociais que lhe haveriam de mudar a vida, descobrindo o papel que a arte, a música e a educação podem ter na imaginação do que Ailton Krenak chamou de futuro ancestral

Toda essa caminhada se expressa em Fazer da Trip Coração (2021) e Impish (2022), álbuns onde a voz emerge como potência, lembrando ecos de Björk, Elizabeth Fraser ou Beth Gibbons, e em que a palavra assume um sentido poeticamente implicado, na esteira de influências como José Afonso, José Mário Branco ou Violeta Parra. Dois gestos artísticos singulares que igualmente ressoam com a poesia urbana de vozes como as de Haloween ou Kae Tempest, com a reinscrição do folclore exercitada por pessoas como Rodrigo Cuevas ou Bruja del Texcoco, enredando-se ainda com o ruído, a eletricidade e as fervorosas batidas das periferias urbanas. Um vasto caldeirão de influências guiado por uma pulsão ética que unifica um trabalho artístico empenhado em processos de cura e agitação.

Terá nascido desse sentido ético a vontade de transformar o sentimento de apatia que as últimas eleições legislativas lhe provocaram, numa outra ideia de força, intervenção e ação. O resultado é “Maldigo”, o novo single-manifesto, acompanhado de um vídeo realizado pela Outros Ângulos, e onde a cantora amaldiçoa as “simbologias frias que todas as pátrias inventam”, os “brandos costumes de sabor amargo, línguas ásperas e corações amputados”, os “PIDEs mentais” e os “nossos fantasmas oficiais” — em suma, este fado que nos faz perguntar ao vento porque são tristes as notícias deste país. Surge, então, nesta sua profícua maldição um outro sentido de fé e de fúria, inscrito no reflexo das estrelas que vêm do passado, mas que ainda podemos ver. Até quando não sabemos, e talvez não interesse assim tanto, se soubermos percorrer os caminhos que elas ampliam. Quiçá nesse gesto encontremos novas direções, sentidos e possibilidade para um outro futuro que se quiser arder de novo, arderá.



Nasceste no Miratejo, fizeste vida pela Margem Sul. Que memórias tens da infância e juventude naquela zona e como é que essas vivências urbanas, culturais e junto ao rio te foram moldando?

Miratejo foi onde eu cresci e é um lugar super multicultural. Tem uma mistura grande entre um lado muito urbano e um outro lado mais próximo da natureza. Lembro-me de sempre ter vivido muito a rua porque havia uma ligação de vizinhança que era muito forte. É um espaço muito urbano, com prédios muito altos e sempre foi um sítio muito de rua. Mas ao mesmo tempo, havia todo um outro lado, na zona da Ponta do Mato, onde tens vestígios das indústrias que ali existiam e a vibe de um sapal selvagem, da praia, dos prados, dos flamingos… 

Nessa zona da desindustrialização, os edifícios abandonados eram sobretudo uma paisagem ou já eram espaços de apropriação coletiva e com outros usos?

Eram e continuam a ser. Na zona da Ponta do Mato, nessa zona dos edifícios abandonados, há festas, convívios, barbecues. 

Viveste sempre por ali?

Estive sempre por Miratejo, mas no Secundário fui estudar para Almada e também vivi muito a abertura das pessoas de Almada. Depois fui estudar em Lisboa, mais tarde para Paris, e depois estive dois anos na Argentina. Tirando isso, Miratejo é casinha mesmo, marcou-me muito nesta ideia de confluências de culturas que lá é algo muito forte. Hoje já não vivo lá. 

E como é que se dá o teu encontro com a música? Começaste a partir da guitarra, da voz? Foi algo mais individual ou algo mais coletivo? 

Sempre ouvi muitas coisas diferentes e a música acompanhou sempre as várias fases da minha vida. No Miratejo fui acompanhando um pouco o rap e o hip hop, mas a minha relação mais íntima com a música partiu de querer usar a voz para cantar e de começar a usar a guitarra para tocar e cantar na rua. 

A relação com a voz e com o canto acontece antes da relação com a guitarra?

Sim. Desde criança que essa era uma relação muito necessária para mim. Eu era uma cantadeira, só que sempre com muita vergonha. Tinha essa relação de vergonha que quase toda a gente tem com a voz. Por um lado, tinha muita necessidade de cantar, mas por outro tinha muita vergonha e sempre quis ultrapassar isso, mesmo que de forma inconsciente. A guitarra trouxe uma grande mudança porque já tinha ali uma companheira para me ajudar. 

