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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 19/04/2023

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #118: Nuno Campos 4tet / Mário Costa / Anja Lauvdal

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 19/04/2023

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[Nuno Campos 4tet] Something to Believe In (Carimbo Porta-Jazz)

Em 2020, escrevia-se por aqui sobre o anterior trabalho deste 4tet de Nuno Campos, TaCatarinaTen, sublinhando-se, em comparação com a sua estreia como líder, My Debut for the ones Close to Me (2010), que “o seu toque será porventura mais subtil, mais elegante e, de certa maneira, mais livre, mais espontâneo e personalizado”. O que em 2020 era merecedor de um “porventura”, em 2023 só se descreverá com um “certamente”: Campos é um mestre de elegância e subtileza, qualidades que equilibra com um inegável à vontade na invenção livre, mas, ainda assim, muito lírica. Explicam-nos as notas de lançamento que “a ideia desta gravação nasceu com o 4tet a viajar para o Cairo. Os bons tempos lá passados, juntamente com a intrigante cultura egípcia, não deixaram dúvidas sobre a desculpa para escrever novas composições”. Por outro lado, também se refere que a aturada e mais recente investigação de Nuno Campos pelos terrenos da composição contemporânea – que o levou a acercar-se de obras marcantes de compositores “como Schoenberg, Bartok, Ravel, Debussy, Ligeti, Messiaen e muitos outros” – também apontou caminhos para este álbum.

E se alguns títulos remetem, de facto, para essa experiência egípcia – “Ra”, “Anubis” ou “Osiris and Isis” e “Seth” –, outros, como ”Para Cátia” ou “Nha Toi”, soam mais pessoais, o que talvez denote uma oscilação entre processos de descodificação intelectual e emocional, um cruzamento de impulsos criativos que tanto nascem do olhar que se lança sobre um determinado objecto – como a mitologia egípcia – como da introspecção (ou saudade…). “Para Cátia”, peça em que Campos pega no arco para uma poética e terna deriva em modo de solo absoluto, é um bom exemplo desse recurso a um lastro mais íntimo como forma de activar as células criativas. Com tocante resultado.

Voltando, tal como no registo anterior, a ser ladeado pelos experientes Miguel Meirinhos no piano, José Pedro Coelho no saxofone e Ricardo Coelho na bateria, Campos apresenta em Something to Believe In uma prova de ambição artística sólida, apoiando-se na telepática capacidade comunicativa dos seus companheiros, estabelecendo conversas, diálogos, trocas em que cada instrumento destila personalidade, não se escusando igualmente de buscar soluções inusitadas a partir das sugestões composicionais que alternam passagens de transparência melódica (por vezes as peças parecem querer simplesmente evocar os efeitos da luz numa qualquer paisagem…) e outras de acentuada complexidade rítmica. Ter à disposição músicos de fundos recursos técnicos e expressivos, é fundamental, obviamente. E uma forma de garantir que a nossa atenção nunca se desvia.


[Mário Costa] Chromosome (Clean Feed)

Em entrevista ao Rimas e Batidas, o baterista Mário Costa fala longamente sobre o processo que conduziu a Chromosome, o seu mais recente trabalho como líder e para o qual conta com os préstimos de Cuong Vu no trompete, Benoit Delbecq no piano, sintetizadores e samples e Bruno Chevillon no contrabaixo. Explica-nos ele que para escrever para estes músicos usa um “método tradicional”: “Escrevo as composições em papel, na folha. Tenho um piano e, de forma muito rudimentar, chego lá. Neste disco, grande parte das composições foram feitas ao trompete. Queria que fosse uma coisa natural para o trompetista”, refere Costa que também teve formação nesse instrumento. O resultado, sublinhe-se sem rodeios, é espectacular e deveras excitante.

O que se percebe imediatamente, logo após soarem as primeiras notas, é que este é um projecto muito intencional: Costa escreveu a pensar em cada um destes músicos, nas suas personalidades artísticas, no seu som. E com Cuong Vu bem no centro deste trabalho, a luz não demora a envolver-nos. O trompetista acumula créditos (só para citar os mais recentes) em trabalhos de David Bowie, Myra Melford ou Michael Brecker e possui um currículo extenso que recua à primeira metade dos anos 90. Por outro lado, Bruno Chevillon já provou o que vale em registos liderados por respeitados criadores como Louis Sclavis, Michel Portal ou Daniel Humair, enquanto Benoît Delbecq tem sido capaz de responder a solicitações de outros nomes de referência como Evan Parker, Mark Turner ou Mary Halvorson. Esse imenso saber é aplicado nas angulosas peças que Costa gizou e a audição repetida de Chromosome torna evidente que o encaixe entre os quatro músicos resultou na perfeição: Costa, Delbecq e Chevillon gozam de um entendimento absoluto, com cada um a mostrar de forma eloquente ser capaz de escorrer, como água, para o receptáculo que todos criam, num fluxo constante de formas, pulsares, cores tímbricas. O tema-título é um bom exemplo, com uma tremenda exposição baterística que depois suporta uma abstracta paisagem, onde pontuais bleeps electrónicos e efeitos se colam a uma nota solitária de contrabaixo numa tranquila explosão de exuberância rítmica. E sobre essa sólida estrutura, Vu mostra-se depois em exímia forma, um fraseador de enormes capacidades melódicas que ainda assim soa económico, contido, sem ter necessidade de grandes acrobacias para demonstrar que é capaz de nos prender a respiração.

