Entre a poesia informada pelo hip hop e a estética de uma banda rock de garagem há um elo de ligação chamado Paulinho et al., um rapper, músico e produtor de Almada que tem vindo a mostrar trabalho ao longo do último ano. Depois de em 2023 ter apresentado o álbum Passado Presente, agora foi a vez de mostrar ao mundo Prólogo Paciente.
O que une os dois trabalhos é uma escrita muito autobiográfica e uma produção de quem tem bagagem enquanto instrumentista, com experiência noutros géneros musicais. Falamos de construções sonoras à base de instrumentos e não tanto de sampling, um rap mais acústico e menos digital, que vem contrariar os padrões desta era. Para reflectirmos sobre este projecto artístico, entrevistámos o seu autor sobre o processo criativo e os discos que tem vindo a lançar.
Este novo disco, Prólogo Paciente, antecede tematicamente o Passado Presente? As letras foram escritas antes, referem-se a um período anterior?
Na verdade, nem eu sei responder muito bem a esta pergunta. Desde 2012, com os meus 17 anos, que assumi para mim próprio que queria começar a escrever poemas com o intuito de um dia mais tarde os interpretar musicalmente, ainda que já fizesse poemas há mais tempo, principalmente em trabalhos da escola. E escrevi perto de 200 letras de músicas em cerca de dois anos (num período da vida em que ainda temos tempo!). No entanto, só uns anos mais tarde, em 2019, é que, já com algum rendimento próprio, tive possibilidade de gravar em estúdio, e selecionei os poemas que achei terem qualidade para um dia mais tarde serem partilhados. Assim, escolhi 32 músicas, que são as que podemos encontrar repartidas pelos dois álbuns. A divisão entre os dois álbuns teve como primeiro critério a ordem cronológica, sendo as músicas do Passado Presente, por norma, mais antigas, ainda que haja uma ou outra exceção, como “A Carta (Ideais)”, “25-07-2012” ou “Frei Luís de Sousa”, que apesar de já serem bastante antigas, decidi guardá-las para o Prólogo Paciente pois achei fazer sentido ter músicas de carácter introspetivo e descritivo de alguns momentos importantes deste percurso.
Referes que este novo disco tem uma maior minúcia no que diz respeito às letras e instrumentais. Sentiste uma evolução concreta na tua música de um disco para o outro? De que forma?
Penso que, de forma geral, precisamente por a generalidade das letras deste novo disco ser mais recente, a minha forma de escrita evoluiu mais no sentido que eu acho que tem de evoluir (não necessariamente para melhor ou pior). Mais concretamente, gosto de uma escrita cuidada e com muitos pormenores, que provavelmente até passam despercebidos para a maior parte das pessoas, e acho que neste disco consegui atingir algum nível de complexidade nesse sentido. Os instrumentais, por sua vez, também acho que sofreram um pouco o mesmo caminho, tanto nas variações criadas por vários instrumentos, as progressões de acordes, e um grande acrescento que foi a inclusão do pianista e professor de música António Xavier, que deu uma vertente mais jazzística e imprevisível a algumas músicas. Portanto, apesar de o estilo musical ser semelhante, creio que a evolução de um disco para o outro existiu, pelo menos na minha perspetiva do que é que deve ser a minha própria evolução.
Gostas deste exercício de refletir sobre o passado e as memórias com o distanciamento que a vida permitiu? É prazeroso lançar músicas que se referem a acontecimentos com mais de uma década?
Penso que todos nós vivemos numa luta contra o tempo, e ainda para mais nos dias de hoje em que somos completamente assoberbados pela imensidão de tarefas, de informação ou de meras oportunidades de despendermos esse mesmo tempo. Sempre fui uma pessoa bastante recatada e desde cedo encontrei um espaço seguro comigo próprio na música e em particular na escrita, e isso permitiu-me sempre ter períodos de reflexão altamente reconfortantes. O que eu quero dizer com isto é que hoje continuo assim, com menos tempo para o fazer, mas tenho ainda a possibilidade de rever as minhas reflexões antigas. Torna-se quase que um diálogo com um “eu” que já não existe na sua totalidade, e é bom pensar que aquele miúdo amadureceu e me possibilitou ser o que sou hoje. É isso que me fazem sentir as músicas mais introspetivas, e realmente é algo que me deixa muito satisfeito porque continuo a ver verdade e a sentir aquilo que é relatado, num processo que ainda hoje é bastante solitário.
Como funcionou o processo criativo? Construíste os instrumentais à medida para cada letra?