Como é que aprendeste a tocar?

Ia ver a cifras das músicas que queria tocar e aprendia os acordes. Foi muito por esforço e obstinação. Pegar na guitarra no Miratejo, na Praça onde sempre nos encontrávamos sem hora marcada, foi algo importante, embora só começasse a usar a guitarra para cantar numa fase mais tardia, talvez com 16 anos. O facto de ir tocar na rua trouxe-me um bocadinho mais de força.

Viveste em Paris e em Buenos Aires e, pelo que percebi, foram paragens que tiveram bastante influencia na tua identidade pessoal, política e artística. No teu primeiro álbum tens até gravações das avós da Praça de Maio a gritar “Presente!”, evocando uma lista de pessoas desaparecidas na ditadura. Que influência tiveram essas viagens e esses confrontos na formação da tua identidade? 

França foi muito impactante por estar numa cidade supostamente aclamada no mundo inteiro, mas que é altamente xenófoba e elitista para quem lá vive. Foi impactante confrontar-me com esse sistema xenófobo em que havia sempre uma passivo-agressividade em relação às pessoas de todas as nacionalidades que não as francesas e a quem se exigia que se comportassem de acordo com a cultura normativa. Mas ao mesmo tempo também foi impactante a componente dos movimentos sociais que em França são muito grandes, ativos e dinâmicos. As manifestações não são simples desfiles, são momentos em que o pessoal prepara novas iniciativas. Eu vivi em Saint Ouen e Saint Denis, que não é bem Paris, é o Miratejo de Paris [risos]. Conheci coletivos feministas e transfeministas que mudaram a minha forma de ver o mundo. Estive envolvida também num grupo de teatro do oprimido, de ações na rua e ao longo do tempo o meu percurso foi passando sobretudo pelas criações artísticas e pela educação. 

E na Argentina?

Na Argentina, em Buenos Aires, tive contacto com um movimento social ainda mais massivo e muito mais potente, que também revolucionou a minha vida. As noções lá são diferentes, a política contamina tudo e nos bairros mais pobres, que são gigantes, tens as organizaciones de base que respondem às necessidades das pessoas, seja a construção de uma escola, a autogestão de microempresas, a melhoria do transporte de ambulâncias para chegar aos bairros. Foi muito impactante acompanhar esses processos e acabei por filmar algumas dessas dinâmicas. 

No teu trabalho artístico, tanto na música como em projetos com crianças e jovens, a ideia de memória parece ter muita importância, seja por referência a memórias públicas e coletivas, mas também em relação a memórias que queres fixar para o futuro, como na “Damas buéde lindas”, onde registas em música e para futuro a tua memória de uma dança em roda com amigas numa festa em que tocava o DJ Nervoso. Porque é que para ti a memória é um objeto de trabalho artístico tão necessário? 

Nós estamos a viver um limite de gerações entre as nossas avós, nós e os miúdos mais novos. Temos aqui uma oportunidade importante de manter e passar a informação sobre a nossa história. Quando menciono memória é no sentido de poder falar do que ainda está vivo. Já começas a ver os miúdos sem informação ou contexto em relação, por exemplo, ao que vivemos em Portugal durante a ditadura. Esta ideia de manter a memória é a possibilidade de traçar essa linha de ancestralidade, fazer justiça ao que aconteceu e passar esse testemunho. Estava aqui a lembrar-me, por exemplo, que a antiga sede da PIDE em Lisboa é um condomínio de elite e uma loja de eletrodomésticos de luxo. Eu acho que isso devia ser crime. Quando estou a falar de manter a memória é tanto numa lógica daquilo que nós não queremos que se esqueça, mas também sobre aquilo que queremos construir. Eu acho que se as pessoas tiverem informação sobre o que aconteceu no passado, têm mais consciência para que não aconteça de novo e para que se construa hoje uma alternativa.



Falemos então de “Maldigo”, o teu novo single, onde também trabalhas esta ideia de memória, desde logo evocando Abril e os registos orais da Helena Pato e do Álvaro Monteiro sobre a repressão da ditadura. Como é que nasceu esta música e o que significou para ti trabalhar sobre este tema no momento político e social em que vivemos? 

