Ao terceiro dia andado da FEST — nome que vamos ouvindo dos habituais presentes abreviando-se o extenso OUT.FEST — entra-se na voragem da programação. Contudo, a noite anterior, encimada pela dupla billy woods e E L U C I D, que dá pelo nome de Armand Hammer — a que se dará dedicada cobertura neste espaço — ainda deixa ecoar as palavras hábeis e sabiamente debitadas. Aos passarmos na memória recente do vivido, às portas do local do concerto, são as palavras de outros(as) poetas que nos detêm a atenção. Manuscritas na pancarta em que anunciava o concerto valem as palavras que se transcrevem, amplificando essa voz certeira: “Guerra aberta / não só na Palestina / mas na cama / no carro / na alavanca / que lança o podre do tecto / sobre as nossas cabeças / é tino / é tanino / é taça / e não interessa nada do que faça”. Seguimos a deambular por este Barreiro de edificado operário, deste e doutros tempos de luta e resistência. E uma vez olhando de frente para o antigo Teatro Cine Barreirense é evocada a memória da galhardia, pela decisão de boicote, como resistência ao que viria a ser o último “acto eleitoral” da ditadura em 1973. “Durante o III Congresso da Oposição Democrática, decide-se a participação nas eleições para a Assembleia Nacional. O Governo [fascista] responde accionando o dispositivo repressivo. Nesse dia, neste Teatro, na presença de cerca de 3000 pessoas é aprovada a moção em que se decide a não ida às urnas”. Algo como o que se passou em tantos outros lugares do país e que antevia o que o Abril do ano seguinte traria — o fim do regime fascista.
Na antiga Sociedade Cooperativa Barreirense — fundada cinco meses após a Implantação da República consequente ao fim do regime monárquico —, que hoje se faz de Escola de Jazz do Barreiro, teve lugar a conversa com DeForrest Brown Jr., músico e autor do livro Assembling a Black Counter Culture. Brown Jr. que aborda a cultura do techno e a música adjacente a esse movimento, na perspectiva e importância da comunidade negra norte-americana no contexto laboral em sistemas industrializados. A presença no Barreiro fica mais que justificada, pese embora a cultura techno que se aborda no livro e na conversa seja sem paralelo neste contexto local. Brown Jr. também ele um “techno rebel” dos quais se suporta com argumentos como os de Alvin Toffler em Third Wave. Com inícios no anos de 1980 em Detroit, a cidade formada pelo ideário da industrialização norte-americana, em que a paisagem ia sendo muito também marcada por uma cultura musical negra. A conversa e o livro contrapõem — em tese — a perspectiva da contracultura negra como enquadramento definitivo do techno, mudando a ideia da assimilação predominantemente branca — sendo uma visão europeia. Como cita Brown Jr. em conversa, Juan Atkins clarificava em 1992 — na nº15 da Music Report — “techno é música que soa a tecnologia, e não tecnologia que soa a música, significativo é ter em conta que muita da música que ouvimos é feita com recurso à tecnologia, quer saibamos ou não. Mas na música techno isso é assumido”. Para sustentar esta leitura do techno e da contracultura negra, Brown Jr. faz ancora fundamental no afrofuturismo de Sun Ra a Coltrane, que por sua vez já traziam elementos culturais africanos, estando imbuídos também da herança dos nativos americanos. A conversa estava muito boa de seguir mas urgia garantir um lugar na primeira proposta de concerto do dia.
Igreja de St. Cruz, edifício escolhido de antemão por Mariana Dionísio para pôr em prática o que declara ser “uma ideia de instrumento, mais que um coro de vozes, na extensão da sua em mais possibilidades” — e talvez seja esta, salvo melhor opinião, a definição de LEIDA. É à primeira escuta um movimento sonoro, um som vindo de oito (im)possibilidades de emanar. É a fruição retemperada de se ouvir o que se necessitava escutar sem supor sequer da existência prévia. Esse lugar de prazer que nem se imaginava. As igrejas são os espaços que desde tempos idos se edificaram para propagar a palavra, como som vindo de outras entidades, é por isso o local de privilégio acrescido para usufruir desta reformulação vocal. E há uma ideia de invenção associada à mais primeva das expressões musicais. Isso ouve-se desde logo no idioma cantado em modo soletrado por Dionísio, num dos raros momentos em que se vira para a plateia — à parte disso, dirige virada para o ensemble vocal formalizado por Leonor Arnaut, Beatriz Nunes, Filipa Franco, Nazaré da Silva, João Neves, Hugo Henriques e Diogo Ferreira. Como noutra das invenções de Mariana Dionísio — em Tracapangã —, desejamos que o futuro lhe seja longo, porque já é, com tudo isso, um presente gratificante para todas e todos nós.
