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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 02/08/2024

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #138: Especial Clean Feed (Parte 1)

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 02/08/2024

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[TGB] Room 4 (Clean Feed)

Tuba, guitarra e bateria. Sérgio Carolino, Mário Delgado e Alexandre Frazão. Ar, electricidade e groove. São já 20 anos disto: Room 4 sucede a Tuba, Guitarra & Bateria (2004), Evil Things (2010) e III (2019), mostrando o trio em permanente evolução e em demanda de novos enquadramentos para a sua particular geometria. Há um óbvio elemento lúdico na música dos TGB. Se estas três feras se reúnem para gravar, para lá de justificados impulsos exploratórios, pressente-se uma igualmente natural vontade de encontrar prazer no simples acto de partilharem um mesmo espaço. E isso percebe-se na forma como os três músicos se encaixam, tendo afinado nestas duas décadas dinâmicas colectivas que lhes permitem “conversar” com desarmante à-vontade e exuberante léxico próprio.

O tema de abertura, “Kinetic”, será porventura aquele em que o power trio melhor expressa a sua originalidade: sobre um ondulante pulso funk, Carolino sola com invulgar elasticidade, como aquele lutador de sumo que de repente exibe uma rapidez pouco condizente com a sua ampla massa; por seu lado, Frazão percorre todo o kit, incluindo os timbalões, com a destreza espantosa a que já há muito nos habituou, fazendo o complexo parecer paradoxalmente simples; Delgado passa do comping pontilhista para o solo frondoso como se não estivesse nem aí, puxando do guitar hero que tem dentro ao ponto de soltar faíscas — e tudo isto antes de ensaiar um sinuoso uníssono com a tuba que até nos corta a respiração.

Há muitas paisagens nas “paredes” deste Room 4: para lá das peças com mais groove — e “Interstellar Vibe” é outro belo exemplo —, há outras que são mais “espaçosas” e cinemáticas — “Em Tempo Real”, por exemplo —, outras com tonalidades mais ambientais, preenchidas por ar fresco — a breve “Nebula’s Awakening” — e até momentos que ecoam uma América sonhada (ou talvez percorrida…) — “Pedro Virtuoso, Poeta Errante” é o melhor exemplo. O que significa que TGB é ideia de muitas tonalidades, uma aventura pluri-idiomática que não se detém num único lugar, fazendo, desta vez, das composições próprias (com Delgado a assumir a parte de leão dessa missão) o ponto de partida para as suas reflexões.


[MOVE] Free Baile – Live in Shenzhen (Clean Feed)

O ruidoso público que se escuta a aplaudir o final de cada tema, a exultar com os crescendos ou a demonstrar entusiasmo com os solos riffados dos MOVE neste impressionante Free Baile gravado ao vivo em Shenzhen, na China, em finais de Outubro de 2023, é prova clara e viva de que esta música tem força universal e capacidade para mover montanhas. De facto, as obras do túnel do Marão teriam decorrido bem mais rápido se em vez de gigantescas escavadoras, os engenheiros tivessem optado por usar o arranque de “Mescla Vento” em que Yedo Gibson sola com aquela ferocidade que faz engrossar as veias do pescoço — bastava um sistema de som de uns milhares de watts bem equalizado e a rocha haveria de se fragmentar sem dificuldade (fica a dica).

O trio de João Valinho (bateria), Felipe Zenícola (baixo) e Yedo Gibson (saxofone) sucede ao igualmente espantoso The City com mais um exercício prático de invenção instantânea em que usam um livre-trânsito para navegarem entre geografias musicais como se fossem funcionários das Nações Unidas em missão de resgate da criatividade em estado puro. Valinho poli-martela no seu kit como se tivesse oito braços e outros tantos pés, ao passo que Zenícola debita linhas de baixo de chumbo líquido, pesadas e sinuosas — escute-se só o ribombar vulcânico no arranque do apropriadamente titulado “Brutal Kindness” para se perceber a imagem aqui usada. E Yedo Gibson vai por ali fora, em acelerado e constante drift, arrancando sons estranhos e familiares ao seu saxofone, mostrando que um estudo atento dos clássicos não lhe toldou o irredutível compromisso com o desconhecido. Potente. (Aviso: audições repetidas de Free Baile podem causar espasmos dançantes. Em caso de persistência dos sintomas, por favor diminua o volume da sua aparelhagem ou auscultadores).


[Gonçalo Almeida] States of Restraint (Clean Feed)

A discografia de Gonçalo Almeida é assim um bocadinho para o impressionante: só nos últimos tempos, o compositor e contrabaixista cruzou-se com gente como José Lencastre, Maria do Mar e Carla Santana (Defiant Illussion, A New Wave of Jazz, 2024); Pierre Bastien (Dialogues and Shadows, Futura Resistenza, 2024); Bart Van Dongen (Tabula Sonorum, El Negocito Records, 2022); Peter Jacquemyn (Encounters, FMR Records, 2023); ou ainda, para não recuarmos muito mais, com Giovanni Di Domenico, Balázs Pándi e Giotis Damianidis (Pray For Your Prey, Defkaz Productions, 2023). E essa é apenas uma pequena amostra do abundante material que nos últimos anos produziu a solo ou integrado em ensembles com John Dikeman, Wilbert de Joode, Susana Santos Silva, Rodrigo Amado e Marco Franco ou Yedo Gibson, entre outros. O que tal output deixa bem claro é a sua capacidade de adaptação, de assunção de risco, de entrega sem reservas ao desconhecido.

Neste States of Restraint, em que é ladeado pela já nomeada trompetista Susana Santos Silva e também pelo percussionista Gustavo Costa, Almeida põe em jogo uma série de composições notadas de diferentes formas que balizam de forma rigorosa o discurso dos seus companheiros. O título, que se pode traduzir por “Estados de Contenção”, traduz na perfeição a música apresentada — um conjunto de exercícios em que os músicos desenvolvem drones, tangentes ao silêncio e outros planantes discursos de progressão tão lenta que na verdade parecem estáticos, abstendo-se de gestos maximalistas. E isso gera uma música de arrastamento que soa como o resultado da gravação com microfones de contacto da tensão dos cabos que suportam grandes estruturas, toda ela nervo e pressão em constante e dramaticamente lento crescendo.

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