Drama haverá sempre. Do princípio ao fim, não fosse afinal Plutonio o grande responsável do seu improvável sucesso. Já os dilemas, esses, acabam por se resolver. E a queda do pano no arranque desta história não poderia ser mais reveladora de todo esse percurso que fez de João Ricardo Azevedo Colaço, “Dudu” para os amigos e família, o artista e homem que é hoje. O pano cai, mas há uma ponta que teima em ficar presa ao tecto, impedindo que o espectáculo da noite de 28 de Fevereiro, em pleno MEO Arena de lotação esgotada, se iniciasse como havia sido planeado.
Até na grande noite de consagração do rapper do Bairro da Cruz Vermelha parece haver um obstáculo que o amarra a esse passado contra o qual tanto lutou. Só que, desta vez, Plutonio vinha com quatro passos de avanço: tropeça o primeiro, que ainda assim se chega à frente antes dos outros três impostores, dando sinais de que é ele o próprio a entoar as primeiras linhas de um sem fim de canções. Até emergir o verdadeiro soberano — depois de uma majestosa entrada a trote no perímetro falseada —, auto-proclamado no seu merecido trono, já sem quaisquer tipos de barreiras (físicas ou metafóricas) pela frente. Com um sorriso no rosto de quem ri por último é rei melhor.
Discurso de honra feito pela “tia do Dudu”, a inaugurar uma noite inteiramente dedicada à família nas suas mais evidentes concepções. Plutonio traz desde logo consigo para palco um alargado grupo de amigos que o terão acompanhado ao longo destes anos de superação, alguns dos quais presentes também enquanto participantes desta noite reservada a surpresas. O pano, enfim rasgado, desvela finalmente o MC da Linha de Cascais em todo o seu esplendor, reluzente dos pés à cabeça. Daí em diante desenrolar-se-iam três actos na noite de estreia do autor de Carta de Alforria, em nome próprio, na maior sala de espectáculos do país: primeiro a solo, depois com convidados, e por fim de configuração renovada cumprindo a vontade de sua mãe.
Está ele mais do que calejado para actuar perante expressivas multidões, mas não deixa de ser impressionante esta que o recebe e a forma como, aqui, ele a encara. Isso deve-se essencialmente ao reportório que Plutonio traz consigo para duas horas ininterruptas de pulmões abertos, talvez um quarto da sua discografia considerado, dezenas de canções entoadas de uma ponta à outra pelo público. Tem sido ele, aliás, um caso incomparável à escala nacional se medirmos a quantidade de hits somados a essa discografia. Quantidade essa que na hora da verdade só joga a seu favor, até porque a lição vem obviamente bem estudada por uma produção assinalável. Mas nem a complexidade métrica subjacente a tantas das suas emblemáticas faixas se atravessa como potencial obstáculo no alinhamento, quando a audiência suporta qualquer perda momentânea de fôlego deste recordista de corrida com barreiras.
Duas noites de Pavilhão Atlântico esgotadas à semelhança do que Slow J havia feito há praticamente um ano, com Carta de Alforria a suplantar equivalente feito conquistado por Afro Fado em dia de estreia. É o incontornável Richie Campbell — convidado de honra entre o rol de aparições de gente como Kosmo Da Gun, LON3R JOHNY, Dengaz e Lord XIV — que desacelera o ritmo frenético de um concerto interminável, para prestar a devida homenagem ao grande protagonista. Afinal, foi graças ao fundador da Bridgetown que Plutonio teve a oportunidade de vingar o seu trabalho e talento, ele que é o primeiro a reconhecê-lo hoje e sempre. Também acostumado a estes mares de gente a perder de vista, particularmente entre dois pavilhões (não sucessivamente) esgotados, põe este outro conquistador de Lisboa um pé no travão ao piloto-automático, para abrir espaço a esse instante de aclamação em tempo real: comovente vénia mútua entre dois dos mais bem-sucedidos artistas portugueses que, juntos, elevaram a fasquia da editora e produtora através da qual abriram asas a voos maiores.
Assim como é Plutonio o primeiro a prestar, por sua vez, a devida homenagem à sua principal inspiração no hip hop nacional, patente desde logo em Sacrifício: Sangue, Lágrimas, Suor (2019), álbum que, segundo confessa o autor, mudou definitivamente a sua vida: irónico como, entre todas as entradas a convite — se é que esta não terá sido surpresa para o próprio anfitrião —, é a de Chullage a que menos êxtase levanta junto da plateia. Nada que comprometa, ainda assim, o simbolismo do momento, até porque, para uma figura como Chullage, o que verdadeiramente importa é ter andado para que tantos outros possam, hoje, correr. Importância essa facilmente reconhecível por todos na emoção indisfarçável com que Plutonio abraça e agracia o histórico rapper da Arrentela.
Todo esse crescendo de expectativas sobrepujadas para chegar à recta final de consagração, à imagem projectada pela mãe Francisca — revelada já depois da enternecedora performance-surpresa da neta homónima — para o dia mais especial da carreira do seu filho mais novo. Qual xerife do condado de Lisabonna, Plutonio devolve por fim as rosas — cândidas, da cor do seu chapéu de cowboy e de toda a indumentária posteriormente exibida a pedido da progenitora — a quem fez dele autêntico rei. Agradecido, de seu cognome. E mil obrigados, repetidos à exaustão, a não chegarem para expressar o orgulho, sentido por si e pelos seus, por ter chegado onde chegou. Ainda para mais, sem batotice. Com prova dos nove marcada já para daqui a nada.