A tranquilidade faz parte do jeito de ser de Nyron Higor. Essa calma reflete tanto na música que faz quanto na maneira que fala, sempre de forma pausada. Pela Far Out Recordings, da Inglaterra, ele deu a conhecer ao mundo o seu homónimo segundo álbum no final de janeiro. Nele, Nyron coloca o ouvinte em diferentes ambientes sonoros. Por isso, é até difícil definir que tipo de música faz. Podemos considerar que é jazz, mas também música do Nordeste brasileiro temperada com elementos eletrônicos, guiados pelo violão. O próprio cantor, compositor e multi-instrumentista assina a produção ao lado de Bruno Berle e Batata Boy, tendo como convidados João Menezes, Nathália Grilo, Paulo Novaes e Alice Sol.
Em entrevista ao Rimas e Batidas, Nyron Higor explica sua trajetória, desde a igreja até à entrada no elenco de um selo internacional, e fala sobre o processo criativo do disco que decorreu no estúdio da sua casa. No final de abril, ele acompanha Berle em concertos pela Europa, onde também fará suas próprias apresentações. É um artista que merece toda a atenção.
Como você começou a enveredar pelo caminho da música? Já era uma coisa de família?
Exatamente! Minha família tem essa prática bem um pouco de antes também. Meus pais, quando mais novos, tiveram contato com a música através dos meus avós, e é meio que isso foi passando, sabe?Meu avô é maestro de igreja, de coral. Meu pai também toca, meu tio toca contrabaixo também. E eu cresci nesse meio musical familiar, dentro de igreja, em que existe esse engajamento e incentivo para poder aprender de fato um instrumento de verdade para tocar mesmo. Eu via meus avós e meus tios sendo bem virtuosos no que escolhiam e acabou que eu fui junto também. E aí, em determinado momento, aos 7 anos de idade, meu pai me deu um violão de presente, de nylon. Mas antes disso eu já tinha pegado uns baldes da minha mãe e já ficava acompanhando os discos — montava minha percussão com baldes no canto. Depois que meu pai me deu um violão e me ensinou a tocar. E aí, depois de um tempo passei a tocar mesmo e fui meio que pegando os outros instrumentos, porque tinha acesso a uma sala de ensaio da igreja, por exemplo. Tipo, nos dias de culto eu chegava bem mais cedo, chegava no zelador e pedia a chave da sala. Aí ficava lá por horas. Tinha tudo lá: baixo, bateria, guitarra… e aí eu passei a fuçar tudo.
A igreja é um lugar onde se desenvolvem muitos músicos. Os grandes músicos do Brasil aprenderam a tocar na igreja, justamente por conta desse acesso fácil aos instrumentos. Eu também tive essa mesma formação. Toquei bateria por muitos anos, mas faz um tempo que não toco mais. Como que você observa esse acesso que a igreja dá para que pessoas, principalmente da periferia, tenham acesso à música?
É meio que um conservatório empírico, assim. Você vai aprendendo na prática mesmo. A gente ouvia música, queria tocar, ficava tirando sons. Acontece muito isso na igreja.
E quando você decidiu que seria músico profissional?
Acho que isso já era bem claro desde cedo mesmo. Desde essa época aí que eu estava querendo tocar de verdade, assim, sabe? Do balde ao contrabaixo, depois que eu fui aprender e ter acesso ao instrumento… eu já tinha uma certeza assim de que eu queria fazer música. Na verdade, eu não conseguiria viver sem fazer isso, ficaria depressivo, mas no mínimo eu preciso criar coisas, sabe? Mesmo que eu ainda tive um momento que desacreditei por ter medo de seguir como músico. Mas sempre tinha a possibilidade de ter que fazer música, entendeu? Apesar de eu pensar em cursar direito, porque ia me dar uma segurança melhor, fazer música já era uma certeza também. Mas acabou que eu só fiz música mesmo. Terminei o colégio, passei num vestibular de músicas da minha cidade, na Universidade Federal de Alagoas, mas não terminei, porque na época estavam rolando os convites pra tocar na noite, fazer baile, fazer tudo que é coisa, de samba, de axé, de rock internacional… E aí, eu precisava trabalhar e acabou que não consegui mais conciliar a faculdade com o trabalho. Mas, respondendo a sua pergunta, já era uma decisão bem clara. Já queria projetar minha vida pra fazer uma carreira mesmo em algum momento. E poder fazer uma carreira minha.
E quando que vira essa chave de se tornar um músico, tocando nos bares e criando sua própria identidade, tendo o violão como direcional?
