Chegado ao Porto, o icónico Don Letts deu por si num restaurante vietnamita. “Não estamos perto do mar?”, pergunta o DJ e realizador, sôfrego, a uma míngua distância de Campanhã. “Não há aqui marisco?” Em resposta, recebeu um arroz jasmim, legumes grelhados, brócolos e porco; em alternativa, poderia ter sido phở. Que se lixe o inglês; para já, a culinária é a língua franca do Porto Pop, legendado como Festival Internacional de Cultura Pop. A trupe de convidados vai-se engrossando — da janela panorâmica, vê-se chegar a crista de John Robb, o primeiro jornalista a entrevistar os Nirvana (sim) — e discutindo outros pratos: abismos geracionais no consumo de música, conversa de circunstância, aldeias lunares.
“Já não estou habituada a este nível de socialização”, segreda-nos Isilda Sanches, radialista da Antena 3. É verdade: as cordas vocais podem continuar calejadas como antes, mas 2020 rareou a tagarelice em grandes ajuntamentos. 2021 aliviou algum do peso, mas, no preciso fim de semana em que se reúnem escribas do Porto, Los Angeles, Jackson Heights, Londres, Pensilvânia, Paris-via-Irlanda, ou até da Pescadata, o mínimo ar puro insufla-se com o assombro da nova variante Ómicron. (É o que dá açambarcar vacinas por egoísmo: a maior ignorância possível a fazer o ricochete mais previsível de todos.) De volta à carga, é bom entender o quão bem toda esta gente ainda desprende a língua. É para isso que lhes pagamos.
Serão 17 horas – com o ligeiro atraso que acomoda uma visita à vizinha Tubitek – quando entramos no bem-apessoado Auditório CCOP (Círculo Católico de Operários do Porto). Paredes púrpuras e laranjas, pequenos consórcios de jornalistas estrangeiros a fazer a única coisa que sabem: tagarelar sobre música.
[Um fio de prumo chamado punk]
Ricardo Salazar, timoneiro do Porto Pop e fundador da editora Sister Ray, atira a primeira pedra. Enquanto a melomania de uns se transpôs para livros, a sua traduziu-se, em 2021, numa conferência, onde essa bibliografia saísse das prateleiras. “As bibliotecas deram-nos poder”, diz por empréstimo aos Manic Street Preachers e por dívida ao poder de uma história multi-pistas. Posta a palavra de abertura, Paulo Vinhas, da loja Matéria Prima, apresenta a terceira configuração de Musonautas, Visões & Avarias: começou por ser exposição (benzida até pelo Presidente da República) patente na Galeria Municipal do Porto, encadernou-se depois num livro plastificado, que rende agora uma comunicação oral no Porto Pop.
“Destruir fronteiras musicais numa cidade estratificada”, diz Vinhas, sempre foi a meta: provar que a polinização cruzada sempre vigorou no Norte, no mínimo desde os anos 60 — com as aprendizagens partilhadas entre compositores clássico-contemporâneos (Álvaro Salazar, Filipe Pires, Cândido Lima) e músicos populares. Diferentes artes rejubilavam na sua mistura, revistas temerárias como o Mundo da Canção ou a Memória do Elefante tentavam também destruir as barreiras da censura. O grito setentista dos Anarband, os 20 minutos de “Visões” dos GNR, as experiências dos Telectu — o Porto sempre se electrificou pelo espírito punk.
De punk se continuou a falar com John Robb, no seu smoking listrado, autor de dezenas de livros, sendo o mais recente a história oral Punk Rock (nota: activar prefixo “pós”.) A viagem por entre goth e glam, estilo e substância, é dinâmica e colorida. De forma quase antitética ao pano de fundo: uma Inglaterra coagulada, monocromática, sem futuro. O começo e o fim da apresentação coincidem. É quando o projector nos confronta com os Joy Division sobre a ponte Epping Walk, essa emblemática fotografia disparada em Manchester — perto de onde Robb mora — que permitiu a Curtis, Hook, Morris e Sumner terem a primeira consciência de quem eram enquanto colectivo.
