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Texto: Vítor Rua
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 17/02/2025

Uma viagem pela identidade sonora de um criador indisciplinado.

O Arco e a Matéria Sonora: A Cartografia Musical de José Valente

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 17/02/2025

[O Músico e a Forma Inacabada]

A música nasce de um gesto, de um corpo que se move sobre a matéria vibrante. O som, antes de existir como discurso, é resistência, tensão, um embate entre força e possibilidade. José Valente inscreve-se nesta tradição do som como corpo e matéria, onde a música não se limita a ser veículo de expressão, mas também lugar de investigação.

A sua trajectória não pode ser reduzida a um percurso linear. Há um caminho traçado, mas ele é feito de desvios, de retornos e de novas explorações. Há um eixo que percorre o seu trabalho: a viola d’arco, que no seu gesto se torna voz, percussão, respiração, espaço. No entanto, reduzir José Valente à sua relação com o instrumento seria insuficiente. O seu trabalho expande-se para além da técnica instrumental, cruzando linguagens musicais e dialéticas culturais, sempre com uma procura incessante por novos paradigmas sonoros.

Os seus primeiros anos musicais foram marcados pela aprendizagem da viola d’arco no contexto do ensino formal. No entanto, cedo se afastou da lógica tradicional do repertório clássico, procurando na improvisação, na experimentação e no cruzamento de géneros um território próprio. A sua passagem por Nova Iorque consolidou essa abertura, colocando-o em diálogo com universos musicais diversos, desde a música erudita contemporânea ao jazz e à improvisação livre.

Este contacto com diferentes formas de criação sonora não significou um abandono da tradição, mas antes uma reconfiguração da mesma. O que caracteriza a música de José Valente é a capacidade de interrogar o cânone sem o negar, de desmontar a forma sem a desintegrar. Cada peça sua, cada projecto em que se envolve, carrega esta tensão: entre o que se conhece e o que ainda não foi escutado.

[A Viola como Espaço de Resistência]

A viola d’arco tem sido, historicamente, um instrumento de fronteira. Sempre presente, mas raramente protagonista, situando-se entre o violino e o violoncelo, o seu espaço na tradição ocidental é frequentemente o de mediação. Mas em José Valente, a viola torna-se um campo de experimentação sonora e conceptual.

Se olharmos para o seu percurso discográfico, percebemos esta lógica de exploração do instrumento não apenas como um meio, mas como um fim em si mesmo. Em Serpente Infinita, a viola d’arco não se limita a ser veículo de composição: ela é matéria viva, corpo sonoro em mutação constante. A exploração tímbrica, a utilização de técnicas expandidas e a manipulação electrónica conferem ao instrumento uma dimensão nova, onde a identidade da viola não é fixa, mas móvel.

Este processo continua em Trégua, um álbum que rompe com a tradição da escrita para viola a solo ao colocá-la em diálogo com uma banda filarmónica. O resultado não é uma simples sobreposição de linguagens, mas sim uma fusão orgânica, onde a orquestra de sopros não é mero acompanhamento, mas sim extensão da voz da viola. Há um gesto político nesta escolha: o encontro entre um instrumento historicamente associado à elite erudita e um colectivo que representa uma tradição popular e comunitária. A obra torna-se assim um espaço de negociação entre diferentes territórios musicais, recusando qualquer hierarquia entre eles.

Este mesmo impulso está presente em “Sibila Bilingue”, projecto que nasce do encontro entre músicos migrantes e uma orquestra institucional. Aqui, a música não é apenas um exercício estético, mas um espaço de construção de identidade colectiva. O diálogo entre as linguagens musicais dos intérpretes e a estrutura orquestral cria um espaço de mestiçagem sonora, onde as fronteiras entre tradição e contemporaneidade, entre erudição e oralidade, se desvanecem.

[Entre o Som e a Palavra]

O trabalho de José Valente não se limita à música enquanto fenómeno sonoro. O seu interesse pela palavra e pelo discurso insere-se numa tradição que vê a música como um espaço de pensamento, como um lugar de articulação de ideias e discursos.

Isto é evidente em colaborações como “Trabalho, Palavra, Som e Preguiça”, um projecto concebido com Gonçalo M. Tavares e Paulo Mendes. Aqui, a relação entre som e palavra não é ilustrativa nem decorativa: ela é estrutural. A música não acompanha o texto, nem o texto é mero suporte para a música; há antes um processo de interpenetração entre ambas as linguagens, onde a palavra se torna som e o som se torna discurso.