O virar de chave tem muito a ver… Já era um desejo antigo, por mais que começasse a trabalhar na noite e nos bailes tocando baixo, com a galera… acho que eu tinha uns 18 anos. E aí, beleza, isso era o que estava rolando de trabalho e eu assim fui. Mas já era um desejo de poder produzir um trabalho, uma obra. Porém eu não tinha os meios, não tinha os acessos, não tinha como pagar diárias de estúdio e os músicos. Até que, em 2020, eu passei no edital da Lei Aldir Blanc, que me ajudou muito — salvou, mudou tudo. Porque aí eu peguei essa grana e investi em estúdio, em equipamento de áudio, que era tudo que faltava pra poder fazer isso. E aí montei meu home studio. E aí veio o meu primeiro disco. Tipo, os dois discos vieram disso. Talvez se eu tivesse os meios antes eu já teria exercido isso mais cedo. E também as ideias. Talvez eu cheguei num lugar de maturidade, quanto à criação, que foi interessante eu ter só começado só agora. Talvez eu tivesse lançado coisas, composições antigas que eu não quero mais no mundo… Mas é isso, a chave vira a partir do momento que eu tenho os meios e posso aplicar. Poder gravar minimamente um fonograma legal, ali com uma placa de áudio, com microfone razoável pelo menos, computador que eu possa editar e tudo, e aí vai se concretizando. E aí, veio o Fio de Lâmina, e agora tá nesse segundo disco que também é fruto desse processo de home studio.
Ambos os discos foram gravados, digamos assim, de forma caseira?
Exato, no meu home studio. O primeiro 100%, o segundo 70%. Porque três músicas foram gravadas em estúdios grandes aqui em São Paulo: “Estou Pensando Em Você”, “Eu Te Amo” e “Me Vestir De Você”. Estúdios gigantescos em que nunca tinha entrado na vida. As outras sete foram todas gravadas lá em Maceió, na minha casa.
Você tem um estilo único, tanto na forma de cantar quanto no instrumental. De que forma essa estética foi desenvolvida?
Cara, eu acho que isso não foi uma coisa literalmente pensada, assim, eu não tinha tipo um objeto de reflexão no qual eu queria chegar naquele objetivo enquanto artista. Não tinha isso definido, tá ligado? Isso foi uma coisa que também foi surgindo do meu experimento ali do estúdio e momentos meus com violão, sozinho. E aí eu tenho preferência em termos de escolha, de harmonias, e aí já se baseando nas coisas que eu vejo e que eu ouço… timbres, preferência de coisas mais doces… E aí eu peguei e foi só atrelar esses meus gostos de timbres e mixagem, harmonia, em termos de criação, e fui tentando entender onde é que eu chegaria. E disso vieram essas composições. Algumas foram um processo bem experimental de criação, sabe? Por exemplo, a “Demo Love” é uma faixa que eu comecei a gravar, boa parte, na real… tipo, eu começava a gravar um take de bateria, mas sabia o que ia virar. Pegava o melhor momento de bateria e fazia overdubs, tentando imaginar uma harmonia e gravar. E ao passo que “Ciranda” já é uma coisa mais pensada. Já foi toda orquestrada e pensada de fato no violão. Eu só entrei no estúdio e realizei as coisas que eu pensei. Mas assim, a minha sonoridade não foi uma coisa pensada não. Eu acho que a espontaneidade tem a ver com isso, tipo, a minha expressão acaba se tornando uma unidade também, mas não foi nada tão pensado. Só tem a ver com os gostos também. Também tem a ver com os gostos do Bruno Berle, do João Menezes… é como se as músicas do João também fossem minhas. É como se a gente se entendesse em termos de gosto e preferência, sabe? Por isso é que existe esse núcleo em que a gente se identifica tanto: eu, o Bruno, o Batata, o João, a Marina, etc. Acho que não foi uma coisa pensada, sabe?
É algo que surge mais de uma forma natural, né? Você vai desenvolvendo e a coisa vai fluindo. Mas tinha uma referência de artista que você se espelha ou sempre se espelhou e queria seguir um direcionamento? Ou foi mais natural mesmo?
Eu acredito que foi natural. Fiquei pensando agora: por exemplo, você falou do estilo, e eu não sei também o que vai ser de mim daqui a um tempo, né? Tipo, eu posso fazer um disco totalmente diferente do que eu fiz com esses dois, por exemplo, sabe? É muito de viver mesmo, tentar entender e compor. Eu acho que vou sempre levando em consideração a beleza como prioridade. É isso que importa.
E os dois discos são diferentes, mas seguem uma linha bem parecida. Eles se complementam, digamos assim. Cada um tem sua estética, mas eles mostram a sua personalidade em diversas formas e também tem uma pluralidade nas ideias. Isso também é interessante. Não segue apenas uma linha. Tem algumas linhas e várias texturas.
