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Fotografia: André Delhaye / Fundação de Serralves
Publicado a: 17/03/2025

Metade performance em exposição, metade encenação em concerto.

Osso Exótico em Serralves: ao que soa o enigma do tempo?

Fotografia: André Delhaye / Fundação de Serralves
Publicado a: 17/03/2025

Assistindo à actuação do colectivo Osso Exótico em Serralves no passado sábado, 15 de Março, no ciclo paralelo à exposição “ⒶMO-TE” de Francisco Tropa, a resposta à pergunta-título é ambivalente: “Powwow” numa perspectiva, e “Kalliope” na outra. 

Osso Exótico de regresso à casa pela qual editaram o trabalho Sablier (2010) — o Museu de Serralves — numa edição de grafismo depurado, rodela de vinil prensada num só lado, uma metade A. Registo contando com Manuel Mota (guitarra eléctrica), David Maranha (orgão) e nas várias percussões Patrícia Machás (taça de cobre), André Maranha e Francisco Tropa (areia e garrafa). Neste 2025, precisamente a meio de Março, fizeram-se representar com os mesmos músicos para um concerto performativo, dividido em duas peças. “Powwow”, numa co-produção Appleton no âmbito da exposição “Diante do Tempo” do programa RPAC 2025, e “Kalliope”,  uma estreia absoluta. Justamente chamadas de peças, pois o tempo, desde a criação como colectivo de música em 1989, aproximou Osso Exótico mais ao teatro e a sua música ouve-se como dramaturgias. 

Para “Powwow” instalam-se os músicos como novos elementos expositivos, numa “exposição dentro da exposição” como apresenta em nota explicativa o curador Ricardo Nicolau, desta que é a maior exposição monográfica da obra de Francisco Tropa. Refere Nicolau que os projectos em exposição posicionam “o visitante no centro de uma experiência da qual é o verdadeiro protagonista”. Estamos no projecto “O Enigma de RM”, nós e os músicos, com papeis na acção. RM aqui alude aos Ready-Mades de Marcel Duchamps. Não era preciso lembrar a cabal importância desse urinol invertido transposto para um novo campo de existência, uma fonte de ideias — mas aqui fica. Duchamps é fonte influente na obra de Tropa, e neste enigma de Tropa valem as linguagens múltiplas partindo da disposição dos objectos, convocando o sempre desejado espaço de intervenção. Três dos músicos de Osso Exótico ocupam-se do elemento central do projecto — Fountain, que é aqui e de performance em diante uma escultura e fonte de percussão. André, Patrícia e Francisco fazem soar a subtileza do metal, luzem as três peças de bronze suspensas. Soa o toque ao quebrar de regra: não tocar nos objectos expostos. Esculturas como num fumeiro imaginado, mas em consumação, habitadas pela curiosidade, onde já mostra o osso nas partes. Os restantes músicos do colectivo, David e Manuel, centram-se em emanações sonoras depuradas dos seus instrumentos, orgão e guitarra, respectivamente electrificados. São murmúrios, sussurros entre as partes em diálogo, onde cambem os pulsares das luzes das étoiles, as placas escultóricas como muros de pedra, que remetem para a transposição do espaço, o saltar dos limites definidos. E no meio de nós, músicos e visitantes, as oito cimaises, abertas às mais variadas interpretações. “A obra é sempre polifónica, está sempre a dizer várias coisas ao mesmo tempo” como escreve o curador. E esta interferência chamada “Powwow” acentua-lhe esse carácter, é desde logo onomatopeia, traz-lhe sons, múltiplos. É uma peça sonora pensada em lentidão, sorvendo o momento e o espaço, imprimindo-se do tempo, como dum tiquetaque irregular. Quatro pontos de fuga, com as projecções de parede da aura translúcida das lâminas de ágatas, como fugacidades cristalinas. Até que surge uma rompante launeddas, esse duplo lamelofone de cana, intrigante no som e que começa a avisar que tudo, mesmo esta saborosa lentidão, encontrará um final. 

Passamos à outra metade deste todo. Em contexto de Auditório do Museu, assomam-se ao palco os cinco músicos de Osso Exótico para a estreia de “Kalliope”. Peça para três guitarras eléctricas, uma panela de pressão e uma bicicleta de amolador. A cenografia denota contactos directos a outro fundamental projecto em exposição de Tropa — “O Transe do Ciclista”. Que forma parte, como um dos capítulos, do projecto “A Assembleia de Euclides”. Nesse transe há um ponto de partida para a acção, precisamente na bicicleta estática, tornada elemento máquina, produtora de imagens. É mais uma referência à icnografia de Duchamps, como se víssemos a “Roue de bicyclette”, a de 1913 deste, naquela montada em palco por Tropa. Só há uma roda montada, veja-se. Também vemos, e uma vez montada pelo agora ciclista André Maranha, um amolador — activada no pedalar a roda de esmeril com assento no quadro. Voltamos, nos instantes da memória, à bela imagem em movimento de Sicilia!, filmada pela dupla Straub-Huillet. Quando o amolador, apeado da sua bicicleta estacionária com roda de esmeril, cativa com o seu discurso o viajante protagonista, num ofício secular. Na exposição “ⒶMO-TE”, a bicicleta de Tropa traz um ciclista que procura o transe em 11 minutos. Isto visto uma das activações da obra, que podem ser assistidas em tempos programados da exposição. Mas de volta à bicicleta de palco que começa a produzir som: o raiar da roda ao toque de vareta. Uma escultura em movimento e que cria uma imagem do som, como num animatógrafo accionado. Uma projecção acústica que fica por diante do biombo com escotilha de navio, feito oráculo ou lente obturada. Vemos nesse através uma cena do descascar de batatas, que uma a uma vão para a panela. Tropa é actor do tempo, o que leva à cozedura do alimento. Os restantes elementos de Osso Exótico — Patrícia, David e Manuel — estão de volta das cordas das guitarras e completam a mise-en-scène. Dedilhares que tecem o tempo, que nos prolongam o momento, que dão o embalo certeiro para o aguçar do fio de cada lâmina da tesoura nas mãos do amolador/ciclista.

A concreta resolução dos enigmas encontra-se na experiência das suas vivências. Estávamos avisados que uma vez no centro da acção haveríamos de ser protagonistas, como testemunhas, elementos chave. Há uma carga metafórica invariável neste quadro dramático com “Kalliope”, o que se constrói e encena é uma utopia do real. Um paradigma entre o sonho e a realidade que procura o agrimensurar das coisas. No soar cadente dum apito de panela de pressão, ouvimos o tempo a passar até ao momento da libertação. Manifestação que joga na ambiguidade: exsuda o que o tempo contém sob pressão, no sublimar do vivido; e liberta e contamina, na exteriorização do conteúdo que se vai cozinhando com o tempo. Por outro lado, entre o que se vê e ouve, e o que se intui e alude, nesta “Kalliope” aponta-se ao tempo futuro, pela forma de preparação — entre o som e imagem do afiar das lâminas e o que ferve ao lume. Leva certo tempo, o tempo necessário, mas torna inevitável o acontecer — se for amanhã, ainda é connosco.


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