Estamos nos primeiros mergulhos, e até a lufada de ar quente faz jus à vontade. Mergulhamos a pique nas águas do jazz nesta cidade que estabilizou as margens do rio Cáster. Lembramos a sempre útil ideia de “dizem violentos os rios mas não as margens que os contêm”. O jazz tem esse lado de fluxo e rapidez de pensamento criativo. Ovar recebe até dia 12 de Abril um programa de ambição e celebração das multicombinatórias feitas de notas azuis. “No Ovar em Jazz continuamos à descoberta, numa música inacabada […] com concertos, encontros, conversas, escutas e partilha,” assim como nos apresenta o belíssimo desdobrável com o programa das festas, que ontem (9 de Abril) teve início.
Arranque do festival a cargo justamente de uma formação, a la all-star band, escolhida a dedo pelo baterista e compositor João Lencastre. Um sexteto de portentosos músicos nacionais da linguagem jazz, contando com Ricardo Toscano (saxofone alto), Pedro Branco (guitarra eléctrica), João Bernardo (teclados e sintetizadores), Nelson Cascais (contrabaixo), João Pereira (bateria) e o próprio “maestro” Lencastre noutra bateria. Ou seja, uma formação com dupla percussão, dupla propulsão. No disco que os traz a palco, gravado pela Robalo Music, Free Celebration, estão contidas doze faixas, dez delas reverendas revisitações de temas de mestres como Ornette Coleman, Thelonious Monk e Herbie Nichols. Vamos celebrar o que nos trouxe até aqui.
As palavras são de Lencastre, ainda que horas passadas do concerto “estava a soar muito bem, leve, leve, leve”. Que melhor sensação se pode viver para além da leveza de quando lidamos com a herança, com um passado que traz carga, mesmo que seja a música o fardo a carregar. Com este disco, e os concertos (como este) que daí venham, Lencastre e estimável companhia procuram evocar e celebrar, vê-se, sente-se isso em palco. E estamos todos nele contidos. A caixa de palco é o lugar, o lugar da confraternização.
O começo é uma composição destas novas glórias do jazz, trazem-nos uma introdução colectiva, a definição da sua linguagem. Andamos próximo de uma ”Free Celebration 1” em disco. Sobressaem as notas do alto e dos teclados, entre duas baterias que se entrecruzam no pêndulo do contrabaixo, no deslize da guitarra. Promete embalo certeiro, muito swing em perspectiva, ou no tilintar recorrente no prato ride. Espaço para a fabulosa luz de palco, sob e surgida atrás dos músicos subindo as paredes técnicas do espaço sem vestimentas ou adornos.
As primeiras celebrações alinham dois temas de sempre de Ornette Coleman, “Giggin’” e “Congenialty”. Toscano frasea volúpias na frente, arrasta multidões de harmonias em redor. É o elemento mais vivaz, irrequieta poesia. Mas encontramos, tal como na primeira vez que escutámos estas roupagens dos clássicos — na transmissão rádio, via antena2, do concerto no festival Robalo’24 — um delírio chamado órgão Prophet às mãos de Bernardo. Talvez mesmo a escolha que mais acrescento traz ao sexteto idealizado por Lencastre, que tem em Toscano, Pedro Branco e Nelson Cascais companheiros de outras andanças como na sua formação Communion. Este Bernardo traz delírios musicais, divertimentos recorrentes. Estamos numa boa onda, assim leve, leve como a celebração pede.
Prosseguem para uma tripla, em que a “The Gig” de Herbie Nichols juntam “Shuffle Boil” e “Skippy”, ambos de Thelonious Monk. Este último tema gravado por Monk para a Blue Note em 1952, considerado por muitos como uma das suas composições mais difíceis de negociar. Ouvimos leveza, foi leve e embalante, mesmo na vertigem a que o tema empurra, numas prodigiosas baterias. Compromisso absoluto destes seis e com acrescida textura, muito por força de uma dupla bateria. Astúcia e saber fazer. Seguimos com “Kathelyn Grey” que Coleman compôs e estes seis em nada perdem essa luz entre as sábias mãos.
O concerto cresce para o final e cresce no arrebatamento. “The Third World” de Nichols é tudo swing, tudo gira em embalo, doze mãos na função. Tema de enorme beleza. Para catapultar-nos para uma vertigem de nome Branco e a sua guitarra de intermitência deslizante. Servem “Toy Dance” e “Forrunner” de Coleman, para levantar rodopios de energia, soltam-se as partes no todo. Que conforto estar presente, receber esta revisitação. Tudo traz os devidos frutos se assim for cuidado. O desfecho não poderia ser senão com “Humph” de Monk, tal como em disco. Neste palco há um substracto de fertilidade conjugada a seis, há rasgos de teclados neste tema, nesta celebração, da qual ainda lembramos na memória o livre improviso de Pereira enraizado na tradição.
Celebrar assim, livremente, leve, leve, é tão contagiante. Só nas margens dos rios se pode ver melhor o fluxo das águas, de um jazz assim. Foi ao que viemos, para sorver e contar. Hoje o programa prossegue com NoA e Rão Kyao (21h30, no Auditório do Centro de Artes de Ovar) e com YAKUZA (23h, bar do CAO).