Começando pela segunda pergunta, na minha cronologia, a escrita antecedeu a criação instrumental. Ou seja, há muitas letras que escrevi imaginando-as acapella ou considerando algum instrumental da Internet e muitas vezes instrumentais do Sam the Kid, fosse do álbum de Beats Vol. 1 – Amor, ou alguns que haviam sido disponibilizados no Youtube. Paralelamente, tocava também alguns instrumentos, e tive algumas bandas de pop-rock com amigos e professores na escola em que tocava guitarra ou baixo, e toquei cerca de 4 anos guitarra clássica na Academia dos Amadores de Música (do meu repertório destaco algumas peças de Heitor Villa-Lobos ou Francisco Tárrega, que sempre foram uma inspiração), o que me deu algum background musical, ainda que mesmo nos dias de hoje considere que estou muito longe de dominar ou sequer de perceber algumas nuances mais complexas da teoria musical. Lá chegarei, espero. Mas dito isto, a escrita e a parte instrumental sempre coexistiram mas nunca andaram de mãos dadas. Só um pouco mais tarde comecei a aprender um pouco de piano de forma autodidata, arranjei o FL Studio e comecei a fazer algumas experiências. Como percebia, e ainda hoje percebo, pouco de produção, apesar de as melodias e as progressões de acordes soarem bem, o produto que eu conseguia atingir parecia quase um toque polifónico, não sei se me faço entender, ainda que conseguisse ver o potencial dos instrumentais. E foi assim o início, comecei a criar instrumentais dentro dessa base, normalmente com um drum loop, piano, guitarra, baixo e violino, e ia associando letras que já tinha escrito aos instrumentais em que achava que poderiam encaixar. Hoje em dia já faço o processo de forma inversa, penso os instrumentais e só depois escrevo, e tenho também uma grande mais valia que é a polivalência do produtor destes trabalhos, o André Eusébio, que dá também um grande contributo criativo na parte instrumental. A escrita em si também variou bastante quanto ao processo ao longo do tempo. Antigamente, pensava num tema, antes de escrever apontava 4/5 ideias chave para irem guiando e se calhar numa noite tinha uma letra feita. Hoje já não é bem assim, tenho centenas de notas no telemóvel que vou apontando diariamente com ideias conceptuais, frases e palavras, e quando me sento para escrever sobre um tema, a primeira fase é rever todas essas notas, compilar aquelas que se coadunam com o tema e depois começo a montar as peças. Hoje sou muito mais minucioso… e lento — demoro semanas a escrever uma música já sem contabilizar o tal processo em que tento ir coletando informação.
Dirias que a tua formação enquanto instrumentista se revelou essencial para o teu trabalho musical no rap?
Em termos de escrita, acho que não. A escrita é algo que apareceu na minha vida naturalmente, se calhar de forma concomitante com a música, mas não desde logo interligada. No entanto, e apesar de achar que a escrita é a parte fundamental do rap, valorizo muito os artistas que conseguem ser hábeis nas duas vertentes, e para mim, sem dúvida que o meu passado como instrumentista alavancou a criação dos meus próprios instrumentais. Como os meus instrumentais são pensados para instrumentos, não sendo tanto à base do sample como é comum no rap (ainda que também faça algum sampling em algumas músicas, e também é uma vertente que vou tentando aprimorar ainda que esteja longe de ser algo que domino), alguma versatilidade que possa ter adquirido no âmbito da teoria musical e na interpretação instrumental vai-me sempre ajudando em coisas como as progressões de acordes e variações melódicas ou de intensidade, e isso por sua vez também influencia a abordagem e interpretação da letra.
Estás já a trabalhar em mais projetos? Tens muitas letras e/ou instrumentais na gaveta?
Ainda que de forma bem mais lenta, sim. Na verdade, tenho dois álbuns projetados já numa fase avançada, também com cerca de 14-16 músicas cada um, em que já tenho as letras todas escritas e demo dos instrumentais todos. Avanço desde já que o meu terceiro álbum de originais se intitulará Perspicácia Paulatina, e espero lançá-lo em 2025. Já comecei a trabalhá-lo em estúdio com a gravação dos três primeiros temas, ainda que ainda não tenha decidido se vou divulgar o álbum de forma faseada, com o lançamento de alguns singles, ou se na sua totalidade quando estiver tudo finalizado. Contemplará letras que escrevi entre 2015 e 2020 e, portanto, já tinha mais alguma maturidade intelectual e emocional, e penso que continuei no sentido da tal evolução de que já falei tanto nas letras como nos instrumentais. Para além disso, aquele que eu espero que seja o meu quarto álbum de originais intitular-se-á Paixão Prospetiva, e espero estar apto para o lançar em 2026. Este álbum será certamente aquele em que atingirei uma maior complexidade instrumental e literária, refletindo o meu panorama atual. Claro que sou suspeito, mas penso que as letras estão exatamente onde quero que estejam, com muitas longas-metragens com densidade rimática muito grande e um vocabulário mais elaborado, estando os instrumentais também mais diferenciados, não se ficando por sonoridades relativas a acordes maiores ou menores por exemplo, ou aprimorando a orquestração e dando maior peso ao meu passado na música clássica. Por isso, acho que, no cômputo geral, haverá muitos pormenores, muito “sumo”, para quem se possa interessar, que eu sei que provavelmente não serão muitos. Seja de que forma for, é este o método que me dá satisfação e que me permite manter o sonho vivo, numa fase da vida com muitos afazeres profissionais e familiares, sabendo eu que estes prazos que estabeleci por vezes são modificados, mas com a convicção de que conseguirei cumpri-los contribuindo por pouco que seja na minha invisibilidade para esta cultura que tanto nos apaixona.