Com a escrita sobre música, aspiramos a esse tipo de epifania documental. A larga parte das vezes, contribuímos apenas com o acto de o capturar com a destreza possível; não somos pés de microfone, mas o artista é o artista. Sucede o mesmo quando Richie Unterberger resume a cronologia dos Velvet Underground — de Nico a Warhol, álbum a álbum, da sensibilidade inesperada ao pioneirismo de Maureen Tucker (que mais tarde se filiaria no Tea Party, quão giro!). Certifica-nos desse postulado: as palavras muito raramente acrescentam novo valor àquele que é intrínseco, só o espelham.
[Em Nárnia com Bowie]
No segundo dia, descobrimos que a delonga tipicamente portuguesa não é regra no Porto Pop. Contudo, apesar de perdermos 10 minutos da apresentação de Darryl W. Bullock, refastelámo-nos na Porto Calling e na Discos do Baú. Vitória!
David Bowie Made Me Gay: 100 Years of LGBT Music dá o mote, ou a questão fundamental: se tantos visionários da música popular não cabiam na esquadria heteronormativa, porque é que a indústria apagou a sua sexualidade? A resposta intui-se facilmente. Mas, de facto, sempre esteve lá: desde o gritante Little Richard — ”que entrou e saiu do armário mais vezes do que uma criança à busca de Nárnia”, exclama Bullock durante a sua apresentação — até Pete Burns. De Arthur Conley, com a sua “Sweet Soul Music” a Variações e artistas não-binários, como Sam Smith. Do espaço seguro que as discotecas gay abriam para o punk, até à essência queer em canções dos Who (“I’m a Boy”) e dos Beatles (“Get Back”).
E eis que Don Letts finalmente entra em cena, a propósito da autobiografia There and Black Again, o que significa estar a propósito da sua vida de fio a pavio. Não é que recorde incrivelmente bem, mas “quando fazes boas cenas, haverá quem se lembre por ti” (já diziam os Capitão Fausto). Se o molde do momento — cortesia do nosso Rui Miguel Abreu, director do ReB — indicava um inócuo cenário de perguntas e respostas, a verdade é que Letts será Letts (“Sou tão velho quanto o rock’n’roll. Nasci em 1956!”).
Num primeiro momento, embalado no seu próprio ritmo, induz-se num sobressalto: o assento da cadeira rebaixa-o demasiado, fá-lo parecer “um sapo”. Rapidamente Abreu e Letts se tornam um par ação-reacção, em constante inversão de funções: se o entrevistador arrisca pô-lo no lugar de “lenda”, a resposta é uma barafunda: levanta-se para pôr tudo em pratos limpos. A presumida amizade com Bob Marley? “Eu tinha boa erva, foi isso que me permitiu entrar em casa dele.” A presumida posição insurgente, contra a polícia, que assume na capa de Black Market Clash, LP dos Clash (para quem realizou o documentário Westway to the World)? “É por isto que é preciso verificar e re-verificar a informação online. Essa foto sou eu a sair da frente!” O resto? “Leiam o livro!” Abreu esboça um sorriso provocador e Letts é tudo o que queríamos.
Quando o nome de Marley lhe sai da boca, olha para Vivien Goldman – que privou com Bob em situação de trabalho e amizade, tendo escrito um livro sobre o álbum Exodus – e pede-lhe para confirmar uma informação sobre “Punky Reggae Party”. Mal Goldman se prontifica para responder, Letts corta-a: “A tua apresentação é só a seguir, Vivien!” – o que parece rude, mas é, sem sombra de ironia, como tudo o que Letts faz, de genuíno humor e paixão.
