O segundo dia (10 de Abril) do Portalegre JazzFest abriu com o solo de Carlos Bica no Museu da Tapeçaria. Sala cheia para um solo de contrabaixo que começa com arco e a pedir atenção. É uma espécie de vento. Pouco amigável e algo fria, a improvisação de Bica joga no tabuleiro da música erudita mais do que no jazz. Nada tranquilo, este solo mostra depois toda a versatilidade do instrumento. Bica sabe que o contrabaixo pode adoçar e arreliar, ele adora brindar-nos com tudo isso. Há barulhinhos dum arco virado do avesso e de um instrumento carregado de possibilidades. Parece um baixo elétrico num momento muito bicaniano. Quem está familiarizado com a sua discografia reconhecerá aqui e ali os seus tiques. Há a certa altura uma doçura lusitana, mas mesmo aí a papinha não vem toda feita. Carlos Bica é tecnicamente superlativo, mas destacamos o modo como ele nos leva por outros caminhos, mais sinuosos, embora nem por isso menos providos de espanto.
Depois de jantar dirigimo-nos ao CAEP (Centro de Artes e Espectáculos de Portalegre) para o concerto de Dorantes, um pianista de jazz flamenco. A sala apresentava-se bastante composta e a presença no público de vários membros da comunidade cigana mostra um modo inteligente de integrar. Dorantes apresentou o seu último álbum, Identidad. Ele, que não sabe ler música, tem uma enorme capacidade de expressar sentimentos. Virtuoso, com uma carreira de duas décadas, Dorantes é mais Chano Dominguez que Moisés Sánchez, ambos figuras incontornáveis do flamenco jazz ao piano. O concerto foi bonitinho embora pouco surpreendente. É tudo muito redondo. Certo que os “truques” de mexer nas cordas e martelos do piano impressionam, mais que não fosse porque remetem imediatamente para as guitarras e o cajón flamenco, mas não há sangue — e o flamenco pede sangue. Segue seguro e formoso, sem gritarias e sem pressa. Dorantes prefere ser sentimental e investir nas dores e arrelias. Foi até agora o concerto mais convencional deste festival.
Para o final da noite, pouco passando das onze, dirigimo-nos aos Claustros do Convento de Santa Clara para o quarteto Amoeba liderado pelo saxofone alto de Signe Emmeluth. Aqui a coisa pia mais fino, é tudo malta com um currículo impressionante. O pianista Christian Balvig integra os Efterklang, o guitarrista Karl Bjora faz parte de Megalodon e o baterista Ole Mafjell soma várias colaborações com grandes nomes da ECM — um dos melhores discos do ano passado é Synthbuljong dos Lotus, grupo onde figura o casal Emmeluth/Bjora. Este quarteto não pede licença, entra a matar e quem quiser que acompanhe. É free jazz europeu. Rasgadinho. Despreconceituado. Livre. Música forte para espíritos inquietos. Mafjell é um baterista que não se mantém e não se fica. Balvig tem um piano que parece calmo mas que está tão lá, no momento. Bjora, discreto, é âncora que segura a coisa. Sem aquela guitarra, o som ficaria mais fraco. Signe Emmeluth lidera estes meninos com um sax alto, ora imponente, ora ambíguo. Eles tocam juntos há muito tempo e conhecem-se bem. É giro ouvir como essa intimidade lhes dá mais liberdade para agir, para serem incisivos e para sairem da caixa. As composições de Emmeluth são frescas, a sonoridade remete para um caos controlado. Lembra um céu carregado de nuvens negras, que tanto pode dar tempestade como um ocasional raio de sol, mas que a ninguém deixa indiferente. Naqueles claustros pequenos, na primeira fila, é tudo muito in your face! Foi o concerto favorito deste festival até ao momento.