Super, demais. Tem de tudo. E ultimamente, por exemplo, estou viajando muito na música eletrônica, pirando muito nisso. Estou querendo encontrar um teclado legal. Porque aqui eu não estou tendo o que eu tinha em Maceió. Por exemplo, o estúdio disponível a todo momento. Lá, eu vivia, acordava e dormia no estúdio. Aqui são mais por temporadas as coisas. Os trampos são bem mais definidos: “Ah, você vai trampar no estúdio, então você vai trampar no estúdio, o aluguel vai ser de tal dia a tal dia, e aí você tem que se organizar para poder entregar o trabalho”. Aqui em São Paulo as coisas são bem mais rápidas.
Mas como foi esse processo de construção do segundo álbum? Você já tinha se programado para fazer com as ideias prontas para gravar? Ou foi surgindo?
Algumas músicas eram composições já feitas e foram reproduzidas no estúdio. Outras também fazem parte do mesmo bolo de música da mesma época do primeiro disco. “Louro Cantador” e “Demo Love” são faixas bem antigas, umas das primeiras que eu registrei depois de eu ter criado o meu home studio em casa. E ele foi surgindo disso, um compilado de músicas dessa época de home studio, e também composições de João Menezes com Rubens. E o contexto foi tomando forma assim, principalmente pela produção de Bruno. Depois que ele e Batata chegaram, as coisas foram se moldando de uma forma mais concreta. O disco foi ficando mais robusto, foram tendo ideias de participações. As próprias composições, as três que faltavam, foram ideias de Bruno e Batata. Eu não conhecia algumas músicas, como “Estou Pensando Em Você” e “Me Vestir De Você”. Bruno que me mostrou e tal. Foram composições feitas aqui em São Paulo, nesse processo do João também, dele ter encontrado as pessoas aqui, e aí acabou compondo essas músicas e elas entraram no disco. E aí o álbum foi tomando essa forma. Eu tinha uma foto com o Claudio Virginio, que é também um fotógrafo alagoano, que a tinha tirado em 2021, mais ou menos. E aí mostrei pra Bruno, tinha a contracapa também… e aí o disco foi ficando pronto.
E como foi essa conexão com o Bruno, com o João, com o Batata Boy, com toda essa galera que entrou no disco e colaborou? Vocês já tinham contato antes ou foi surgindo ao longo desse processo?
Não, a gente se conhecia assim. Somos conterrâneos. Batata era meu vizinho. Eu conheci o Bruno primeiro antes de todo mundo. Tipo, a gente era amigo, de rolê mesmo. Vivia junto na cidade, dava rolê junto. Se via, tomava cerveja. Assim como é aqui também. Eu conheci Bruno em 2018. Já sabia do Batata, mas ainda não tinha encontrado. Conheci ele em 2020, eu acho, coisa assim, na pandemia. O João também nessa mesma época. Enfim, todo mundo é do mesmo circulo. A gente é do mesmo lugar, do Maceió. E aí fomos nos mudando aos poucos. Eu acho que tá todo mundo aqui… Na real, não tá. Falta o Felipe Nunes que também é um compositor de Pernambuco. Da gente, da nossa turma. Tem músicas dele no disco do Bruno. Vai lançar um disco impecável agora também pela Far Out Recordings, incrível. E aí meio que a gente tá migrando pra cá.
E esse contato com a Far Out, como que rolou essa conexão para fazer o disco sair lá fora?
Tem um cara chamado Wilson Santos, alagoano, percussionista, um mestre na percussão, de lá da cidade, que tem um disco chamado Bantus e Caetés, se eu não me engano, da Orquestra de Tambores de Alagoas, que é um grupo que ele criou. E esse disco muito foda foi lançado pela Far Out na época, em 2010. E aí, em 2020, o Bruno estava com o disco No Reino dos Afetos pronto pra querer lançar e escrevendo para os selos buscando isso. Aí ele teve uma conversa com o Wilson que contou tudo a ele, e disse a possibilidade de que poderia apresentá-lo para galera lá, e assim foi feito. Eles enviaram o álbum, e os caras piraram muito, gostaram do trabalho. Desse jeito a ponte foi sendo criada. É um selo que pesquisa muito a vanguarda brasileira e está muito atento a isso, assim como na Ásia também. A galera é muito interessada, sabe?