Esta aproximação à palavra reflecte-se também na sua forma de conceber os títulos das suas obras. Quem é o José Valente, título do seu mais recente álbum, não é uma pergunta retórica. É uma questão fundamental que percorre todo o seu trabalho. A interrogação sobre a identidade – do músico, do instrumento, da própria música – está sempre presente. Este questionamento contínuo é o que impede que a sua obra se cristalize numa fórmula ou estilo fixo.

[A Escuta como Acto Político]

Ouvir José Valente não é um acto passivo. A sua música exige escuta activa, envolvimento, participação. A construção das suas peças, frequentemente marcada pela alternância entre tensão e libertação, leva o ouvinte a um estado de permanente atenção.

Isto é evidente na sua escrita para viola solo, onde a exploração das dinâmicas, do silêncio e do espaço sonoro cria um ambiente de constante deslocação. Mas também nos seus projectos colectivos, onde a relação entre os diferentes elementos nunca é óbvia ou hierárquica. Em Águas Paradas Não Movem Moinhos, concebido para um sexteto de violas, esta ideia de escuta activa é levada ao limite: a escrita fragmentada, a sobreposição de camadas tímbricas e o jogo de alternância entre solistas e colectivo tornam a experiência auditiva um processo de descoberta contínua.

O seu percurso é marcado por um compromisso com a experimentação, mas também com a partilha. O facto de muitos dos seus projectos envolverem colaborações com músicos de diferentes formações e origens reflecte uma visão da música como espaço de encontro e troca.

A música de José Valente não procura respostas definitivas. Ela existe na forma de pergunta, na busca pelo que ainda não foi dito. E é nesse espaço de interrogação que reside a sua força.

[O Futuro da Matéria Sonora]

A trajectória de José Valente está longe de estar concluída. Cada novo trabalho representa uma abertura para novos territórios, novas possibilidades. A viola d’arco, que um dia foi apenas um instrumento de acompanhamento, tornou-se nas suas mãos um território de pesquisa, uma extensão do pensamento e do gesto.

O que virá depois? A resposta nunca será definitiva, porque o seu percurso é feito de movimento, de deslocação, de procura incessante. O que se pode afirmar é que a sua música continuará a desafiar convenções, a desarrumar categorias, a criar novos espaços para a escuta e para a experimentação.

Porque a matéria sonora nunca está terminada. E José Valente continua a moldá-la, a dobrá-la, a fazê-la vibrar em frequências ainda desconhecidas.



O Som que se Desfaz em Mil Nomes: Música como espelho, sombra e gesto por dentro de Quem é o José Valente

[O Nome como Início]

Todo o nome é uma promessa. Inscreve-se num corpo, marca um percurso, delimita um espaço. Mas um nome também é uma interrogação. Quem é aquele que o carrega? Quem se torna através dele? Pode um nome conter todas as suas possibilidades?

José Valente questiona o seu. Não como quem duvida, mas como quem reconhece que um nome nunca é definitivo. Ele dobra-se sobre si mesmo, espelha-se em múltiplas versões, ecoa noutras vozes. Quem é o José Valente não é um álbum que responde. É um álbum que pergunta. É um lugar de procura e de escuta, um mapa traçado por cordas, por ecos, por memórias que se entrelaçam no som.

Gravado no espaço mais íntimo — a sua casa, o seu laboratório sonoro — este álbum é uma incursão para dentro. Mas entrar dentro de si não significa fechar-se. Pelo contrário, neste disco, o dentro expande-se, torna-se o mundo. Nele coexistem os sons de Frank Zappa e de José Mário Branco, de Beethoven e de Fela Kuti, de Carlos Paredes e de Shostakovich. Nomes que não são referências distantes, mas presenças vivas, espectros sonoros que habitam a música como uma conversa ininterrupta.

Junta-se a eles uma constelação de músicos que, com os seus instrumentos, acrescentam novos contornos a esta geografia. A voz de Patrícia Costa, o berimbau de Luís Bittencourt, a viola braguesa de João Diogo Leitão, o violoncelo e o baixo eléctrico de João Geraldo, as percussões de José Silva e Tiago Manuel Soares. A cada som que se junta, o nome “José Valente” desdobra-se, multiplica-se, resiste à fixação.

[“Deve Ser um Artista Qualquer” – O Nome em Reflexo]

A viagem começa na dúvida. Quem é o José Valente pode ser uma pergunta individual, mas rapidamente se torna colectiva. Seria possível traçar uma linha única que definisse o percurso de um músico que se move entre estilos, entre tradições, entre formas de fazer som?

