Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.
[Ricardo Jacinto] Solo (Osso)
Em 2022, a propósito da apresentação de Ricardo Jacinto no evento “Have Fun With God” que reuniu uma série de intrépidos exploradores musicais (além do violoncelista marcaram ainda presença HHY & The Macumbas e Ry Vuh) no CCOP, Porto, escrevi estas linhas, até agora inéditas: “Ricardo Jacinto apresentou-se com o seu violoncelo amplificado e processado. Homem de carne e Osso exploratório cuja música é tão viva que arde nos olhos e na alma. Com ele, o CCOP transmutou-se em catedral de vidro e aço cromado, gigante na sua verticalidade. Mas a sua oscilação imaginativa entre a tonalidade e a atonalidade, a exploração de abismos de silêncio e ainda mais abissais funduras de ruído manteve quem ao seu som se rendeu na ponta da consciência e da realidade, com a sua música a impor-se como uma espécie de portal para uma dimensão paralela e onírica onde nada é o que se imagina e tudo existe de outra maneira”. Acrescentei ainda: “Com um domínio total do instrumento, que se afigura ele mesmo total, feito de madeira e cordas e ar e verniz e átomos e pó de estrelas, Jacinto consegue dele extrair uma música viva, como já referido, carregada de nervos e músculos e veias e tudo o mais. Ela nasce diante dos nossos ouvidos e cresce e vive e morre porque o seu criador a isso a obriga. E como qualquer vida ela assume diferentes estados, passa por várias fases, vibrada com arco, dedilhada, percutida. E de beleza tão feroz que até comove”.
Essa performance foi gravada por João Maya e agora é apresentada como Solo, trabalho que merece edição em vinil através da Osso: “Sete peças para violoncelo, electrónica, feedback áudio e gongo ressonante”, declara-se na página Bandcamp deste lançamento. Nas notas de “capa”, refere-se ainda que “este trabalho dá continuidade à exploração do dispositivo eletroacústico denominado ‘MEDUSA’, que o artista sonoro e violoncelista concebeu com o objetivo de criar um sistema de amplificação com microfones posicionados em diferentes partes do violoncelo, e um método de difusão multicanal com altifalantes de contacto acoplados a objectos ressonantes. Esta abordagem amplia as possibilidades de fragmentação e dispersão sonora das suas acções sobre o corpo do instrumento, articulando a sua escuta microscópica com a paisagem sonora e a acústica do espaço envolvente”.
Na belíssima prensagem que a Osso carimbou, este trabalho ganha nova vida: desprovido do contexto da apresentação ao vivo, as peças parecem ganhar outros contornos e uma ainda mais extrema profundidade, assumindo uma dimensão ambiental que a fisicalidade da performance talvez tenha mascarado. Música de drones cortantes, de ressonâncias cavernosas e de estranhos brilhos metálicos, estas peças que se reúnem em Solo atestam o entendimento profundo que Jacinto possui do seu instrumento, mas também são uma manifestação do seu pleno entendimento dessa matéria difusa que é o som, uma manifestação física da vibração de cordas, dos ressonantes materiais de que se faz o violoncelo, mas também algo mais inexplicável, talvez paranormal, pela forma como as frequências, texturas e sons processados se emaranham nas nossas sinapses sugerindo dimensões mais interiores, carregadas de mistério. A música que intriga é também aquela que irremediavelmente nos puxa para o seu centro.
[Iúri Oliveira] Manifesto (Respirar de Ouvido)
É com o som de passos que se inicia Manifesto, álbum em solo absoluto do percussionista Iúri Oliveira. Ou talvez seja errado classificar este trabalho como um “solo absoluto” já que o que se escuta é alguém em diálogo permanente com a sua experiência, com o seu fundo conhecimento, com os espíritos que o precederam. Esses passos de Iúri em solo de gravilha fina remetem de forma quase imediata quem os escuta para outros passos que, ainda que tenham sido registados coletivamente nos arredores de Paris, mostravam uma caminhada em direcção à liberdade e uma homenagem a uma terra — Grândola, essa vila morena — bem próxima da Serpa onde o percussionista das Caldas da Rainha criou este registo, em residência artística na Musibéria. E a esses passos sucede depois uma primeira cadência, afro-cubana e de recorte ritualista, a remeter para as práticas Yoruba que Iúri estudou e conhece a fundo. Forma de nos mergulhar de imediato no seu rico e fundo universo de sons.
“Manifesto”, escreve-se nas notas de lançamento, “é a voz de Iúri Oliveira no seu habitat mais íntimo. Os diálogos entre peles, águas, paisagens e silêncios expressos neste álbum revelam a autenticidade e mestria do percussionista luso-angolano. Um trabalho único e surpreendente agora editado em vinil e em formato digital”. Tudo verdade: esse intimismo deste registo — reforçado pelo hábito frequente que se tem de ver Iúri sobretudo no papel de acompanhante em múltiplos projectos — sublinha uma entrega incondicional a uma música que, como se demonstra logo no “Manifesto 1” que abre o disco, parte de um lugar concreto, mas estende-se muito para lá de qualquer horizonte. O tempo e o espaço são coordenadas que levam Iúri ao alvor dos tempos, mas também da costa ocidental de África ao novo mundo, de Cuba e Brasil à América do Norte, daí de volta à Europa, a outras Áfricas — Moçambique ressoa na textura cristalina da mbira, por exemplo — e até ao Portugal profundo que se adivinha na vibração da pele que cobre o adufe.
Muito menos focado em desfilar uma série de idiomas rítmicos de diferentes culturas e músicas do que encontrar-se a si mesmo nesse intrincado emaranhado de sons, Iúri vai tecendo com as linhas da sua musicalidade singular o tecido do seu próprio mapa, com impressionante mestria técnica, claro, mas, mais importante talvez, com uma entrega que é claramente emocional e que também se expressa na forma como permite que o mundo natural e real interaja com as suas composições através de gravações de campo, de sons da natureza ou de conversas com quem possa aparecer no tal caminho que vai trilhando, como o sábio pastor que o alerta para as condições do tempo, que é quem manda, assegura. Talvez esse tempo, que se faz de sol e chuva, seja incontrolável, mas já o tempo rítmico, de complexidade matemática assinalável, resolve-se de forma simples nas mãos de Iúri, mesmo quando — como na vida — lhe escorre entre os dedos quando mergulha as mãos na água e daí extrai padrões fluídos que nos parecem submergir num universo de belezas subaquáticas, como bem demonstrado em “Manifesto 3”.
A segunda metade do álbum, a que se estende pelos “Manifestos” 4, 5 e 6, começa em toada ambiental, antes do trovejar dos tambores nos envolver de novo com um ímpeto que nos obriga ao movimento. O trabalho termina com a voz de Iúri a declarar que tudo o que toca “são cores”, uma confissão de que a sua sinestesia nos envolve num arco-íris infindo de tonalidades únicas. Há remédio seguro para o espanto com que nos quedamos quando a agulha chega ao final do lado B do vinil de Manifesto — podemos sempre virar o disco e descobrir que o recomeço da viagem nos leva a um qualquer outro lugar, sempre diferente, porque este é um daqueles discos maravilhosos que se renova a cada audição, que parece existir em permanente fluxo. Como a água ou a vida. Um mistério que não vale a pena tentar resolver.