E de som do ar se continuou a FESTa neste OUT.FEST. FUJI||||||||||TA, que é Fujita Yosuke, apresenta-se com um dos fundamentais cultores do ar, como matéria elementar mais que prima para uma prática artística sonora. Yosuke é construtor dos seus instrumentos na derradeira possibilidade de pôr em prática o seu ideário sonoro. Polivalente no exercício das suas capacidades instrumentais e em campo reinventa-se em permanência. À Igreja de St. Cruz traz dois tubos, como que elementos vindos da formulação tubular que apresentou noutra Igreja, na outra margem, na anglicana St. George em Novembro de 2023. A esse propósito retomamos as suas palavras na entrevista concedida ao Rimas e Batidas. “Tenho a ideia de que a visão, o som, o cheiro, a situação, o estado de espírito, etc., se juntam para formar um único som, e pensei que a presença dos tubos seria o que mudaria o som da guitarra. Construí o órgão com este motivo em mente e, desde então, apenas explorei a minha própria expressão, continuando a fazer experiências com ele.” Fica assumido o modo operante deste artista. Aqui munido de um aerógrafo, a projecta ar, com que “desenha” ondas de movimentos vários, que esculpem o som na interacção com os dois tubos de abertura em bisel. São correntes de ar percutidas como pontos de partida para viagem aos confins da imaginação. Até que sucede uma acção percutida no real, através de uma mínima taça — como que tibetana. Ar cónico desde então. Até que empregou um aerofone bocal — Thai Wote, composto por vários pequenos tubos de bambu dispostos de forma circular. E necessariamente circular foi a respiração de FUJI||||||||||TA, contínua, alcançando ascensões de um transe sonoro. Fundamental!
Inês + Arianna + Violeta era a soma das parcelas que nos levou até ao ADAO, o antigo quartel de apagadores de fogos de outrora, agora centro nevrálgico de cultura no Barreiro como Associação de Desenvolvimento de Artes e Ofícios. Inês Malheiro é com Deusa Náusea o que tem expressado do seu mundo de voz própria. Este registo de 2022 pela portuense Lovers & Lollypops (L&L) inscreve-a no campo das fulgurantes compositoras destes tempos. A expressão inscreve-se num trabalho modelando o instrumento voz. Já assim o fizera na dupla formulada com Miguel Pedro em Fura Olhos (Revolve, 2021). A convite do formula, juntamente com Violeta Azevedo (flauta transversal processada) e Arianna Casellas (violoncelo), para a “radiografia #5” do gnration — “Volatile Poem”, em Junho deste ano. É uma nova formulação no percurso artístico das três exploradoras sónicas, habituadas a trilhar percursos a solo, também mas não só. Casellas é parte de Sereias e com Azevedo e outros conjuraram um septeto a que chamaram, e gravaram como justamente Septeto Interregional (L&L, 2021). Mas neste trio de vozes, com as suas e as instrumentações complementares — com flauta transversal, teclados e violoncelo — compõem um espaço indefinido no tempo da memória. Apresentam-no de forma ora concreta, ora difusa — é da natureza da memória que assim o seja. Há para elas o risco do formato concreto da canção, das palavras assumidas. Ouvem-se esparsas formulações oníricas: “Old memory […] energy path”, como partes de um todo narrado e assente na lonjura do tempo tocado num desconhecido “provided by an unknown sea”, “sun tax — sun charge”. “Volatile Poem” é servido com um manto de conforto que vem de uma ideia do espaço desconhecido mas familiar. De um fluido que envolve: “Waterflow / waterfall / words fail / words fall” soam a novas polifonias com água à mistura que produzem efeito, desde logo na ideia que Nietzsche estabeleceu entre a estética e a compreensão orgânica da arte, numa perspectiva fisiológica como resposta. A certa altura boa parte da plateia ia escutando as três, sentando-se, deitando-se, relaxando o corpo permitindo outros campos de percepção, como num sonho real. “Singing in mute” era escutado como tapete vocal envolta em palavras sibilantes começadas por ésses “scream study, silk smile, solid swear…”
