O Barreiro é hoje uma cidade (ainda) à margem da compulsiva gentrificação, do turismo das massas que homogeneízam, que caminham para tudo normalizar no indistinto. Nesta cidade peninsular do estuário do Tejo, que desde há 20 anos celebra a outra música, no OUTubro que se faz em FESTa, também e muito com aqueles outros e outras, que as margens acomodam, e que a corrente dos dias remete para fora do eixo central. “Um festival com cérebro, mas também com alma e coração” assim se referiu ao OUT.FEST a revista The Wire, em 2019. Esta ideia de festival e de espaço de movimento comunal que saiu da imaginação criativa de Rui Pedro Dâmaso e Vítor Lopes, barreirenses que colocaram este evento no mapa que leva aos tesouros. A referência ao OUT.FEST como “um dos mais singulares e excitantes festivais europeus”, nas palavras da publicação The Quietus, traz esse reconhecimento além da Margem Sul do Tejo.
A edição deste ano é a mais ambiciosa até hoje, pelo número de dias de festival e pela conjugação dos nomes programados no alinhamento da festa. E também porque se continuam a realizar concertos há muito imaginados. É essa a forte motivação para o arranque ficar por conta d’A Viagem d’Os Heróis Indianos Romanos Africanos [propositadamente sem virgulas]. Eles e elas são e falam-nos dessas gentes, contam com a (neuro)diversidade. Vítor Lopes (OUT.RA) comentava-nos, na curta viagem entre os dois locais de concertos da noite de 2 de Outubro, que trazer esta banda d’Os Heróis ao OUT.FEST era uma ideia de anos. Estes heróis e heroínas fazem parte da Associação Nós, uma IPSS barreirense que desenvolve actividade nos campos da integração e inclusão social com outros habitantes das margens — da diversidade neurológica e do risco social, nas franjas da comunidade. No palco do Auditório Municipal Augusto Cabrita (AMAC) estão todas e todos eles — de que se faz relevo individual — Matilde, Acácio Fernandes, Alan Courtis, Ana Patrícia Miguel, André Neves, Bernardo Alvares, Catarina Camilo, Cláudia Maria, Daniel Simões David Rodrigues, Flávio Lourenço Humberto Fortes, José Boga, Leo Bindilatti, Luís Filipe, Maria Helena, Mário Penas, Paulo Graça, Paulo Silva, Renildo da Mata, Francisco Ricardo Marreiros, Samuel Encarnação, Sandro Ralho, Sílvia Mocinho, Rita S, Tânia Santos e Vladir Gloria.
O espectáculo de abertura no AMAC — com a Viagem d’Os Heróis — é feito de oito temas-paragens, dispostas a fazer-nos chegar a um outro lugar, ao sítio do maravilhamento da (neuro)diversidade. É como escutar a arte bruta, na vez de a ver pendurada em paredes ou sobre plintos em exposições. Partida com “Jardins Zoológicos Proíbidos”, e do trio vocal, embalado pelos ritmos sincopados, ouve-se um poema em marcha que nomeia os animais que vão saindo deste imaginário — como dum pote sem tampa. Depois houve um dos momentos maiores de intensidade através da voz hipnótica e tântrica, num contínuo vocal de Ticha em “Templo de Delfos da Escola Secundária da Moita”. Pese embora o abstracto e desconhecido, Bernardo refere na folha de sala que “esta canção representa algo de muito concreto para o Sandro, […] uma representação óbvia da Escola Secundária da Moita”. Há uma paragem em “24oirto” que se escuta como uma reinvenção de “cante alentejano, que vai do Ribatejo a Trás-os-Montes, sendo o Minho” mas que para Renildo é resumido como “Hrpatridogasiaolorodldorohop”, isto sobre tapetes sonoros de electrónicas soporíferas. Assim se chega a “África” para uma rapsódia de polirritmias. Que para Humberto lhe lembra “…batuque funaná”, e para Valdir “…floresta e animais como cão, gato, zebra, girafa, tigre, javali”. Passamos por um fado novo, de outros mentores, acompanhado por um acordeão em vôo picado, e do teclado pontuado de notas e dóceis expressões faciais, levados por um pandeiro de sementes. Alcançamos “Índia” lá para os lados do palco do AMAC com estes heróis e heroínas. “Índia” é “…senhoras com chapéus” para Ricardo, e é “lalalala lalalalala/ lalalalala / lalalalalala” para José Boga. E na razão de Maria Inês: “A Índia é o melhor país do mundo porque é o melhor país do mundo”. Num tema-paragem para voz, dois teclados e shruti-box. A dois temas do fim surge uma versão de “Nikita” renomeada para “Samuelton”, cantada por Samuel que se começa por escutar como “A páti gôta labirou”. Terminam num festim sonoro com “Romana Rock” que leva a derradeiras expulsões vocais livres aos microfones. “Já não há bebés, somos grandes. Gigantes!” finaliza sabiamente Renildo na apresentação do tema na folha de sala. Já antes deste vivido, do cancioneiro alentejano sabíamos que se “Fez sábado quinta-feira / P’ra lá d’Évora três semanas / Estive dez dias num Verão / Nas Américas Romanas.” Há lugares e outros mundos ínfimos neste que vamos habitando juntos.
