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Ilustração: Riça
Publicado a: 05/09/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #36a: Folclore Impressionista

Ilustração: Riça
Publicado a: 05/09/2020

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Folclore Impressionista] A New Sensation: Music For Television / Russian Library

Pense-se num certo passado. Década de 70 do século anterior, por exemplo: ameaça global de confronto nuclear a impor um estranho véu de medo sobre a civilização ocidental; violência perpetrada por organizações com nomes exóticos – Baader Meinhof, Brigadas Vermelhas, ETA, IRA; guerras coloniais; arquitectura brutalista a servir o crescimento das cidades com o betão cinzento a contrastar de forma ainda mais dramática com os tons vivos do campo e da natureza; e uma revolução, claro, que colocou carros de combate nas ruas e flores vermelhas em canos de armas, que espalhou uma nova realidade gráfica nos muros das cidades e que deu um novo alento a uma geração que era cinzenta. E depois, especialmente para quem então dava os passos que conduziriam à adolescência, um universo muito particular de fantasia alimentado pela televisão: animação psicadélica criada do lado de lá da cortina de ferro; séries sobre a natureza que exploravam todo o esplendor do fundo dos oceanos, do alto das cordilheiras, das selvas distantes; séries sobre os mistérios insondáveis do espaço; séries sobre os mistérios insondáveis da Terra; documentários sobre a Indústria; e incríveis pedaços de ficção juvenil por vezes tão escapista quanto exótica. Por oposição, o mundo actual parece monocromático: a pandemia global e o incessante ruído mediático que a amplifica quase não liberta espaço emocional ou intelectual para explorar outras realidades porque mais nenhuma parece, por agora, existir. E as intolerâncias que julgávamos extintas desde que as flores tinham sido colocadas nas G3 a renascerem, mais perigosas do que nunca…

Compreende-se, assim, o breve manifesto que suporta A New Sensation: Music For Television, o primeiro álbum dos Folclore Impressionista para a Russian Library. “Uma colecção caleidoscópica de melodias estranhamente familiares para televisão que permitem sonhar e aceder ao Exterior, como um acto de deleite, mas também de resistência à insipidez da realidade mundana”. O projecto que harmoniza os talentos de João Paulo Daniel, António Caramelo e Sérgio Silva tem-se afirmado como um dos pilares locais da hauntologia, paralelamente aos Beautify Junkyards, mas seguindo numa direcção musical bem distinta da do grupo que nos revelou um mundo invisível. Depois dos dois volumes de Campos Espectrais e da criação do selo Russian Library, que começou por lançar uma série de singles assinados por nomes como Osso Exótico, Ondness, Diana Policarpo & Afonso Simões, Listening Center e Pulselovers ou, pois claro, Folclore Impressionista, eis que agora chega um álbum preenchido de canções imaginárias.

E que “propósitos” servem estas “canções imaginárias”? Bem, se estivéssemos em 1979 ou até 1983 talvez soassem ideais para a abertura de telejornais (“A New Sensation”, “Seeing Through”, “Week in Review”); para documentários sobre o futuro (“From A to B”), sobre a Indústria (“The Illusion of Freedom”), sobre a pastoral bonomia dos dias no campo (“School Days”), sobre… espeleologia até (“Outside World”); para séries de ficção sobre aventuras na grande cidade (“Shadow and Dark”, “Domestic Life”), sobre cientistas que buscam novos mundos (“Time Travel”), sobre miúdos que vivem estranhas aventuras (“School Days reprise I & II”), sobre uma colónia humana estabelecida noutro planeta (“Revelation I & II”) ou, enfim, sobre um jornalista que a partir de prédios altos embrulhados em vidro investiga as tramas que rodeiam as sociedades modernas, fantasticamente vestido naquelas camisas com golas como as asas do Concorde (“Sound and Vision”).

Esteticamente, isso significa muitos sons sintetizados com uma específica patine aural, não se sentindo por aqui uma única centelha digital, com a “personalidade” tímbrica e harmónica de todos estes sons a ostentar uma “qualidade” decididamente analógica, ainda que isso possa, obviamente, não ser o caso: a ausência de uma ficha técnica detalhada não nos garante que só tenham sido usados sintetizadores e caixas de ritmos com mais de 40 anos e é até bem possível que boa parte dos sons aqui presentes resultem de emuladores virtuais, mas isso não retira qualquer validade ao nítido esforço de harmonizar a “identidade cromática” desta música com uma certa ideia de passado, aquela que aponta para uma era de intrépidos exploradores que em pequenos estúdios caseiros inventavam futuros impossíveis a partir dos primeiros sintetizadores comercialmente acessíveis, caixas de ritmos com padrões previamente programados, processadores de efeitos e gravadores de fita. E, nesse sentido, mas não só, A New Sensation: Music For Television é um claro triunfo porque se liberta do tempo – sai em 2020, mas bem podia ser um registo perdido criado, como já sugerido, em 1979, 1983 ou até 1995 ou 2004…

Claro que há por aqui fortes pontos de contacto com a estética hauntológica defendida pela Ghost Box, tanto musical como graficamente (fantástico o design da capa a cargo de João Paulo Daniel, a remeter para o fascinante universo visual da Library Music), com ecos nítidos do atento estudo de obras de gente como os Boards of Canada ou Broadcast, mas também se sente em cada volta melódica, nos económicos arranjos ou na selecção de nuances tímbricas um profundo conhecimento do lado mais esotérico da história da música electrónica. E sente-se, igualmente, um profundo respeito pelo poder da memória e pelos efeitos que ela exerce sobre quem procura no passado não o doce veneno de um qualquer saudosismo oco, mas antes o estímulo para recusar o pior que o presente nos impõe a todos. Sobretudo quando esse presente nos procura esmagar sob o peso insustentável da “insipidez da realidade mundana”. É que não se trata de glorificar o passado, antes de fantasiar com o futuro que esse passado imaginava e que, se calhar, a história não cumpriu. Quando é que, afinal de contas, se estabelece a primeira colónia na Lua? Quando é que estará pronta a primeira base humana em Marte? Não foi isso que nos prometeram há mais de 50 anos?

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