Pouco depois, Lia Pereira do jornal Expresso sobe ao palco para apresentar a eterna punk Goldman – e é uma de aproximadamente três vezes em que a ouviremos falar. Com uma vida como a de Goldman, escritora de Revenge of the She-Punks: A Feminist Music History, é normal que se propicie um monólogo. Que se lixe a cockcracy (falocracia?), que se respeite o poder político de Beyoncé tanto quanto reverenciamos a erupção histórica das X-Ray Spex. “Eles” — homens — “queriam que as mulheres tivessem carreiras tão curtas como as suas saias!” Mas o que prevalece, sempre, é outro lema: “Alegria na revolução. Vitória na linha da frente.” Se Letts não quer o título de lenda, podemos outorgá-lo a Goldman?
[Historiografia em três quartos de hora]
Tanto quanto lendas, há sistemas e burocracia a funcionar — pelo menos, é o que diz Gareth Murphy, com os seus Cowboys and Indies: An Epic History of the Record Industry. As editoras são como clubes de futebol, ouviremos várias vezes; os artistas poderão repudiá-las em público, mas sabem que são elas quem move a economia musical. Se isto é verdade, porque é que o álbum EMOTION da artista Carly Rae Jepsen não foi catapultado para o mega-êxito mundial?
Fora de brincadeiras (e limpando as lágrimas), a postura de pontífice editorial – po–faced como aqui se diria no Porto Pop – deve soar melhor lida do que ouvida. Não sobressaem “record men” suficientes para que os deixemos de pensar enquanto instrumentos ao serviço da arte; por entre as crises cíclicas impostas pelo crash de 1929 e pelo Napster em 2000, nenhuma (grande) editora parece fazer nada que não seja abocanhar cada vez mais as receitas do seu roster — o que Murphy também denuncia. Mais produtivo é Martin Aston, que se debruça sobre a história da 4AD (A.R. Kane, Cocteau Twins…): um argumentário mais eficaz quanto ao papel da editora. Não apenas um selo, mas uma identidade que emergiu na curadoria e na sensibilidade do fundador Ivo Watts-Russell — que, tal como Letts rejeita o estatuto lendário, provavelmente faria pouco do arquétipo do “record man”: “Ele era o anti-record man. Não queria assinar bandas, não queria ir a concertos.”
O Porto Pop fecha com um dos cabeças-de-cartaz, o jornalista Simon Reynolds, no seu regresso a Portugal após a conferência do MIL – Lisbon International Music Network em 2019. Dessa vez, definiu os preceitos que devem pautar o jornalismo musical; agora, propôs-se fazer uma “história rápida e parcial da escrita sobre pop”. É um dos grandes pensadores da música enquanto facto social e cultural, o que lhe valerá sempre a permanência no plantel, mas a prosa serve-o melhor.
Tem a propriedade para falar do assunto, é claro. Atravessa os primórdios da escrita pop – insubstancial, quase cómica – e a pavimentação de um caminho mais sério, com revistas como a Melody Maker ou a British Metronome. Discute Ellen Willis, a primeira pessoa a escrever sobre rock na New Yorker. Recita o título completo de Awopbopaloobop Alopbamboom, onde Nik Cohn reivindicava a trivialidade do começo; leva-nos a Lesley Chow ou Kit Mackintosh, nomes ultra-contemporâneos, que entram nos campos do não-verbal. Cada coisa vale mais do que o conjunto, por culpa de um estilo pára-arranca que lembra uma corrida de estafetas em Educação Física: pobre testemunho que invariavelmente cai de uma mão para outra.
TL;DR: Bem-aventurados os que escrevem monólitos sobre cultura pop e aceitam comprimi-la em apresentações de 45 minutos. Não é que a modéstia, patente no pequeno grande CCOP e no curto programa, nos engane: o Porto Pop ainda tem muito mais cultura – presente, passada e futura – para desfolhar.
P.S.: Se virem o Don Letts na rua, convidem-no para uma mariscada. Mas não lhe chamem lenda!