Em passe rápido — como que por discreta e modesta estratégia — foi lançada a obra gráfica OUT.FEST 20 Anos. Dâmaso, voz no papel de director do festival, refere estar contente com o livro: “Mas aceito que custa a ler, como o usufruir das propostas trazidas ao longo deste anos”. José Mendes enquanto designer gráfico do livro fala de “uma espécie de jam, de experimentação e do brincar; Todos os princípios da paginação estão postos em causa. Usámos AI [Inteligência Artificial] para jogar com as colagens dos cartazes, para que não fossem recriados como eles existiram; É um pastiche de colagens de 20 anos”. A obra feita está aí — 20 edições de OUT.FEST e agora também em livro. Já em banca, desde logo à entrada de cada concerto.
S|A|L|A|6, paredes meias com a Escola de Jazz, é um dos grandes pequenos espaços da Margem Sul para se ouvir música ao vivo. Um clube que volta às funções do jazz nesta primeira noite de festival. No chão de palco, do palco-chão ouve-se a formulada Unity de Rodrigo Amado. Unity que é um conceito amplamente utilizado no jazz. Lembremos as palavras com que o músico Larry Young justificou a escolha de Unity, álbum inscrito nos anais do jazz pela Blue Note em 1966. “Apesar de toda a gente à data ter sido voz individual, todos estão no mesmo estado de espirito. Era evidente desde o principio que tudo se unia”, refere nas liner notes do disco Nat Hentoff as palavras de Young. Esse mesmo princípio se aplica á prática do saxofonista Amado nesta formação. Se por um lado os restantes elementos do quarteto, Rodrigo Pinheiro no piano, Hernâni Faustino no contrabaixo e Gabriel Ferrandini na bateria, formam Red Trio, aqui com Amado na frente (lado-a-lado) são a sua Unity. Amado que teve em Ferrandini por um lado — Motion Trio — e tem em Faustino — com Samuel Gapp (piano) e João Lencastre (bateria) — formações vigorosas. Amado que aqui retoma, com Faustino e Ferrandini, a unidade de força que trabalhou há dez anos com Wire Quartet, onde entrava a guitarra baileyana de Manuel Mota. Aqui está um fundamental Pinheiro no propósito, nas teclas e martelos para outras cordas — as horizontais do piano.
Com a Rodrigo Amado Unity a ter palco para expressar uma identidade colectiva de um jazz cada vez mais identitário da cena local e arredores. Tocam em acústico e sem sobreposições, sem hierarquias, há trios e duos conjugados em alguns dos momentos da suite de improvisação livre que tocaram. O dia que deu lugar a esta noite viveu-se lânguido, trouxe um manto indistinto pela névoa húmida que vinha do estuário e dos céus. Ouvir a progressão da música desta Unity foi retomar esse postal do tempo recente. O tenor de Amado servia-se de embalos confortáveis capazes de acolher com ternura em redor, as teclas desenhavam círculos melódicos ora impressões incisivas de acordes que harmonizavam em abstrações confortantes. E muito do suporte rítmico estava inabalável, como fundação, como cais de palafita que balança seguro. Faustino foi voz comunicante quando empregou arco no rés do chão do braço e Ferrandini ia propulsando em simultâneo com os timbres dos metais que sobrepunha às peles disponíveis. Os crescendos destas quatro excelsas vozes fizeram-se ouvir no tempo e modo como os raios de luz que abriram por onde puderam os céus na tarde. Quando o diálogo parecia querer definir um final, percebeu-se por mais que um par de vezes, que era momento de retomar novo embalo. Foi o que sucedeu quando Ferrandini levou a um novo cenário que Faustino subscreve e desencadeia a unidade dos quatro para integrar as expressões individuais, sem que nisso houvesse individualismo. Foi retemperador e acolhedor, convocando ao ímpeto de cada um sem que isso fosse expresso de viva-voz — é o OUTono em FESTa, no estado emocional pessoal e unitário, a atmosfera do lugar vivido integral com os outros.