Enrico Rava não tem dúvidas, quando escreve para as liner notes: “Adoro isto. Quanto mais escuto, mais adoro. As composições são muito inspiradoras. Sem notas desnecessárias. Quatro mestres que tocam com uma interacção surpreendente. Cada músico dá o que é necessário e recebe o que precisa, como numa democracia ideal e perfeita. Eu posso sentir o prazer que eles tiveram ao tocar juntos. Magia”. Verdade. Podemos todos. 


[Anja Lauvdal] From a Story Now Lost (Smalltown Supersound)

Ainda estamos longe – e, em boa verdade, talvez nem nunca lá cheguemos -, mas quem sabe se no futuro será possível que um robô equipado com inteligência artificial seja capaz de criar algo como From a Story Now Lost se nas instruções para tal acção se incluírem coordenadas como “música para crepúsculos”, “banda sonora para a lenta tecelagem de teias na entrada de uma caverna” ou até “transformar em música a chuva que cai no alpendre de uma cabana no meio da floresta onde alguém se perdeu há muito tempo”. 

O álbum de estreia da artista norueguesa Anja Lauvdal soa a tudo e a nada disso, apresentando música que combina fragmentos de piano, ruído branco, sombreados electrónicos e uma tão densa quanto difusa névoa emocional. A produção é assegurada por Laurel Halo que interveio neste From a Story Now Lost da mesma forma que Kieran Hebden em Sound Ancestors, de Madlib: ela funcionou como uma espécie de ouvido que escuta tudo, capaz de encontrar potencial sentido nos fragmentos improvisados, pequenas figuras sintetizadas e texturas abstractas soltas que Laudval lhe ia fazendo chegar, devolvendo-lhos depois já devidamente processados, encaixados, com camadas harmónicas adicionais que serviam como gatilho para novas tangentes e derivas. A pianista e exploradora electrónica descreveu o processo com poética clarividência: “é como ver diferentes pedaços de tempo no universo”.

Apesar deste ser oficialmente o trabalho de estreia a solo de Anja Lauvdal, a verdade é que a sua história é longa e, discograficamente, recua pelo menos uma dúzia de anos. As dezenas de exploratórias aventuras em que embarcou encontraram-na sempre a procurar deixar uma criativa marca nas mais remotas zonas em que o noise, o jazz, a improvisação livre e a experimentação não idiomática se cruzavam em obras de concentrado grau de inventividade.

Agathe Backer Grøndahl, uma pianista e compositora norueguesa que fez carreira na segunda metade do século XIX, é inspiração funda para algumas das peças de From a Story Now Lost: “Grøndahl foi uma super-estrela no seu tempo, mas, como muitas compositoras, ela não é muito tocada hoje em dia em comparação com os seus amigos homens (como Edvard Grieg)”, refere Lauvdal. “Quando comecei a mergulhar no seu trabalho, fiquei um pouco obcecada. Não era como se eu adorasse toda a sua música, mas o seu estilo era um pouco esquemático e cru, e eu realmente não tinha ouvido nada parecido. Dei intuitivamente à canção um título que a referenciava. A canção para mim é fragmentada, e parece que a música de Grøndahl hoje só existe em fragmentos”, explica ainda Lauvdal referindo-se à pulsante “Fantasie for Agathe Backer Grøndahl”. Essa peça sucede à composição mais dilatada do alinhamento, “The Dreamer”, que ainda assim soa breve nos seus quase cinco minutos de onírica e psicadélica transformação do tempo, como se fosse apenas uma brevíssima gravação esticada bem para lá do plausível, revelando dessa forma todo um microcosmos de partículas sonoras em suspensão.

E parece ser entre o pulsar da vénia a Grøndahl e o tempo de extrema câmara lenta de “The Dreamer” que este álbum existe. Algures no meio encontra-se a mais breve das peças, “Mother”, que em menos de dois minutos extrai beleza da melancólica melodia estilhaçada de um piano. Anja Laudval pode aqui ter resolvido os dilemas que a inteligência artificial nos vai obrigar a enfrentar ao reconhecer que mesmo as coisas que se perdem, como as histórias, não desaparecem, apenas aguardam serenamente por quem as possa finalmente encontrar. Nenhum robô seria capaz de entender isso: “é como ver diferentes pedaços do tempo no universo”.

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