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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 14/07/2024

A música une o que a língua aproxima.

OVAR FESTA’24 — Dia 2: memórias de uma lusofonia cumprida

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 14/07/2024

Falar em música africana pode ser tão ou mais redundante do que falar, por exemplo, em música europeia. Mas foi essa música africana, genérica e grosseiramente considerada como uma só, que desde muito cedo nos moldou o ouvido a certas emoções. Serve de melodia às memórias estivais mais recônditas, de há um mês para cá substituídas por um imaginário bem mais apropriado a essa banda sonora, fabricado por uma viagem para uma outra Banda. Daquelas que nunca mais se esquecem. E o mesmo se poderia dizer da curta mas verdadeiramente proveitosa passagem por Ovar, que ao segundo dia de FESTA – Sons da Lusofonia no Parque Urbano da cidade nos reservou uma agenda bem mais preenchida do que na noite anterior.

E essas memórias, das recentes às mais distantes, vêem-se imediatamente convocadas à flor da pele ao longo da tarde deste sábado, 13 de Julho, quer pelo calor da voz de Nancy Vieira, quer pela chama dos Acácia Maior e respectivos convidados, quer pela febre dos África Negra. Por sinal, nenhum destes músicos — nem as suas músicas — de primeira linha é originário de Angola: Nancy Vieira nascida em Bissau e criada em Cabo-Verde, os Acácia Maior (praticamente) todos conterrâneos da autora de Gente, e os África Negra vindos de São Tomé e Príncipe. E, no entanto, todos eles, de contextos sonoros muito diferentes entre si, confluem no mesmo espectro de sensações, não só sentidas deste lado, mas evidentemente partilhadas pela esmagadora maioria de espectadores-participantes destes concertos ao entardecer.

Com verdume em pano de fundo, é ao som destes três actos que o sol radiante vai descendo do seu posto e o azul límpido do céu se começa a toldar. Solar, novamente, é a intensidade com que a voz de Nancy Vieira — “mera” intérprete, na sua humilde perspectiva — nos embala o corpo e desperta o ânimo, imediatamente prontos para uma boda à boa moda de Cabo-Verde logo de seguida. Se, com Nancy, é a cantora guineense de origem e cabo-verdiana de gema quem estende a mão, primeiro, aos parceiros de Acácia Maior e, depois, a um par de crianças que continuam a dançar da plateia ao palco, quando a festa é feita pelos Acácia Maior e companhia, são as próprias crianças — exemplo seguido, acto contínuo, pelos “crescidos” — que correm ao palco para abanar braços, pernas e capacete ao som das malhas disparadas pelo colectivo liderado por Henrique Silva e Luís Firmino. Ainda para mais, com a vibrante Débora Paris ao leme desta comitiva, a espaços substituída pelo magnânimo Danilo Lopes da Silva — voz e rosto conhecidos do grupo Fogo Fogo, no qual também milita o teclista João Gomes, presente neste mesmo ensemble — e pelo irreverente Luís Gomes, cara do projecto Cachupa Psicadélica. Tudo em família, portanto.

Já na hora dos África Negra, a formalidade na apresentação e as quatro décadas de legado aos ombros antevêem alguma calma na fervura, percepção rapidamente contrariada pelo comandante do quinteto são-tomense. As fardas e os adereços oficias servem tão-só para fazer da música arma de resistência, mas é pela paz desarmada que ordenam a marcha dançante. E o mesmo se poderia ficcionar do batalhão paulista que viria a coordenar as hostes do palco principal instalado no Parque Urbano de Ovar noite dentro: o autêntico show — palavra mais brasileira do que anglo-saxónica — dos Bixiga 70 passa por uma formatura de incansáveis músicos em plena revolução sonora, à qual nem o mais conservador ouvinte resiste em se juntar.

Nesse aspecto, Branko já vinha com a tarefa facilitada — apenas havia que fazer o que de melhor sabe. Mas tanto uns como o outro tiveram mais mérito que sorte na proeza de segurar mais gente do que seria de prever depois da grande actuação da noite: só Jorge Palma e Sérgio Godinho são capazes de mobilizar gentes de todas as idades e feitios em qualquer terra por onde passem. E nessa hora o anfiteatro natural que recebeu mais uma edição do FESTA em Ovar ganha dimensões de um verdadeiro festival de Verão — com dificuldades em furar até às filas fronteiriças, e tudo —, com uma multidão vidrada nas canções de sempre destes dois bons velhos amigos. Sérgio Godinho, a convite do eterno companheiro de histórias e estradas, já mais combalido — que o tempo, cruel e intransigente, não lhe perdoa —, vai dando o ar de sua infindável graça enquanto Jorge Palma desafia as leis da cronologia, resistente à sua própria factura, tudo menos “Frágil” na voz, no piano, na viola ou na guitarra. Dois afinadores de memórias incomparáveis e intemporais a dar a Ovar mil e uma outras razões para não esquecer esta noite. É o que se leva no fim disto tudo: memórias de uma lusofonia cumprida à nossa imagem.


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