Assim, como se conta, ao quarto e derradeiro capítulo deste ano, deste certame jazzístico nas terras de outras tantas artes. A exemplo a arte urbana em painéis da nova azulejaria, a partir do qual se assume a cidade como galeria de exposição permanente. E Maio será tempo de celebrar essa arte em mais um “Maio do Azulejo”, numa data que celebrará os 25 anos do ACRA – Atelier de Conservação e Restauro do Azulejo. Ovar dos ciclos de novas curtas metragens portuguesas com passagem pela Escola de Artes e Ofícios com o ciclo Shortcutz Ovar, já a caminho da 9ª temporada — nessa inestimável nova ocupação da antiga Fábrica de Papel no lugar do Casal, ali ao lado da vereda onde o rio Cáster nos leva. Ovar existe vibrante além da folia carnavalesca ou do excelso pão-de-ló. Há razões de sobra para agendar um regresso muito em breve.
Mas ainda de volta ao multifuncional Centro de Artes de Ovar (CAO), para no seu auditório assistir à estreia do novo espectáculo de Maria João com o seu mais recente Abundância. O Ovar em Jazz é o palco escolhido e a dar conta disso está o circo da televisão montado à porta. O concerto será gravado para o repositório digital RTP Palco. De Maria João importa referir quanto ao seu enorme papel, de cabal importância, na música e em concreto nas linguagens do jazz. Corria o Verão do ano de 1984 e abria-se um portal chamado Jazz em Agosto na Gulbenkian, em Lisboa. Nesse ano, e com direcção artística de Rui Martins, programaram-se os concertos do Quinteto de Maria João, o Quinteto Xis, o Sexteto de Jazz de Lisboa e o Quarteto de António Pinho Vargas, dando início a um dos mais preponderantes festivais de jazz da Europa. E Maria João foi essa primeira figura em palco. Passaram 40 anos e Maria João não abdica dos palcos, e ainda bem. Essa resiliência é abundância, como a própria assume em discurso adiante no concerto. “Queria celebrar a música que faço, como um assumir de abundância, com este amor.” São assim desta honestidade e desta grandeza simples os enormes seres criativos. “O Amor é Verdadeiro” é tema explicativo, feito mote do concerto, para provar assim mesmo — como se fosse preciso para acreditar e sentir.
Um palco de talentosos músicos, além da voz vestida esplendorosa a dar expressão cromática, fazendo jus às cores vocais de João. João Farinha e André Nascimento, seus cúmplices no projecto OGRE Electric do qual saíram vários álbuns desde 2012 — o mais recente Songs For Shakespeare de 2022. Juntam-se a esta abundância em palco o baterista Texito Langa, oriundo duma família de talentosos músicos moçambicanos e um trio de vozes femininas composto por Mariana Ramos, Mariana Brissos e Inês Almeida.
Um disco em palco e um palco-estreia do disco. Concerto que começa com dois temas extra-disco. De “Parrots and Lions” nem sentimos verdadeira falta do piano de Mário Laginha com que João gravou esse primeiro tema. O outro é herança de OGRE, “Say Something”, e faz a ponte na expressão vocal pejada de sotaque para a envolvente musical no aqui e agora, que é quente e cheira a África oriental — Moçambique. É por isso mesmo que são lestos a revelar uma descrição das cores da terra e do céu em “Esperança”, que passa ao fulgurante “Maputo Jive” já do novo registo. Arranque onírico nessa batida das timbila a que se juntam as palavras cantadas nativas — “Rafael A honoka matilho / Liso la kuwondzo / A ku ma ka! Mahleko / Matinyio yobasa / A ku ma ka! Mahleko / Matinyio yobasa, matsitsi nhlokweni.” Ancestealidade e modernidade aliadas na harmonia dos sons, desde a percussão, aos teclados e electrónicas.
