Phil Freeman

In the Brewing Luminous: The Life & Music of Cecil Taylor

Wolke Verlag / 2024

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 24/10/2024

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“Sou difícil porque não quero outra coisa senão arte absoluta. É por isso que existo”. Esta solene declaração de Cecil Taylor abre o artigo de capa da edição #386 da revista Wire, publicada em Abril de 2016, dois anos antes da morte do reverenciado pianista e compositor americano, aos 89 anos. Talvez tenha sido durante a escrita desse belíssimo artigo, que resultou de dois dias de conversas intensas mantidas durante a preparação de uma retrospectiva e homenagem no Whitney Museum, em Nova Iorque, que Philip Freeman tenha tido a ideia de escrever In The Brewing Luminous, o brilhante retrato da vida e da música de Cecil Taylor agora publicado pela Wolke Verlag. Que a “dificuldade” resultante da confessada devoção pela arte absoluta não tenha demovido Freeman de entregar à página a sua aguda visão do génio de Taylor só engrandece In the Brewing Luminous, 270 páginas preenchidas com pesquisa aturada e finíssima análise de uma das mais complexas figuras da revolucionária música que surgiu após a segunda guerra mundial.

Na introdução do seu livro, Freeman não se desvia da pergunta que muitos fãs de longa data de Cecil Taylor certamente se terão colocado: “Porquê tentar saber a ‘verdade’ sobre um homem que deixou claro, ao longo de uma carreira de quase seis décadas, que o que era mais importante para ele não era a sua vida, mas a sua arte?” O autor concede que este livro não procura ser “uma investigação rigorosa dos pormenores quotidianos da vida de Cecil Taylor” e explica que “não importa onde viveu exatamente de ano para ano, onde trabalhou antes de a sua arte se tornar financeiramente sustentável, que tipo de honorários recebeu pelos seus discos ou pelas suas actuações ou quem terão sido os seus parceiros românticos”. Desta forma, Freeman demarca-se da típica prática biográfica que mais facilmente se encontra nas secções de música das grandes livrarias. Acontece frequentemente, sobretudo quando o sujeito biografado vem do campo da música popular, que se procure nesses detalhes que Freeman prefere descurar as pistas para descodificar a arte. Mas, por outro lado, In the Brewing Luminous também evita o tipo de análise musicológica minuciosa que poderia tornar a leitura um exercício árido para qualquer pessoa não equipada com as necessárias ferramentas académicas. Como o autor enfatiza, “as gravações contam a história”. E aí Freeman é um mestre absoluto, capaz de conjurar as palavras certas para traduzir ideias ultra-subjectivas apoiadas numa escuta mais emocional do que cerebral. Quando, por exemplo, procura explicar o que terá levado Cecil Taylor a gravar “Bemsha Swing” de Thelonious Monk no seu álbum de estreia, Jazz Advance, editado em 1957 na etiqueta Transition, o autor de Ugly Beauty afirma que a melodia da composição original soa como “uma criança a saltar escadas abaixo” e descreve o som de Monk ao piano como existindo “algures entre um tocador de stride dos velhos tempos e a sirene de um carro de bombeiros”. Esse notável talento descritivo torna a leitura desta obra sobre “a vida e a música de Cecil Taylor” num entusiasmante exercício até para não iniciados, forçando a interrupções regulares para conferir no YouTube se as “frases celulares” que o pianista em modo meditativo extrai da secção mais grave do teclado quando toca a segunda parte de “Conquistador” realmente se “abrem como nozes”, ou se o comping que Taylor e Andrew Cyrille providenciam para o solo de Jimmy Lyons se parece com “um leito de gravilha espinhosa” (sim e sim, sou obrigado a concordar).

Para lá das preciosas horas — 10 ou 12, de acordo com o autor — que passou com Cecil Taylor no Whitney Museum, In The Brewing Luminous vive de uma aprofundada pesquisa que levou Phil Freeman a listar cerca de quatro dezenas e meia de livros na bibliografia consultada para esta obra e mais de centena e meia de artigos publicados ao longo de décadas em meios de referência como a DownBeat, Village Voice, Chicago Review, The New Yorker, The Wire ou New York Times. Freeman encara cada citação como necessária peça para completar o puzzle que aqui se propõe resolver, usando esse recurso com a parcimónia exacta que nos convence que tudo o que era informação acessória foi elegantemente desconsiderada. E depois, há ainda reveladoras entrevistas conduzidas com colaboradores próximos de Taylor, um trabalho de magnitude considerável que o levou a compilar histórias que abrem válidas janelas para o mundo interior do reservado pianista. William Parker, que, sublinha Freeman, “tocou intermitentemente com Taylor durante mais de três décadas”, recorda uma história ocorrida em Paris quando ele mesmo, Jimmy Lyons e Rashid Bakr se atrasaram para um ensaio devido a uma avaria no carro que os deveria levar. O atraso terá provocado a fúria de Cecil Taylor. Lyons, habituado a esse tipo de comportamento, aconselhou Parker a não levar essas explosões a peito: “É como se estivéssemos a caminho do ensaio e fossemos atropelados por um carro e chegássemos atrasados ao ensaio, e o Cecil gritasse connosco, como é que podemos levar isso (a peito) se ele não tem empatia suficiente para saber que fomos atropelados ou que a nossa mulher teve um bebé (…) e tivemos de ir para o hospital. E foi esse tipo de coisas que ele não compreendeu”.

Talvez, afinal de contas, Philip Freeman tenha chegado à “verdade” acerca de um homem completamente comprometido com a sua arte, a música, a poesia e a filosofia que unia tudo isso. A suposta falta de empatia com as questões mundanas era o reverso da medalha de uma mente que vivia antes de mais para si própria, que suportou o escárnio de outras figuras — Miles famosamente cuspiu no chão quando viu Cecil dirigir-se a si à porta de um clube —, mas que acabaria por ser reconhecido por importantes instituições culturais na América, Japão e Europa. Não há outra forma de um génio viver que não seja de acordo com as suas próprias regras.


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