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Ilustração: Riça
Publicado a: 23/12/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #40: Sarathy Korwar & Upaj Collective

Ilustração: Riça
Publicado a: 23/12/2020

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Sarathy Korwar & Upaj Collective] Night Dreamer Direct to Disc Sessions / Night Dreamer

Grande ano este, o que a britânica Night Dreamer protagonizou ao lançar “direct to disc sessions” de uma bem alargada panóplia de artistas, de Seu Jorge a Gary Bartz com Maisha, de Emma-Jean Thackray a Etuk Ubong e de Mogollar a Sarathy Korwar com os Upaj Collective. Ou seja, um vasto caminho que se alargou do Brasil aos Estados Unidos e Inglaterra, da Nigéria à Turquia e daí à Índia. No ano em que os aviões quase deixaram de cruzar os céus e em que todos permanecemos isolados nos nossos casulos domésticos, a música foi, afinal de contas, o veículo perfeito para nos transportar a imaginação.

Para este álbum, o Upaj Collective assumiu uma mais contida e reduzida formação do que a que conhecíamos do fantástico My East Is Your West, trabalho lançado pela Gearbox em 2018: do dilatado ensemble original são aqui “respescados” Tamar Osborn (a líder de Colluctor) no saxofone, Giuliano Modarelli na guitarra e Alistair MacSween nos teclados; mas na sessão participa ainda o violinista Achuthan Sripathamanathan, novo “recruta” para esta aventura de descoberta que tem como líder da sessão Sarathy Korwar mas que, como o próprio fez questão de frisar na entrevista que concedeu a André Forte, vive de uma democrática e generosa partilha de um mesmo espaço – físico, espiritual, musical e humano.

De facto, o trabalho que o Upaj Collective assinou em 2018 partia de uma homenagem ao ponto de confluência das tradições do jazz e da música clássica indiana, abordando-se aí material elegantemente re-arranjado com autorias do guitarrista indiano Amacio d’Silva, do saxofonista americano Pharoah Sanders, da igualmente americana e harpista Alice Coltrane, do guitarrista britânico John McLaughlin ou ainda, e entre outros, do pianista sul-africano Abdullah Ibrahim e do sitarista indiano Ravi Shankar. Aqui, pelo contrário, e como Korwar confirma (uma vez mais na reveladora entrevista que nos concedeu), partiu-se para esta sessão sem grandes mapas, com cada um dos músicos a entender de forma profunda que a ideia seria tanto escutar como fazer ouvir-se. Esta sessão Direct to Disc é por isso fértil em amplos espaços, traduzindo-se essa mútua reverência numa mais elevada consciência política: como explica o líder, esta música reflecte o mundo em que gostaria de viver, um mundo onde todos têm algo a dizer, mas onde todos escutam e ninguém se assume como líder. Música como utopia, portanto. Este tipo de sessões, realizadas num estúdio com rigor acústico e tecnologia “realista” e analógica, retratando directamente para acetato o que os músicos geram, sem possibilidades de correcções posteriores ou de intervenções técnicas que possam alterar o que de facto teve lugar naquela sala, acaba por encaixar na ideia de honestidade professada por um músico como Sarathy Korwar.

E, sonoramente, o que significa isso? Pulsares desenhados entre as tablas e a bateria, e uma rica visão colectiva em que se percebe que cada um dos músicos está a dar o máximo para alcançar um superior estado de abandono ou talvez de entrega a algo de muito especial, o lugar em que o ego se esvazia: “Todo o meu trabalho em música é cada vez mais sobre abdicar do controlo”, confessa Korwar. E isso traduz-se em arrepiantes passagens de quase transe colectivo, com o quinteto a alcançar um espaço que provavelmente estará de fora do alcance de cada um dos indivíduos, mas que é atingível pelo entrosamento de um colectivo apostado em explorar dimensões mais planantes. Informada pelo lado mais aventureiro e espiritual do jazz, com o rigor e a magia das clássicas lições da milenar cultura indiana, esta música também sabe viver da propulsão, como “Flight IC 408” tão bem deixa claro: a cadência pronunciada pode ser um caminho possível para o nirvana e Sarathy Korwar é um músico com a força muscular e a dedicação mental capazes de inspirar outros músicos a seguirem-no, seja qual for a direcção tomada.

Este é mais um trabalho que pede audição profunda e repetida porque a abundância de ideias melódicas, rítmicas e harmónicas é tal que a cada nova passagem pelo alinhamento se sentem novos raios de luz a iluminarem-nos as sinapses. O último tema do alinhamento, uma “Yoruba Soul Mix” para a peça de abertura, “So said Said”, traduz outra postura, mais laboratorial, quando o que é resultado de interacção real é depois tratado como matéria para uma meditação rítmica apontada às pistas dos clubes. Ou os tais lugares para onde não podemos agora viajar. A não ser, talvez, espiritualmente. É que nesse plano não há fronteiras nem confinamentos. Valha-nos isso. E esta música.

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