Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.
[Nubya Garcia] Odyssey (Concord Jazz)
Nubya Garcia é uma artista ímpar que logrou, por mérito próprio, alcançar um lugar de destaque no panorama do jazz contemporâneo, graças ao trabalho que inicialmente realizou como parte de ensembles como Maisha ou Nérija, à sua generosa capacidade de encaixe em projectos tão distintos quanto os London Brew e We Out Here ou ao distinto jogo de cintura que lhe foi permitindo brilhar como convidada em registos de artistas como Theon Cross, Joe Armon-Jones, Ezra Collective ou Sons of Kemet, para não nos alongarmos demasiado na listagem. Mas foi Source, a sua estreia de 2020, que definitivamente a colocou no mapa, apresentando-a não como valorosa sidewoman ou membro de ensemble, mas como solista, compositora e líder de pleno direito.
É certo que, felizmente, Nubya não é caso único naquela que poderá ser a mais diversa fase da história no que à presença feminina nos mais altos escalões do jazz diz respeito, mas é igualmente verdade que a saxofonista britânica se destaca de maneira especial pela forma como tem gerido o seu percurso — aberta à experimentação, disponível para projectos colaborativos, sem temer todo o tipo de palcos, dos clubes mais reservados aos mais populares festivais. Agora, mantendo ao seu lado a sua ultra-rodada working band — Sam Jones na bateria, Daniel Casimir no contrabaixo e Joe Armon-Jones nos pianos e sintetizadores — Garcia revela toda a ambição da sua visão com Odyssey.
Neste novo projecto, Nubya expande ainda mais a sua visão musical, usando a disciplina, a inventividade e elasticidade do seu jazz como ângulo particular de abordagem a linguagens que a enformam enquanto pessoa e artista, do dub à cumbia, do hip hop ao afrobeat, sonoridades com que cresceu numa Londres multi-cultural. A inclusão da Chineke! Orchestra, a primeira orquestra europeia formada exclusivamente por músicos negros e de origens étnicas diversas, traz uma nova dimensão ao seu trabalho. As cordas, longe de serem um luxo oferecido por uma editora com mais recursos, são utilizadas de forma criativa, destacando o talento composicional de Nubya e resultando em composições memoráveis, como “We Walk In Gold”, que conta com a participação da vocalista americana Georgia Anne Muldrow. Também se destacam no álbum a aclamada esperanza spalding, sua companheira de catálogo, que surge em “Dawn”, e a britânica Richie Seivwright, que eleva a qualidade de “Set It Free”. Mas é o sopro particular de Nubya, que combina força e elegância e um tom próprio, que lhe acentua um discurso menos virtuosístico e mais soulful, com ecos de músicos como Stanley Turrentine que não temiam o groove nem buscavam apenas a disrupção. Esta personalidade combinada com uma secção rítmica sabedora, perfeitamente oleada e com músculo evidente, resulta num dos registos que certamente vai marcar o ano.
Tudo isto poderá ser, dentro de alguns meses, comprovado quando Nubya Garcia se apresentar ao vivo a 9 de Fevereiro no Porto, na Casa da Música.
[Ezra Collective] Dance, No One’s Watching (Partisan Recordings)
Experimentem ouvir Dance, No One’s Watching, o terceiro álbum dos londrinos Ezra Collective, confortavelmente sentados. Caso tenham pulsação e respirem, tal tarefa poderá muito bem revelar-se impossível. E só isso é digno de nota, já que as palavras “dança” e “jazz”, da última vez em que andaram regularmente juntas, designavam uma actividade que se praticava com leggings coloridos e leg warmers ridículos. Mas o simples acto de no título do álbum se apelar, simultaneamente, à dança e ao abandono hedonista faz da banda de Femi Koleoso (bateria), TJ Koleoso (baixo), Joe Armon-Jones (teclados), James Mollison (sax tenor) e Ife Ogunjobi (trompete) um caso singular.
Como Nubya Garcia — que aliás volta a comparecer ao chamamento do grupo de Where I’m Meant to Be —, os Ezra Collective fazem da distinta experiência cultural londrina — espaço onde se cruzam realidades pós-coloniais que transformaram o pulso da cidade com a vibração dos sistemas de som caribenhos e dos grooves legados por Fela Kuti — a sua marca de água (ardente, a julgar pelo som): os irmãos Koleoso e Ife Ogunjobi são filhos de imigrantes nigerianos e James Mollison nasceu no Quénia, sublinhe-se.
Esse constante impulso rítmico marca este disco que celebra o acto de dançar como manifestação de absoluta liberdade. Esta música — que foi, refira-se, gravada ao vivo nos estúdios de Abbey Road — é celebratória dessa ideia de liberdade e nasce da vasta experiência que o grupo acumulou em palcos por todo o mundo, algo que lhes permitiu desenvolverem uma coesão espantosa que se manifesta em grooves onde não cabe nem mais uma migalha, como tão bem demonstrado em “Ajala”, tema onde a secção de metais é “aditivada” com o sax de Nubya Garcia, o trompete de Jay Phelps e o trombone de Richie Seivwright. A generosidade dos Ezra Colective também se encontra representada nas amizades que permitem ao grupo terem ao seu lado, no “palco” de Abbey Road, outros artistas de peso, como a maravilhosa Yazmin Lacey, que abrilhanta a incrível “God Gave Me Feet For Dancing”, Olivia Dean, que surge na ondulante “No One’s Watching Me”, ou M.anifest e Moonchild Sanely, que debitam rimas afiadas em “Streets is Calling”, fusão perfeita de hip hop e reggae em ambiente “tripante”. Tudo certo por aqui. Façam o favor de dançar.