O instrumental desta música já andava aqui há algum tempo sempre que estava num lugar um bocado mais down. E depois das últimas eleições legislativas, durante algumas semanas não conseguia pensar muito bem no que estava a acontecer, sentia uma espécie de apatia. Acho que a música partiu desse sentimento.  

O instrumental existia antes do próprio texto? 

Sim. Aliás, a letra original era diferente e mudei o rumo da música. Comecei a pensar em fazer uma música “bipolar”, que no fundo é também como eu me sinto. Queria que tivesse um lado nostálgico, mais resignado e apático, que é algo que associo muito a uma certa identidade portuguesa, mas queria que, ao mesmo tempo, a música mudasse e fosse para um lado mais revolucionário, mais de mudança, mais de ação. Além disso também queria fazer algo inspirado na música da Violeta Parra…

É por isso que o nome dela aparece na dedicatória no fim do vídeo?

Sim. A música dela chama-se “Maldigo del alto cielo” e também é uma música de maldição, não só de crítica à situação do Chile, mas à guerra, às injustiças, e onde até amaldiçoa o céu, as estrelas, entrando em lugares poéticos que não são literais. Esta música tem também essa homenagem. Eu até decidi manter a expressão “Maldigo”, embora em português se diga mais “amaldiçoo”. Acho muito interessante que no espanhol eles “maldizem”: eles falam e é pelas palavras que amaldiçoam. Em Portugal o “amaldiçoar” passa pelo “soar”, pelo som, tem um lado quase fantasma, e acho que isso também pode ter a ver com a nossa identidade.

Uma das coisas que maldizes é esse “Abril que não deu frutos suficientes para deixar aos netos”. Neste ano tem havido centenas de iniciativas sobre os 50 anos do 25 de Abril, e até assistimos a uma certa patrimonialização despolitizada da revolução, como se fosse um objeto para observar à distância, e não estivesse relacionado com as pulsões do presente. O que significa para ti falar de Abril em 2024? Para lá das narrativas mais consensuais, que memórias, ideias, pessoas e gestos quiseste evocar e fazer para o presente?

Essa pergunta é muito difícil. Eu acho que coletivamente estamos num lugar em que já passámos várias vezes do inaceitável. A extrema-direita, a direita e o pensamento mais liberal estão muito unidos e têm muito esclarecida o que é para eles essa noção de “bem comum”. Pelo contrário, parece haver uma desunião muito forte no campo da esquerda, do progressismo e de quem identifica a desigualdade como problema e luta pela justiça social e pelos bens públicos. Inclusivamente, na música, eu uso uma gravação da Helena Pato em que fala da unidade da oposição no combate à ditadura. Eu acho que ter uma noção de “bem comum” partilhada não quer dizer que nós não consigamos, ao mesmo tempo, identificar as necessidades de cada grupo. Acho que é urgente, como se fez em França agora, embora em termos partidários, que haja essa união e estamos num lugar em que já nem sequer há possibilidade de não pensarmos nisso. 

Um outro ângulo que abordas na música é esta narrativa que Portugal conta sobre si próprio quanto a sermos um país de “brandos costumes”, a que aqui associas um “sabor amargo”, de “língua áspera” e “coração amputado”. Porque é que, cinquenta anos depois, ainda não conseguimos que muitos desses mitos da ditadura fossem colocados no caixote do lixo da história? 

Em muitos aspetos ainda não ultrapassámos esses mitos e Portugal está ainda na fase da negação. Olhando, por exemplo, para a forma como se fala da revolução de Abril, ainda não conseguimos reconhecer que o começo da revolução parte de África e dos movimentos de independência que fazem a pressão que deu depois origem ao golpe militar do 25 de Abril. Havia uma pequena parte dos militares que, por convicção, queria lutar pela independência das colónias, mas a maioria acredito que só não queria estar na guerra. O que é certo é que a narrativa central ainda não nasce ou não dá o foco a África como o início da revolução. Além disso, durante muito tempo desenvolveu-se em Portugal uma violência muito mais psicológica, através do medo, do não falar, do não lutar contra quem detém o poder, mas a ele se associar, ser o amigo do patrão, denunciar o comunista cá do sítio. Durante muitos anos tivemos essa psicologia e acho que ainda estamos a tentar dissolve-a. 