É um selo que também tem descoberto, vamos dizer entre aspas, que tem aberto a porta para outros grandes músicos brasileiros que ainda eram desconhecidos, como por exemplo, o Amaro Freitas, que conseguiu uma grande visibilidade lá fora, e até o Bruno também e vários outros artistas. Nessa vanguarda da música brasileira também tem se aberto várias possibilidades para estender um pouco o raio de extensão, de chegada, muito para além do Brasil. E tem uma nova galera, como você e vários outros artistas, dessa nova MPB. Não sei se MPB ou nova MPB é um título interessante, mas tem surgido uma galera moderna, trazendo uma outra sonoridade brasileira. Que tipo de música você considera que você faz? Ou você acha que não cabe numa caixinha ali pra colocar o seu tipo de música?
Ah, acho que primeiramente eu sou de Alagoas e acho que entre esses gêneros aí tem que ter música nordestina de fato, porque é o jeito que a gente pensa, é o jeito nordestino, da música alagoana, do coco. Por mais que não esteja explícito assim de uma forma clara na textura da música nordestina, mas tá ali na mão direita do violão, na hora de compor. Está ali com o frevo na cabeça na hora de criar um ritmo. Tipo o “Ciranda”, foi isso: eu quero compor um frevo, quero fazer uma ciranda, quero fazer uma coisa, sabe? E eu acho que antes de tudo é música nordestina brasileira, de fato. Mas também é world music, música global, é música eletrônica, é tudo.
Não há uma definição exata. São várias coisas que se misturam e criam uma estética ou uma textura que é diversa, que também mostra a riqueza da nossa música. Às vezes, querem colocar música brasileira apenas numa caixinha, onde os gêneros mais tradicionais ganham evidência, e a gente esquece da riqueza dos ritmos regionais… O país é gigantesco, né? Então a gente foca em apenas alguns gêneros que são mais mercadológicos e esquece que tem uma gama de outros gêneros que são tão ricos quanto eles, mas nós mesmos brasileiros não valorizamos. Às vezes precisa ser relevante lá fora primeiro para depois valorizarmos.
Super, velho. Assim, até nos elementos tradicionais, vixe Maria, é muita coisa. Muita coisa. E com a contemporaneidade, mais ainda. Tipo, é muito macro a possibilidade de poder criar música.
Eu vejo uma proximidade da sua música com a do Amaro Freitas, trazem esses elementos da música nordestina, mas de uma outra forma, com uma outra roupagem. O DNA sempre está ali, mas soa quase que imperceptível. Como se faz isso sem deixar tão explícito?
Cara, eu vejo muito o Bruno, eu observo o violão, a forma como o Bruno faz canção. E aí, ele te mostra uma canção pronta… É o que eu tinha dito: ele faz um ritmo na mão direita, e aí eu não associo que é o coco, mas de fato é o coco. É tipo isso. Basicamente, até a forma dele escrever… O jeito que as referências que os meninos têm na escrita geral, do jeito nordestino de escrever, de falar, por mais que também existam outros exemplos, como a “Dizer Adeus”, que é uma música super eletrônica de Bruno, ou “São Só Palavras” também, que é uma música eletrônica um pouco mais orgânica. Mas os elementos da música nordestina e da nossa raiz estão sempre ali. Não quero generalizar também, mas parando para pensar agora… eu posso querer fazer uma coisa que não é nordestina, de fato, assim. Ou que só tenha a ver com o que eu tenho ouvido ultimamente. Tipo, eu acho que esse lance é mais uma questão de afirmação do que propriamente prática de composição, sabe? Porque acaba que tipo… Isso talvez me limite um pouco, de ter que pensar… Por mais que em algum momento eu vá levar a questão da nordestinidade comigo, assim, na hora de compor. Mas o Bruno é um exemplo disso, de como fazer isso, de compor sem deixar explícito. “Ciranda” também é um exemplo de como fazer isso. Na real, é a formação disso, né? Porque é o próprio frevo… Não sei se eu faço isso na prática. Acho que nunca parei pra pensar isso, na real.
É uma boa questão para se pensar.
Super, super. Estou pensando agora, como fazer uma música com a nordestinidade sem deixar isso preso. Muito legal… Mas assim, é mais uma coisa visceral, subjetiva de alma, em termos de pertencimento, do que prática na hora de compor, sabe?
Quais são os seus próximos planos?
Pô, velho, eu quero muito tocar, fazer shows, sabe? Estou na expectativa também de poder ir para a Europa, principalmente para fazer o show de Bruno. Consegui marcar alguns shows lá por enquanto. Mas vai ser do caramba poder ir para lá, sabe? Mas estamos vendo isso aí. Essa jornada começa no final de abril. Eu quero basicamente isso: fazer show, marcar show, realizar as coisas, gravar. Meus planos basicamente são esses.