Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.
[Kavain Wayne Space & XT] YESYESPEAKERSYES (Feedback Moves)
Encarado muitas vezes como uma espécie de novelty record e amplamente menorizado pela “polícia do jazz”, Future Shock, o álbum de 1983 assinado por Herbie Hancock e produzido por Bill Laswell e Michael Beinhorm (Material), é, na verdade, um dos mais radicais gestos criativos de uma década que foi pródiga em inovações. A história da arte está cheia de momentos de viragem e ruptura quando novas tecnologias e ferramentas alteram repentinamente práxis há muito sedimentadas e, sobretudo, inspiram novos pensamentos e abordagens conceptuais: Marcel Duchamp a submeter um urinol invertido como uma escultura para a exposição de 1917 da Sociedade dos Artistas Independentes, Andy Warhol a adoptar a serigrafia e a fotocopiadora como novos recursos técnicos para a sua pintura ou Grandmaster Flash a elevar o gira-discos à condição de instrumento e a impor o ruído do scratch como parte de um novo léxico musical são exemplos possíveis.
Hancock, com a presciente orientação dos Material, no diálogo que estabeleceu com Grand Mixer DXT na visionária “Rockit”, pulverizou noções de tempo e espaço, elevou o DJ à categoria de músico solista e forçou o jazz a entrar no futuro ao derrubar as barreiras entre o palco e o estúdio, entre o pensamento e a performance e, mais importante ainda, entre a tradição e a revolução. O pianista que duas décadas antes tinha assinado Empyrean Isles, verdadeiro tratado sobre as possibilidades de cruzamento do bebop e do jazz modal com o funk e a liberdade da pura improvisação, tomava agora o hip hop como novo terreno de experimentação.
Fast forward para 2021: no londrino Café OTO, o visionário footworker de Chicago Kavain Wayne Space, aka RP Boo, e a dupla XT do saxofonista britânico Seymour Wright e do baterista belga Paul Abbott, invertem o gesto exploratório de Herbie Hancock e ensaiam uma colisão de partículas em que o modelo esquemático e repetitivo da música de dança electrónica se abre à imaginação não programada e às potencialidades do desconhecido que a improvisação livre permite descodificar. O som dos clubes não é, portanto, o destino, como acontecia no álbum de 1983 de Herbie Hancock, antes o ponto de partida. E para tanto, Space recorre a um par de CDJs, ao passo que Abbott estilhaça tempo e ritmo com uma bateria “real e imaginada” e Wright quebra a barreira do som com um saxofone “verdadeiro e potencial”. Enquanto Herbie Hancock encarava o então nascente hip hop como uma nova linguagem que importava descodificar, RP Boo olha para o jazz livre e improvisado como um irresistível estímulo para a sua já estabelecida prática criativa.
YESYESSPEAKERSYES, o álbum agora editado, resulta da edição para dois lados de cerca de 15 minutos de uma performance de uma hora no Café OTO em Outubro de 2021 que, como as notas de lançamento sublinham, foi investida de pensamento e fisicalidade, de instrumentos e corpos. Com Space a repetir de forma obsessiva alguns samples vocais — “bounce”, “better to be the king”, “sound – that’s what the speakers are for” — a dupla XT investe a direito por terreno não mapeado, mas com a consciência — o tal pensamento — da origem dos seus estímulos. A ferocidade que Seymour sempre investe nos diferentes contextos em que opera (também integra, por exemplo, o colectivo أحمد [Ahmed] juntamente com o pianista Pat Thomas) adquire aqui uma dimensão extrema, com as suas frases reduzidas, riffs pontuais, e repetição obsessiva a espelhar as cadências que Kavain Wayne Space conjura com o indicador direito a percutir a tecla de play de um dos seus CDJs. Por seu lado, Abbott tudo faz para transgredir o tempo, não se escusando, no entanto, a usar parte da sua bateria “imaginada” (os pads electrónicos a que também recorre) para ceder à repetição não quantizada que o seu pulso humano admite. E, sim, sim, sim, é para isto que as colunas servem: para traduzir em som o que a soma de três diferenciadas experiências provoca.