Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.
[Kamasi Washington] Fearless Movement (Young)
Quem porventura possa já ter visto Kamasi Washington ao vivo — como aconteceu na sua estreia em Lisboa, em 2016, no Teatro Tivoli, na sequência da edição do justamente aclamado The Epic (2015) — poderá ter sentido um pulsar diferente daquele que claramente anima os seus registos de estúdio. A sua passagem seguinte pela capital portuguesa, com concerto no Lisboa ao Vivo, em 2019, quando já carregava na sua bagagem o trabalho que lhe cimentou definitivamente a reputação, Heaven and Earth (2018), nada fez para desfazer essa ideia: o que nesses dois registos-chave de estúdio é espírito, em palco ganha declinação mais física; o que em disco resulta de meditativo pensamento, em concerto ganha incandescente urgência. No limite, parece que existem duas entidades que respondem ao mesmo nome.
No novíssimo Fearless Movement, parece óbvio que, pela primeira vez, Kamasi resolveu cruzar num mesmo projecto essas duas distintas dimensões, retendo parte da exaltação espiritual dos registos anteriores, mas, e em simultâneo, não descurando, antes sublinhando, esse lado mais urgente, físico e francamente celebratório das suas incursões de palco. Neste real sucessor de Heaven and Earth (a discografia oficial do saxofonista norte-americano ainda lista, em 2020, a banda sonora de Becoming, documentário Netflix sobre Michelle Obama), o destemido movimento a que o título se refere é, precisamente, o do corpo, da dança — que para Kamasi é acto de cultural resistência. “Estou menos interessado no que estou a tocar e mais na forma como isso afecta o ouvinte e o mundo. A meio do processo de criação do álbum, apercebi-me que queria fazer um disco que inspirasse as pessoas a mexerem-se. Queria uma música à qual as pessoas reagissem, em vez de se limitarem a ouvir”, explicou o saxofonista à revista Crack. “Ao ver esta música ao vivo, compreende-se que não se trata de estar sentado, acenar com a cabeça e tomar notas”, diz ele. “Tem uma ligação com a dança e o movimento. Quando sentimos o som, ele apodera-se de nós e não o conseguimos evitar. Vejo isso na minha filha — se ela ouvir algo e gostar, vai mexer-se. Toda a música é música de dança, por vezes deixamos passar essa ligação”. Ou seja, e elaborando um pouco mais, o que em The Epic e Heaven and Earth era exposição de um interior estado espiritual e intelectual, aqui ganha agora contornos de convocação à acção. Kamasi não nos quer num lugar de passiva recepção e com a música de Fearless Movement desafia-nos a fazermos parte de uma humana comunidade que vibra numa mesma frequência. Nada derruba tantas barreiras quanto a comunicação, a sintonia e a harmonia.
Apesar de soar mais contido, com uma dimensão orquestral mais reduzida, Fearless Movement é, na realidade, o resultado de múltiplos contributos de uma alargada comunidade de músicos: o baterista Ronald Bruner, Jr., o baterista Tony Austin, o baixista Miles Mosley, o teclista e organista Brandon Coleman, o pianista Cameron Graves, o trompetista Dontae Winslow, o trombonista Ryan Porter, os percussionistas Allakoi Pete e Kahlil Cummings e a vocalista Patrice Quinn (quase todos afiliados do colectivo West Coast Get Down, que Kamasi lidera) formam o núcleo duro deste corpo celeste em torno do qual ainda orbitam variadíssimos outros artistas — Carlos Niño (está em todas…), Thundercat, DJ Battlecat, os Coast Contra de Taj e Ras Austin (filhos de Ras Kass), Terrace Martin, Rickey Washington (pai de Kamasi), George Clinton, André 3000, Mono/Poly, Ben Williams, Dwight Trible e BJ The Chicago Kid são os outros nomes creditados na feitura deste álbum.
“Asha the First”, tema inspirado por uma figura de piano criada pela filha de três anos de Kamasi, oferece uma chave para descodificar todo o álbum: a peça abre com uma exultante parte coral que se ergue para os céus enquanto a banda, de pés firmemente plantados no chão, groova em sincopada harmonia, abrindo espaço para um barroco e algo “pastoriusiano” solo de Thundercat a que Washington responde com discurso extático no saxofone, quase soando como se quisesse ocupar o lugar de “gritador” deixado vago por Shabaka Hutchings. E tudo isto acontece antes da entrada em cena da dupla Coast Contra, que debitam rap faiscante, como se as palavras chocassem contra a cromada superfície oferecida pelos músicos. Essa colectiva e bem orquestrada prestação parece transbordar de energia e estabelece o tom para o que se segue: “Computer Love” é uma espiritual reinvenção do clássico boogie funk dos Zapp de Roger Troutman; “Get Lit” é um pesado funk-sem-m*rdas guiado pela voz do Tio Funkenstein, George Clinton, e adornada por um verso “lamariano” de D Smoke; “Dream State” cumpre o que título promete e usa a flauta planante de André 3000 para nos levar para o lado de lá da consciência; e “The Garden Path”, tal como “Road to Self” — a mais longa peça do álbum com 13 minutos de maravilhamento absoluto —, são pedestais em que Washington exibe os seus consideráveis atributos discursivos, com solos abrasivos, plenos de alma e amor, resultados de uma entrega sem qualquer tipo de reserva — Kamasi quer, de facto, levar-nos com ele e, muito sinceramente, não há como não aceder ao seu convite.
Da oração de abertura, em inglês e Ge’ez, a língua dos rituais litúrgicos da Igreja Ortodoxa Etíope, até ao prólogo final, peça de vincada cadência rítmica ainda assim sobrevoada por motivo melódico devocional, quase gospel, de beleza aguda, entende-se que Kamasi não procura nenhum pedestal, antes um lugar nesta terrena dimensão, como parte de uma comunidade que se move a uma mesma velocidade, que responde a uma idêntica vibração e que busca um similar propósito: o da libertação e positiva superação. Como se estivesse a assinar uma carta para a sua filha ler/escutar daqui a algumas décadas.