Na música tens expressões como “fala baixo, a parede tem ouvidos” e mencionas os “senhores da PIDE mentais”. Achas que ainda somos herdeiros de um país de medo e de bufos? Ainda temos medo de falar, de intervir, de confrontar?

Sim. É a psicologia de não te revoltares contra quem tem poder, mas associares-te sorrateiramente a ele. Eu acho que essa psicologia ainda existe e os movimentos de extrema-direita são catalisadores desse medo enraizado. Alguém que chega e aponta o dedo é visto muitas vezes como herói para esse tipo de mentalidade. 

Falando em mentalidades, outro tema que abordas na música tem que ver com estas ideias da “identidade, família, ranço e catequese”. Nos últimos anos, este foi um campo de muitas conquistas no sentido da igualdade, da diversidade e do reconhecimento, mas ao mesmo tempo continuamos a assistir a discursos ultraconservadores sobre os papéis de género, a identidade e a família. 

Cada vez mais sim. 

Como é que olhas para esta contradição de termos feito tantos avanços e ao mesmo tempo vermos também estes retrocessos?

As mudanças nunca são exponenciais, e mais uma vez, é importante essa transmissão da memória para que as coisas não regridam. As civilizações e as pessoas com comunidades mais ancestrais dão uma importância brutal a essa transmissão da memória e à tradição oral. Tens o xamã, o griot, o contador de história, as pessoas que passam a informação. Na Europa temos uma crise brutal em relação a isso. Vivemos a nossa vida com cada vez mais cortes nas nossas relações de vizinhança, de comunidade, de antepassados.

Estamos mais isolados individualmente? 

Claro. E isso é uma construção de um tipo de mundo liberal que acredita que as pessoas podem construir as suas vidas sozinhas, e não podem. Precisamos rapidamente de reverter essa ideia. Eu sinto que me tenho interessado mais por questões ligadas à espiritualidade e a religiões não ocidentais no sentido em que muitas dessas práticas são feitas em coletivo e estão ligadas a uma vivência que não passa só pelo trabalho, pelo caminho escola-casa…

Pela produção. 

Pela produção, exato. Nós estamos a perder aquilo que nos conecta. Acho que há uma crise muito forte em relação a isso, à transmissão de tradições ancestrais, à conexão com o meio ambiente, com as pessoas que são tuas vizinhas, com as comunidades.  

É isso que também te faz relacionar com o folclore? Durante muito tempo associava-se o folclore ao Estado Novo e à forma como o regime se tentou apropriar dessas expressões culturais. Mas há uma existência cultural que está para lá desse período histórico e com o qual também te relacionas musicalmente?

Sim e tem muito a ver com esse interesse pela memória e pela conexão. Eu cresci um pouco com essa ideia, mesmo que inconsciente, da ligação entre o folclore e o fascismo. Mas o folclore, que no fundo continua a acontecer, tem a sua origem ligada às condições de trabalho, às canções cantadas em comunidade, a hábitos que vêm do trabalho, mas também da convivência com o teu vizinho, com a tua comunidade. Isso interessa-me cada vez mais. 

O lançamento desta música inclui um vídeo realizado pela Outros Ângulos do Garras. Como é que pensaram a tradução em imagens do imaginário que a música convoca? Como foi o processo de exploração desta bipolaridade, como lhe chamavas, entre um lado mais realista e pesado e um lado mais afirmativo e esperançoso? 

Foi muito bom trabalhar com o Garras e houve muita troca de ideias. Eu já tinha a ideia de estar pendurada, numa referência à cara de tarô “Pendurado”. Essa carta está muito ligada à ideia de que tu estás numa posição porque te colocas nessa posição, mas tens a possibilidade de sair dela. E também traz esta ideia de que podes ver as coisas de uma perspetiva diferente. Acho que essa imagem fazia muito sentido para pensar este sentimento da psicologia resignada e a possibilidade de podermos fazer alguma coisa em relação a isso. Podemos estar pendurados, mas também nos podemos desatar. 

Pensando nos cenários do vídeo, tens um campo quente e mais árido no início, uma estação de comboios que não se percebe se está ou não desativada, o rio e uma quinta agroecológica. O que representam para ti esses lugares na narrativa da música? 