O primeiro tema, “Deve Ser um Artista Qualquer”, propõe-se a explorar essa ideia de identidade mutável. O nome José Valente aparece como um reflexo, repetido em ecos, confundido entre outras histórias, outros músicos, outras possibilidades. Há um José Valente acordeonista. Há um José Ángel Valente poeta galego. Há tantos nomes possíveis dentro de um nome. A música é um jogo de permutas, uma construção onde o nome nunca se fixa, onde a identidade não é estanque, mas fluida.

[“Uma Agulha num Palheiro” – O Corpo que Dança]

Se a identidade de José Valente é plural, ela também tem raízes profundas. E uma das raízes mais visíveis neste álbum é a influência da música africana.

“Uma Agulha num Palheiro” abre-se em pulsação, numa energia que vem de longe, mas que se torna presente no corpo que escuta. O afrobeat, marcado pela revolução rítmica de Fela Kuti, encontra-se aqui com a tradição erudita da viola d’arco. O resultado não é apenas fusão, mas sim diálogo. A música não se dissolve num só gesto — ela constrói-se na tensão entre movimentos diferentes, entre danças que se encontram sem perder a sua singularidade.

A viola d’arco, frequentemente confinada à tradição europeia, aqui liberta-se, reencontra outras possibilidades, torna-se ritmo e percussão, torna-se um instrumento de corpo.

[“Circo” – O Gesto e o Espaço]

Se há um elemento central na música de José Valente, é o gesto. A maneira como a mão percorre o arco, a forma como o som se articula no espaço, como se dobra sobre si mesmo.

“Circo” nasceu para um espectáculo e, como todo o espectáculo, foi-se transformando com o tempo. A música nunca é a mesma a cada interpretação. Há um jogo, uma elasticidade, uma maleabilidade no modo como a viola d’arco se torna múltipla.

Neste tema, há equilíbrio e desequilíbrio, movimento e suspensão. Como num circo, tudo se organiza em tensão – um fio invisível que sustenta o peso do som no ar.

[“Novo Álbum?” – A Pergunta Dentro da Pergunta]

A dúvida persiste. O que é um álbum? O que significa criar algo novo? Em “Novo Álbum?”, José Valente questiona a lógica da originalidade e a estrutura do meio artístico. A sua viola transforma-se em discurso, em ironia, em análise de uma realidade onde a arte oscila entre autenticidade e convenção.

A música torna-se aqui crítica e sátira. O meio cultural, frequentemente fechado sobre si mesmo, revela-se como uma rede de discursos autoalimentados, uma estrutura de poder que muitas vezes se confunde com um jogo de aparências.

No final, porém, a resposta encontra-se na própria música. Porque independentemente do sistema que a rodeia, a música continua a ser a linguagem mais essencial, o espaço onde a verdade ainda pode existir sem mediações.

[“Chuva para Naná” – A Água e o Ritmo]

O som pode conter a memória de um lugar. E há lugares que se constroem na escuta colectiva. “Chuva para Naná” nasce dessa ideia. Inspirado no exercício que Naná Vasconcelos propunha ao público para recriar o som da floresta amazónica, este tema é um tributo ao grande músico brasileiro.

Mas não se trata apenas de uma homenagem. É um reencontro. A chuva, o ritmo, a pulsação do Amazonas tornam-se presentes neste espaço sonoro. A voz da viola não é solitária — ela dialoga com outras vozes, com os sons do berimbau, com as ressonâncias de uma tradição que atravessa oceanos.

[“Minha Mãe” – O Som como Memória]

Há sons que nos ligam à infância, à casa, àquilo que nos formou. “Minha Mãe” é um desses sons. É uma melodia que nos transporta para um tempo em que tudo era mais próximo, mais táctil, mais seguro.

Este tema percorreu várias versões antes de chegar a este disco. Foi-se transformando, como todas as memórias se transformam. Mas há algo que permanece: a ternura, a proximidade, a relação entre som e palavra.

A letra — “meu filho és tão bonito / nunca te esqueças / sê generoso / o respeito, a tua arma / a liberdade, a tua força” — inscreve na música aquilo que os sons por si só talvez já dissessem. Porque no fundo, a música de José Valente é também isso: um espaço onde os afectos podem ser inscritos, onde a escuta é um acto de ligação.

[O Nome que Continua]

Quem é o José Valente é um álbum que não responde. Ele multiplica, questiona, expande. É um espaço de escuta, mas também um espaço de procura.

A música, aqui, não se limita a ser um objecto fechado. Ela é movimento, é cartografia em transformação. Cada nota aponta para algo mais, cada tema se desdobra em possibilidades.

E se a pergunta “Quem é o José Valente?” continua aberta, talvez a única resposta possível esteja naquilo que sempre permaneceu: a escuta, o gesto, o som que ainda não foi ouvido.


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