Esse amor verdadeiro em tema tocado e (en)cantado é prenúncio, abre lugar aos alinhados “Beatriz”, “Dário” e “Papalaty”, seres viventes na expressão dos sentimentos belos e sinceros. Nesse último ouvimos a voz de Texito junto à de Maria João e desta a sua redenção ao ritmo do tocador das baquetas. As roupagens modernas da electrónica e teclados, que já conhecemos e aplaudimos de pé desde OGRE, voltam a ser de maior relevo em “As Tuas Tranças”, juntando a ancestralidade dos sons e a voz de Texito. Maria João está rendida a essa dádiva na bateria. É um tema deveras a fazer subir, para trepar, ajudado pelas tais tranças, como seres que trepam um gigante.
Juntam “Ao Sol” ao “Dia”, o que faz todo o sentido como mote de fecho do concerto. Afinal, embora seja noite de lua cheia, plena de luz, neste auditório estivemos longe, na terra quente onde cheira a ocre, onde o sol escalda o solo e volatiliza os dias. Tudo contido nos sons, nas vozes (de João, das Marianas, de Inês e Texito) e nas melodias. Mas uma rendida plateia de pé, depois de muito aguentar dançar sentada, fez com que voltassem na forma de um ensemble vocal, para “The Lion Sleeps Tonight”. Como as notas da setlist deixaram ler, eles previam isto — “very short version. only voices. everybody singing”. Todos contámos com eles que nos (en)cantaram o latente rugir dos leões nessa África tornada presente.
O derradeiro dia de Ovar em Jazz’25 tinha começado pelo final de tarde no Bar do CAO com uma dupla de pingue-pongue, mas na forma de DJ Set. Com Rui Miguel Abreu no prato da direita e dISCOLAGENS no prato da esquerda, ou vice-versa. A música que iam passando ouvia-se dentro como fora do bar, na vidraça do janelão faziam espelho, invertiam-se as suas posições nos pratos. dISCOLAGENS importa referir como alter-ego de João Palavra, ovarense e coleccionador de discos. Habituado a partilhá-los com quem os ouve a rodar sobre os pratos, mas também nas escolas onde mantém frequente a importante actividade pedagógica junto de públicos mais novos, estimulando a relação entre a música e o formato de gravação, entre a arte dos sons e estímulo do pensamento. Palavra puxa Abreu e por aí seguiram entre 12” e 7”, há quem não prescinda do formato menor, certamente por razões logísticas de transporte de uma maleta mais pequena. Nessa troca houve muito jazz, de pendor groovesco, mas também soul e funk, referências mais imediatas e próximas como também o sempre fascinante campo da descoberta, o lugar do novo, para quem escuta e quer saber o que é.
Depois houve tempo e espaço para SAMALANDRA. Sim, para quem este nome possa ainda surpreender, é assim mesmo, não há aqui erro de escrita ou troca de sílabas por descuido — tudo um propositado jogo de fonética. De igual modo Débora King (teclados e voz), João Atouguia (bateria) e Tiago Martins (baixo) formam este fresco e refrescante trio, que nas sonoridades vamos cartografando dentro desse território que resolvemos chamar jazznãojazzpt. Eles que melhor que ninguém se apresentam como “três músicos [que] grafitam o Universo através de waveforms lunares, linhas de baixo pixelizadas e beats isométricos, dando origem a uma dimensão sonora que se vai recriando infinitamente.” Ficámos a saber que estão alinhados para fazer inscrever o seu álbum na também fresca editora destes novos territórios que é a NowJazzAgora, onde já estão uns Mazarin e se prepara LANA GASPARØTTI para ver lançada em rodela de vinil o seu registo de estreia. Aliás, entre a teclista de Lagos, Débora King e Femme Falafel anda tudo muito em família sonora e de inter-ajuda, em partilhas e permutações frequentes.