O vídeo foi muito filmado no Alentejo pela importância que esta região teve tanto no início da revolução como no PREC. Então começámos com esse cenário de um ambiente mais deserto, quente e difícil. Depois vem essa imagem do “Pendurado”, na estação de comboios, e logo a seguir a filmagem na Ponta do Mato, no Miratejo. Queríamos muito filmar lá e nesse plano eu estou a usar uma t-shirt que a minha grande amiga Andrea da Argentina me ofereceu e à qual acrescentei a frase que a Helena Pato diz na gravação: “Coragem amiga”. Nesse cenário, a atitude da música já é completamente diferente. 

Mesmo do ponto de vista vocal, passas do canto para te expressares num registo muito mais próximo do rap.  

[Risos] Sim. 

MC Puçanga? [Risos] 

MC Puçanga! [Risos] O rap é muito interessante porque é aquela hora em que queres falar, queres dizer coisas, e tens ali aquele tempo. É aquele o momento do claim. O cantar tem um lado que eu amo, em que estou mais confortável e que acho fascinante, mas que é muito mais encantatório. O rap tem aquela coisa de em pouco tempo dizeres o que tu pensas e a voz também traz essa intenção. No final, o vídeo acaba na quinta, com o plano da tocha no ar. Pensámos muito onde devíamos filmar aquela cena e acabámos por filmá-la na Quinta da Maravilha, um lindo projeto de agroecologia ao qual eu e o Garras estamos ligados, para chegar a esta ideia de soberania alimentar, a esta ideia de que a revolução passa por criar independência e a independência mais básica está ligada aos bens mais básicos, que são também os bens comuns. Podia ter colocado a tocha num cenário de uma cidade, mas gostei da ideia de que a força está na independência conjunta e nas coisas mais essenciais. 

Nas coisas realmente vitais. 

Sim. Se a tua força não está em ti e nos teus círculos, então vai estar dependente de outra pessoa, de outro grupo. É aí que começa a exploração. 

Em relação à estação de comboios, vi nesse cenário um lugar potencial de fuga e partida, mas o comboio acaba por nunca chegar e começas a andar para um destino indefinido. O que quiseres representar com aquela imagem?

É esse lugar de um comboio que não vem. Tu estás à espera, mas ele não vem. Esse plano está ligado ao início da música: “É tudo cíclico, tudo em vão / Lenga lenga, São Sebastião”. É esta ideia de estares sempre à espera de algo, de um salvador, de achares sempre que a resposta está fora, que vem sempre de fora. Eu acho que essa psicologia ainda existe em Portugal.

Depois deste lançamento, que planos tens para o futuro? Olhando para o teu trabalho, percebemos que tens interesse por universos estéticos distintos, alguns mais ligados à palavra e à poesia, outros mais ligados ao som e ao ruído; alguns que remetem mais para o imaginário e outros que assumem uma dimensão mais poética ou narrativa. O que podemos esperar nos próximos tempos? 

Eu tenho um EP de músicas tradicionais que gostava de lançar em breve e gostava de começar a criar volumes. Pensei em chamar-lhes Pueblerías. Acho que é algo que vou estar a fazer a partir de recolhas não só portuguesas, mas de outros contextos também. Tenho começado a investigar o universo das english rebel songs e em Itália ou na América Latina também há referências incríveis. 

Estás mais virada para esse caminho do que para um universo mais próximo das distopias tecnológicas, do ruído e da eletricidade na era dos algoritmos, que de alguma forma marcou o teu último single

Eu tenho muitos interesses e sou muito dispersa nas coisas que quero fazer. Precisava de ter várias vidas [risos]. Mas vou seguindo. Tenho essa ideia em torno das músicas tradicionais, mas também já estou a fazer o que vai ser um novo álbum, que quero que tenha também um formato próximo da performance, de um espetáculo. Será mais ligado à música experimental, a ruídos, a uma mistura com coisas mais polifónicas, a uma vibe meio fúnebre… Já está bastante desenvolvido, mas quero ainda envolver algumas pessoas e não é um projeto para já. Posso dizer-te que anda um bocado à volta da ideia de assaltar a história. 

Assaltar a história?

Sim [risos]. Mas é complexo para desenvolver agora. 

Vamos ficar atentos!


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