Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.
[William Parker, Cooper-Moore & Hamid Drake] Heart Trio (Aum Fidelity)
[William Parker & Ellen Christi] Cereal Music (Aum Fidelity)
Há na música que William Parker, Cooper-Clarke e Hamid Drake apresentam no apropriadamente nomeado Heart Trio uma confluência de energias — políticas, espirituais, poéticas ou filosóficas — que a eleva a um patamar singular e deveras inventivo. Cruzar numa mesma viagem de absoluto improviso coordenadas culturais e psico-geográficas que nos levam dos Balcãs a África e daí ao Oriente só é possível se quem nos conduz em tal generosa jornada não se deixar confinar por ideias enraizadas de primazia cultural, se quem embarca em tal périplo acreditar que a música tem uma mesma origem primordial e universal e pode elevar-se acima das divisórias linhas que a história criou e que, na verdade, só são visíveis nos mapas que os homens desenham (e, como bem sabemos, mapa não é território).
E esse será, certamente, o caso do instigador principal deste projecto, o excelso baixista William Parker que aqui deixa o seu habitual instrumento de lado para — juntamente com dois recorrentes cúmplices de outras aventuras — propor uma densa e intrigante fantasia quarto-mundista, pegando nos ensinamentos daquele que será provavelmente o seu principal mestre, o pan-visionário Don Cherry, para através de uma panóplia muito sui-generis de instrumentos — o doson ngoni da África Ocidental que descobriu ao lado de Cherry em meados dos anos 70, a flauta da Arménia dudek barítono, a flauta sérvia ou uma flauta Ney fabricada por Donald Rafael Garrett — nos envolver numa hipnótica celebração da vida. Explica Parker nas poéticas notas de capa que esta música não tem nome e que o trio se limita a tentar alcançar um “flow” — “Terra, céu e sons de água corrente que saltam para fora da pintura”. Trata-se, portanto de construir uma paisagem idílica, sem fronteiras, mas plena de harmonia, e para tanto concorrem ainda Cooper-Clarke, que toca uma “ashimba” que ele mesmo construiu nos anos 70 (que década, hein?…), uma espécie de xilofone de 11 notas, e ainda uma “hoe-handle harp”, e Hamid Drake, que ao seu particular kit adiciona ainda uma das suas framed drums (alguém precisa de oferecer um adufe ao senhor Drake na sua próxima visita ao nosso país). Como tão bem demonstrado no tour de force do álbum, a peça de mais de 14 minutos “Kondo”, o flow a que Parker se refere nas já mencionadas notas de capa traduz-se num envolvente e orgânico groove que apela a uma dança interna, o tipo de balanço que parece capaz de nos sintonizar com a natureza e de nos centrar espiritualmente. E nos seus respectivos improvisos, o trio busca a hipnótica imersão numa ideia de plenitude que, muito sinceramente, esta música traduz de forma luminosa, algures entre o pulsar mais fundo do melhor jazz orgânico e a cristalina transparência da melhor new-age. O melhor bálsamo que podem escutar hoje.
Em paralelo com Heart Trio, a Aum Fidelity lançou também Cereal Music, trabalho em que o celebrado contrabaixista volta a mostrar uma outra faceta da sua personalidade artística, a de spoken word artist, vincando assim um outro ângulo da sua criatividade. E se na belíssima peça de abertura, “Ode to Kidd Jordan”, em que entoa o truísmo “life is not fair, only beautiful” e ainda exalta o espírito recitando “hallellujah on the joy of sound”, Parker soa solene na seguinte “Baseball”, já que parece canalizar o tom monocórdico e tão marcante de William Burroughs, numa das peças em que a influência da poesia beat é deveras evidente — “Death” é outro exemplo: “Later on in Siberia I was assigned to investigate. My shoe was also a telephone…”, garante ele invocando o narrador de uma qualquer fantasia noir distópica.
A envolver as suas palavras estão as diferentes paisagens sonoras criadas por Ellen Christi, entre planantes e envolventes névoas electrónicas sintetizadas, diáfonos coros vocais ou colagens algo “jonhassellianas”, com elementos de electrónica combinados com gravações de campo de sons naturais de pássaros e vozes distantes. Christi, que se confessa admiradora da tonalidade vocal de Parker, explica nas notas de capa que o projecto nasceu de um desafio apresentado ao contrabaixista para que juntos fizessem um podcast. A essa proposta, Parker acedeu surgindo no seu apartamento com um conjunto de textos manuscritos que leu de uma assentada. A gravação próxima sublinha a humanidade da ocasião, não separando a voz do corpo ao permitir que a respiração, as hesitações, o remexer nas folhas de papel façam igualmente parte da “performance”. E o todo resulta num disco perfeito para escutar com bons auscultadores durante uma caminhada por algum lugar afastado da civilização. “You created the enemy, I say clean up your own mess”, recomenda Parker em “Uninvited Guest”. “Take all of your money and power and madness and go to the end of the world with your nonsense and live there… and leave us alone”. A mim não me parece nada má ideia. Bem-haja, William Parker!