SAMALANDRA traz fulgor criativo a rodos, entre as sonoridades e o jogo de palavras, que começam logo no jogo de sílabas. A provarem isso mesmo logo no tema de abertura do concerto “Artificiência Inteligencial”, são estes os campos que haverá que esperar. Nem a isto chega na alquimia combinatória as novas ferramentas de Inteligência Artificial. Ainda bem que estamos em tese argumentativa. Precisamos da destreza criativa humana para esse alcançar, convenhamos. King é constante na alquimia das teclas, temos a sensação de um divertimento permanente, um engenho de perspicaz efeito como num parque de diversões deixado a funcionar porque sim, sem fim. Martins tem uma linha de baixo sempre em cima da mesa, nada a esconder, assumindo groove e funk, coeso e divergente em simultâneo. Atouguia é pulsante e ritmado, desfiando-se no redefinir ou apanhando a síncope que se reinventa a pedido.
Ouvimos uma música nunca estática ou saturada, antes dinâmica e reinventando-se amiúde, sem sair de si mesma. Em “Chelia” ouvimos uma voz transmutada por vocoder, genial saber fazer. Em “Super 8” um poderoso baixo, como handy-cam a filmar e a definir os planos. E com “Elvira” trazem um tema cheio de viragens de compassos, daí o nome como refere na explicação a própria vocalista e porta-voz do trio. De “Sépia” ouvimos um discursivo teclado feito de esbatidos tons quase azuis, feito de secreções de sonhos. Conta-nos o lirismo de King que “ninguém chorou quando a Terra secou” letra adiante do tema, envolvente e até comovente. “Nawi” tem muita carga inventiva nas vozes em que se tornam as linhas de baixo, feitas de acelerações e travagens. É nome de axolote, essa incomum salamandra que nunca desenvolve estádios de metamorfose, nunca deixa de viver no meio aquático, prescinde do meio terrestre. Em tudo contrária ao sentido de metamorfose constante desta música de SAMALANDRA, o que os torna tão criativos até nestes detalhes. Esse axolote ilustra a capa do seu EP homónimo lançado em Outubro de 2023. Terminam a prestação no palco-chão do Ovar em Jazz’25 com “Graffiti”, onde há um traço de identidade feito de uma linha de harmónicos no baixo de Martins. Vamos querer saber muito destes três, mas para já vão tendo mais palcos e fica aqui mencionada a casa editorial onde hão-de lançar o seu registo de estreia no formato de longa-duração.
O fecho do Ovar em Jazz’25 em concertos coube ao trio funk-roqueiro de Eugénia Contente. Traz um disco na bagagem de 2023 de nome Duckontente e tem um pé em novas composições como “Rubber Duck”. Que tem muito poder de guitarrismo nas mãos não se duvide, Contente faz as delícias do público que trouxe a maior enchente ao bar nos concertos de fim de noite. Outra perspectiva é que a música que ouvimos se insira neste tão entusiasmante lugar do novo, que temos feito descrever. São riffs atrás de riffs, muito saber tocar, muito rastilho aceso. Muita capacidade de liderar e levar por diante uma plateia no entusiasmo, mas é uma linguagem há já muito tempo escutada. Claro, caímos no campo dos gostos e poderíamos estar aqui a discursar sobre o amarelo ou o verde como qual a cor fundamental. Nada disso, trata-se no fundo de acrescento à música diversa, no multiverso domínio do jazz a mostrar isso mesmo — ecletismo e competência numa programação de festival.
Ao desfecho em bom rigor, apanhámos apenas a descolagem feita nos pratos das rodelas de vinil por João Palavra — chamado para manter a chama acesa através da sua prestação enquanto dISCOLAGENS.
Foi assim esta edição do Ovar em Jazz’25, onde houve muito dessas promessas “pensadas para os diferentes públicos, que ousem experimentar e vivenciar momentos únicos de criação musical”, como anunciava à partida o programa das festas. Afinal esse é um dos melhores desígnios da linguagem jazz, a liberdade criativa.