Ao segundo capítulo deste programa da linguagem das notas azuis nas terras de Ovar, fomos do ponto de partida a uma das muitas possibilidades de hoje, como ponto de chegada. Continuando na metáfora dos rios, dos seus afluentes e efluentes, encontramos o fluir das narrativas da história do jazz entre portas. Na mesma noite em que houve um decano e seminal do jazz em Portugal no seio de um trio e um quarteto que se insere no movimento que por cá temos vindo a apontar como jazznãojazzpt.
A programação de ontem, 10 de Abril, começou com NoA (que é como quem diz Nuno Costa em guitarra eléctrica, Óscar Graça no piano e teclados, e André Sousa Machado na bateria e percussão) e Rão Kyao com Concavexo. O trio leva o seu segundo registo de estúdio ao palco do Ovar em Jazz e com ele(s) o mestre das flautas de bambu. E torna-se imprescindível evocar a história, porque é a própria história que se mostra diante de nós, público presente. Em 1976 com Malpertuis, Rão Kyao inscrevia o primeiro LP de jazz em Portugal. Um marco na história das notas nestes tons entre nós, juntando aos seus saxofones alto e tenor e às flautas o piano de António Pinho Vargas, ao contrabaixo de José Eduardo e à bateria de Joãozinho “Oiã”. É um facto. Rão está aqui diante de nós com umas quantas flautas para fazer música junto a NoA. Também se torna incontornável referir hoje, que volvidas estas quase cinco décadas, outros neste presente fazem essa “mesma” passagem, escrevemos a exemplo de Shabaka Hutchings, também ele hoje de volta das flautas prescindindo as palhetas e saxofones. Dois decalques, insuspeitas confluências, Rão e Shabaka.
Mas voltando aos NoA e a Rão, que contracenam num par de temas em disco, “Inquieto” e “Circo do Oriente”. O palco trouxe-os em conjunto em outros temas mais. Houve um programa alinhado em conjunto. Arrancam com “Zás Trás”. Gostamos muito daquele tambor tradicional feito tímbalo no conjunto de bateria de Sousa Machado. Um discurso feito de muita melodia, muitas evasões de palco à custa dos fraseados das flautas. Muito interlúdio em palavras, Costa sabe levar uma plateia de gente entre as músicas. Estava entre um tom de grande contentamento e admiração. Esta ideia de que o jazz chama uns tantos à plateia e sempre que são mais em número do que os que estão em palco é de gratidão para este porta-voz de NoA. Sim, ontem neste Ovar em Jazz estávamos todas e todos em palco. Hoje somos muitas e muitos mais. “Circo do Oriente” traz essa viagem longínqua, tema desenhado à imagem da sonoridade de Rão, confessa ideia ouvida do compositor, com a guitarra a desenhar um exotismo acrescido. Destaque ainda para “Grandes Passadas” já no avizinhar de um não querer terminar, a que acrescentaram “Índios da Meia-Praia”, tema de sempre de José Afonso, apelo de rebeldia e persistência. E essa flauta “mágica” de Rão que trouxe encanto permanente. Um trio escorreito na linguagem, que soube ser tapete para um músico transcendente trazer essa luz que melhor se sente do que se vê. Fecho assumido com “All The Things You Are”, tema intemporal de Jerome Kern, primeiramente construído em trio de guitarra, piano e bateria, a que se junta essa flauta que se fez imprescindível na noite, na vida do jazz em português.
O segundo bloco da noite do segundo dia de Ovar em Jazz trouxe um dos mais fulgurantes e indisciplinados, no que ao rigor das estéticas musicais diz respeito, quartetos em actividade — YAKUZA, de seu nome. Com o seu segundo registo, “imaginativamente” designado de 2, selado pela Disco Interno, YAKUZA tiveram para a redacção do Rimas e Batidas o mais consensual entre os melhores álbuns de 2024. Escrevia em recensão ao disco Rui Miguel Abreu: “É com o fundo tremor do baixo que se inicia a autêntica viagem ao desconhecido conduzida pelos YAKUZA, […] trabalho em que a liquidificação das fronteiras entre géneros é talvez o ingrediente principal.” Em palco chão do Bar do Centro de Artes de Ovar (CAO) apresentam-se como colectivo móvel lisboeta, com Afonso Serro (teclados, sintetizadores), AFTA3000 (baixo), Pedro Ferreira (guitarra e sintetizadores) e Luís Possolo (bateria).
Partem sem demora para o concerto que ao mesmo tempo foi programa de rádio. É que Notas Azuis, como programa que semanalmente faz da hora de jantar de domingo um fluxo dos novos tons do jazz no éter da Antena 3, estava a ser gravado. O seu mentor e locutor Rui Miguel Abreu fez ao vivo a gravação da sua rubrica musical. E lá se vai a magia do fazer rádio (ou não, estamos em querer), sem truques, tudo às claras. Dois dedos de conversa, primeiro com Nuno Costa no rescaldo da actuação de NoA com Rão Kyao, e depois na antevisão de YAKUZA com Afonso Serro em troca de ideias.
Este quarteto parte de rompante, sem aviso, convida à dança de imediato, estamos sentados, outras e outros em pé, mas o sentido rítmico de movimento de ancas e pés de sentido é inegável. É música para pistas, sejam elas de dança, sejam de aceleração, numa descolagem. É inegável que vemos a acontecer uma das mais enérgicas firmações que efluem desde o jazz, já o não é mas também não o deixa de ser. Esbatidas as margens, fronteiras ou os cursos obrigatórios de caudais, aqui o regime é moderno, fresco e estimulante até mais não. Depressa o ritmo imposto aproxima-os de um drum & bass de LTJ Bukem, emaranhado num tropicalismo aditivado. Combustível aqui sobeja, mas sem haver desperdício algum. De facto, o groove permanente da guitarra baixo de AFTA3000 é chão de suporte e vibração. Mas o jovem mago Serro é capaz de desferir as mais quentes e percolantes frases desde os teclados Korg entre outros. Numa guitarra que em certas faixas se queria ter escutado mais soberana, Ferreira soube ainda coligir mais profundidade e textura aos comandos do sintetizador. E foi locomotiva permanente o baterismo elementar e portentoso de Possolo. Duas tarolas em função arrebatadora, acelerando, quebrando o ritmo, desenhando uma contradança, foi fundamental na intensidade. Encontrámos em “Penha” um mote para dedicarmos corpo e alma a esta corrente de energia, encontraram YAKUZA nesse tema uma dedicatória a todos os moradores desse bairro lisboeta — Penha de França. Os troféus que a capa do disco exibe, nesse Sporting Clube da Penha, é uma premonição, mostra as glórias um dia merecidas, mas é um oráculo porque YAKUZA já está em pista a conquistar muitos outros mais, todos os que se seguirão.
Comentávamos em modo de curta conversa com Rui Miguel Abreu que tinha sido uma noite pouco ou nada frequente nos já muitos festivais de jazz que temos por aí. Não é todos os dias que temos um arco de tempo e gerações, abrindo a diversidade das linguagens no mesmo programa. Houve um sabor de antologia. Hoje o programa deste Ovar em Jazz prossegue com o pianista arménio Tigran Hamasyan em quinteto (21h30 no Auditório do CAO), seguindo-se um programa gratuito e de entrada livre no Bar do CAO, com o saxofonista Brian Blaker (23h) e um DJ set de Rui Miguel Abreu (das 0h00 em diante). Venham daí!