É uma quinta-feira chuvosa em Lisboa e a sombra das árvores caídas na noite anterior, arrebatadas por uma tempestade violenta que também causou outro tipo de destruições, ainda paira sobre o estado de espírito. O público, encasacado e morno, saindo do conforto de casa para enfrentar uma possível nova noite de intempérie, entra no Capitólio, no Parque Mayer, bem no centro da cidade, para bem receber Noah Lennox, que na música responde por Panda Bear.
Também ele já se tornou um lisboeta. Músico norte-americano radicado há vários anos na capital portuguesa, mais conhecido como elemento fulcral dos Animal Collective mas também pelo seu prolífico trabalho a solo (ou em colaboração com outros), vinha apresentar definitivamente o seu novo álbum, Sinister Grift — depois de uma série de datas por diferentes cidades nacionais, em salas mais pequenas.
Habituámo-nos a ouvir de Panda Bear, e também dos seus Animal Collective, um rock de diversas ambiências — muitas vezes experimental, ousado, psicadélico, quebrado e envolvido em texturas ou ritmos mais electrónicos. Nos últimos tempos, porém, Noah Lennox e companhia têm apostado numa instrumentação mais directa — menos turva e difusa — o que também é o caso deste Sinister Grift.
Depois de muitos anos a tocar realmente a solo, ocupando solitariamente o palco, nesta digressão Panda Bear apostou no formato de banda. É um disco que pedia isso mesmo, que evoca o rock n’ roll dos anos 50 e 60, dos conjuntos de instrumentistas em palco antes dos teclados MIDI e demais hardwares onde cabe toda uma orquestra — mas naturalmente sempre com uma abordagem fresca, indie, aprimorada, que não nos deixa olvidar que estamos no século XXI.
Embora seja um rock mais frontal e menos camuflado, ainda assim não faltam elementos mais exploratórios ou psicadélicos — como o público, a aquecer lentamente, pôde testemunhar no Capitólio a partir dos visuais surrealistas que envolviam rostos, cães e formas abstractas numa explosão de luz e cor que elevava e alimentava a performance.
A música de Panda Bear, como o artista nos explicou recentemente numa entrevista sobre o novo disco, tem-se pautado por contar histórias — é a forma mais eficaz que o criativo arranjou para transmitir as suas mensagens, para expressar as emoções ou pensamentos intrínsecos às composições (que neste caso tiveram uma mão considerável de Josh “Deakin” Dibb, companheiro de longa data dos Animal Collective, num acto raro para a discografia em nome próprio de Panda Bear).
São estas personagens e fábulas que Noah Lennox vai recriando a partir do palco — mais ou menos codificadas, estão presentes nas letras, fruto de um “exercício do subconsciente”, como nos descreveu. Não são propriamente planeadas nem intencionais, vão fluindo a partir da criação mental, consoante as emoções e os estados de espírito que os instrumentais também vão gerando.
Aos poucos, o Capitólio vai sacudindo a água do capote — quase literalmente, não no sentido figurado — e balançando timidamente os corpos, ao som da guitarra, do baixo discreto, da bateria subtil. O som chega-nos em uníssono, como um corpo só, como se de facto Panda Bear se tivesse desdobrado em vários indivíduos mas a música continuasse a brotar de uma só fonte. Uma demanda colectiva cuja aura já estava presente em disco mas que de facto se materializa em palco, ao vivo. Uma luz no meio da tempestade.