Passagem para a sala de entrada da ADAO — sala das colunas. Lugar de plataforma para o “giradisquismo” com Mariam Rezaei. Figura incontornável, assim como Shiva Feshareki, na cena vital de compor utilizando o gira-discos como instrumento central. Ainda que actuantes em campos não tangentes, ambas têm protagonizado incursões paralelas pela exploração absoluta do espaço sónico disponível e até gerando matéria espectral desconhecida. Apenas este ano as duas fizeram estreias nacionais — é sempre boa altura. Rezaei estreia-se aqui e agora. Sintetiza o som, no sentido químico, de o tornar em partes elementares, para disso fazer uso depois num artesanato de restauro. Surge com um prolongado e entranhante drone — ruído, de erro feito a propósito. Biombo de separação das partes do todo trazido. Debate-se morosamente num hipnotismo de ritmos sonhadores — ecos de riffs perdidos de guitarras dispersas e a soarem livres. Impressiona por operar de forma continuada sem mudar as rodelas de vinil que giram no sentido que mais lhe convém — horário ou anti. Há um pulsar constante no pitch a modelar a onda projectada. As rodelas de vinil estão como surge a matéria-prima, que desliza sobre a camada que projectou de outras fontes. Os “buracos-negros” são disso feitos, quando se solicita nova matéria. Também Feshareki nos falava de uma ideia de “mergulhar coletivamente num buraco negro e depois subir ao éter”. Será afinal muito feito disso e para isso mesmo este fundamental instrumento, a que recorremos apenas para relembrar o som da matéria dada? Mas para um além dessa função haverá que contar com as mestres mãos de sabedoras como Rezaei demonstrou ser.
Donna Candy surgia como um power trio reformulado, construído na ausência de uma guitarra e na forte presença da voz — tornada múltipla pela repleta mesa de pedais ao dispor da transformação vocal. É disso feita esta música de Donna Candy, numa — já referida em apresentação — “euforia queer”. Há uma transmutação em curso na voz, que é caleidoscópica e mutante. Transforma um campo estético de um som provindo de uma linha de baixo pulsante a par com uma bateria tocada a soar a metal a arder, com incursões mais palpáveis nos domínios do noise e doom em que precisamente há uma hegemonia testosterónica. Aqui a voz passa a ser o que a música pede, mas há invariavelmente uma atitude afirmativa e que reivindica uma mudança de paradigma que se torna, e na forma muito plausível, por esta reformulação do saber fazer lá para os lados do metal endurecido onde se atinge estados de transe psicadélico.
E de transe, em contínuo movimento de embalo drone foi a prestação de France. Assumamos de pronto o efeito surpresa, de estarem fora da lista dos 11 imperdíveis momentos que antevimos. Antes assim, cabem sempre mais nestas listas, a justificarem serem lidas como intervalos abertos. France é um trio vindo do centro-sul desse mesmo país. Compostos por Yann Gourdon na sanfona e Jérémie Sauvage no baixo, a que este palco-oficina da ADAO trazem o baterista Romain Simon, peça ambivalente deste muito, muito poderoso trio. A bateria é o único instrumento de palco — como farol guia do ritmo. Já no chão, na frente da massa humana dançante estão os xamãs e orixás Gourdon e Sauvage. Intensidade no máximo desde o primeiro pulsar — tomado colectivo. A sanfona tem propositadamente um mecanismo de autómato do rodar — fundamental neste existir. A Gourdon cabe impulsionar o andamento que é catártico, estamos num cerimonial ritualizado do som que conduz a estados hipnóticos. O baixo ouve-se estonteante e capaz de fazer perigar a coluna de som que o propaga, momentos há que se mostra em anéis ao rubro, nunca antes visto. Há um estado de transe em curso sem exagero algum. Para quem aceita estar presente passa a fazer parte de uma viagem marcante e libertadora, que trespassa o real, em estados alterados de consciência através da música como fonte primordial e ancestral do estar vivo.